Produtos liofilizados, shakes e balas em gel renovam a promessa de substituir padrões alimentares tradicionais. Mas, por trás de embalagens high tech e muito marketing, os ultraprocessados de sempre, que o Ministério da Saúde recomenda evitar
Se você for ao Chat GPT e perguntar quais são os alimentos do futuro, verá uma lista que inclui insetos, algas, fermentados, produtos tecnológicos, produtos à base de plantas e fortificados (ou seja, com adição de macro e micronutrientes). Em um dos maiores eventos da indústria de alimentos e bebidas – a Anufood, que aconteceu em abril, em São Paulo – esse também foi o menu do dia. Com a louvável exceção dos insetos.
Ao entrar no centro de convenções em que aconteceu o evento, o primeiro cheiro registrado pelo olfato é o de fritura. É um galpão grande, com longos corredores formados por estandes, de mais de 900 marcas, além de auditórios. O primeiro estande à vista é da Seara, que pertence à JBS, líder na produção de carne de animais. Garçons engravatados circulam com produtos da linha Incrível, à base de plantas, enquanto recepcionistas anunciam que agora a linha está disponível também para food service – ou seja, para empresas como uma hamburgueria, uma padaria ou o restaurante do seu bairro.
Além do cheiro de fritura, o evento trouxe um certo ar de repaginamento do nutricionismo – termo cunhado pelo pesquisador Gyorgy Scrinis para se referir à estratégia de reduzir a alimentação a uma questão de nutrientes. Ao longo do século passado, as descobertas sobre carboidratos, gorduras e proteínas, de um lado, e sobre vitaminas e minerais, de outro, causaram uma grande mudança na maneira como é pensada a alimentação humana. E fizeram a fortuna de muita gente. No século 21, em vez de cair por terra, esse paradigma se adapta aos tempos acelerados.
Caminhando pelos corredores da Anufood, encontramos outro lançamento: cubos de açaí liofilizados, da marca Mister Açaí. “É a mesma técnica utilizada nos alimentos de astronautas. Mantém todos os nutrientes”, diz a representante de vendas. No site oficial, o produto é anunciado como “um delicioso e crocante jeito de consumir açaí de forma saudável”. Dos seis ingredientes listados no rótulo, quatro são aditivos alimentares. Há quase 17 vezes mais açúcar do que fibras. A textura, ao comer, lembra isopor. O sabor é de açúcar. Só a cor é de açaí.
Depois de passar por balas em gel, refrigerantes de todos os sabores possíveis e ovos em pó, chegamos ao auditório no qual ocorreu a palestra “Da cura à prevenção: Mudando a saúde do consumidor com alimentos e bebidas”, com Rodrigo de Mattos, analista sênior da Euromonitor, que é uma das consultorias de mercado mais relevantes. Ele diz que “o consumidor está cada vez mais atento às propriedades nutricionais” e que a geração Z, que nasceu entre 1995 e 2010, tem uma demanda por produtos com menos açúcar, ingredientes mais naturais, alto teor de proteínas e poucas calorias, porque tem a percepção de que são mais saudáveis.
“Aqui eu trago um exemplo brasileiro, que é o da Foodz. Eles trazem uma proposta, que eu acho que vai assustar algumas pessoas, mas é de você ter uma nutrição equilibrada dentro de um shake”, diz Mattos, durante a palestra. Para quem nasceu antes da geração Z, essa ideia pode não parecer tão inovadora. Afinal, quem não se lembra da Herbalife?
Mas a Foodz tem uma embalagem muito mais moderna e um time de influenciadores que fazem desafios como substituir uma refeição por dia, durante 30 dias, pelo produto. No time há especialmente atletas e nutricionistas – vale lembrar que o Código de Ética e Conduta do Nutricionista proíbe a realização de publicidade de marcas e produtos alimentícios, suplementos nutricionais, fitoterápicos e empresas do setor em geral.
O produto tem uma lista de ingredientes gigante, composta basicamente por proteínas isoladas, aditivos alimentares e nutrientes adicionados. A marca o anuncia assim: “uma refeição completa com o equilíbrio ideal de 25g de proteínas, carboidratos, fibras, 25 vitaminas e minerais essenciais para o seu café da manhã, almoço ou jantar”.
Para a Foodz, você pode trocar um prato de arroz, feijão, legumes e verduras pela bebida de morango, chocolate, mousse de maracujá, cookies n’cream ou coffee baunilha, sem nenhum problema. Mas, para o Guia Alimentar para a População Brasileira, o shake é um ultraprocessado e, portanto, a recomendação é evitar o produto. Um corpo crescente de evidências científicas aponta que os ultraprocessados podem ser um fator para o desenvolvimento de doenças crônicas e para outros desfechos negativos em saúde.
Em outro auditório, no mesmo galpão, encontramos o sócio da empresa de consultoria e auditoria da KPMG, Maurício Godinho, dando uma palestra sobre “Tendências para o consumo de alimentos no futuro”. Em seu currículo, também há passagens anteriores pelo grupo Pão de Açúcar e pela Unilever.
“A gente está falando aqui de um consumidor que, sim, se preocupa com o planeta, com marcas sustentáveis, quer uma alimentação mais saudável e que repare a saúde, a capacidade mental e imunológica; que, sim, também quer ver algo cada vez mais premiunizado, diferenciado ou étnico, mas ele não abre mão da conveniência. Eu quero algo pronto ou fácil de produzir, que eu encontre no caminho para o meu trabalho”, diz Godinho.
Por isso os lanches são uma categoria de destaque. “O supra sumo é: eu vou escolher um produto de alta indulgência que me impacta menos”, finaliza. Como exemplo de “produto de alta indulgência”, ele cita a junk food.
No entanto, a nutricionista Ana Carolina Feldenheimer, professora do Departamento de Nutrição Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), lembra que “uma coisa que o Guia também fala bastante é sobre como os ultraprocessados têm um potencial muito grande de entrar mais nos lanches do que nas refeições”. Ela participou da equipe técnica que elaborou as diretrizes do Ministério da Saúde.
Essa capacidade dos ultraprocessados está relacionada às características dos produtos e aos nossos hábitos alimentares. O que também explica o foco da indústria nessa categoria. A gente não sabe quem veio primeiro – o ovo ou a galinha, o desejo do consumidor ou o estímulo da indústria. Mas sabe quem sai ganhando: o dono dos ovos e da galinha.
Outro lembrete importante de Feldenheimer é de que “na verdade, um ultraprocessado nunca vai ser considerado saudável. Não há ginástica que a indústria faça para que o produto seja considerado um alimento saudável”.
Vale a pena?
Uma das “ginásticas” que a indústria faz, há décadas, para trazer o apelo saudável a produtos ultraprocessados é a fortificação. Basta lembrar da clássica propaganda de Danoninho, dos anos 1980, que já elencava uma série de vitaminas e sais minerais presentes no produto. A visita à Anufood mostra que até a indústria sabe que panela velha é que faz comida boa. Nos cubos de açaí ou no shake que (não) substitui refeições, o grande argumento é: praticidade e presença de nutrientes. O mesmo da propaganda quarentona da Danone.
“O avanço da ciência da nutrição acabou focando muito em nutrientes e isso serviu muito de plataforma para a indústria de alimentos, para a indústria farmacêutica, incutir uma ideia nas pessoas de que você precisa suplementar, precisa fortificar”, afirma Marly Augusto Cardoso, nutricionista e professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Ela explica que, na história do campo acadêmico, há fases em que as pesquisas colocaram o foco nas vitaminas de um determinado complexo. Outras em que o foco estava sobre as calorias, ou as proteínas. Geralmente, a motivação por trás desses estudos são problemas de saúde pública que afetam uma determinada população.
Por exemplo, Cardoso conta que “o primeiro ensaio clínico da humanidade ocorreu com a vitamina C, com a história do escorbuto durante as navegações”. Um médico britânico testou o uso de limões e deu certo, mas só depois se conseguiu isolar a vitamina e descobrir qual exatamente era a função dela no metabolismo humano. Aí a indústria pôde transformá-la em pastilhas efervescentes e gomas de mascar.
“O avanço da ciência da nutrição acabou focando muito em nutrientes e isso serviu muito de plataforma para a indústria”
O universo dos micronutrientes é vasto. Tem as vitaminas A, B1, B2, B3, B5, B6, B7, B9, B12, C, D, E e K. Mais os sais minerais: cálcio, ferro, fósforo, iodo, magnésio, manganês, molibdênio, potássio, selênio, sódio, zinco. Tudo isso é essencial para a saúde e nutrição humana. E a absorção desses nutrientes envolve uma série de fatores. A origem, ou seja, se é natural ou sintetizada em laboratório. A disponibilidade de outros nutrientes no organismo, por exemplo: o cálcio, o fósforo e a vitamina D têm uma atuação conjunta e a falta de um desses nutrientes pode afetar a absorção de outro. Em resumo, não é algo tão simples e trivial. Mas Cardoso afirma que “em condições usuais, com uma dieta saudável e variada, você não precisa de fortificação”.
Ela explica que nos produtos ultraprocessados a quantidade de micronutrientes adicionados costuma ser baixa, para que os limites diários de ingestão não sejam excedidos. Geralmente a referência para esses valores é importada das DRIs, as Dietary Reference Intakes, criadas por e para a população norte-americana. O que já é controverso, uma vez que cada população tem problemas e demandas específicas.
Por exemplo: nos países em que há invernos rigorosos ou o hábito de usar roupas que cobrem todo o corpo, a deficiência de vitamina D é mais frequente; já em países em que é verão quase o ano todo, como o Brasil, esse não é um problema de saúde pública. Isso porque a vitamina é sintetizada na pele humana, a partir da exposição ao sol. Além disso, no livro Nutrição e Dietética (2019), Cardoso expõe outros problemas, como a falta de atenção das DRIs às possíveis interações que envolvem nutrientes e outros componentes da dieta.
“O acréscimo dessas vitaminas nesses alimentos tem que ser em um valor muito baixo, para não correr risco de toxicidade. Na verdade, para quem está deficiente, mesmo, não supre a necessidade”, afirma. Mas a indústria acaba “precisando” fortificar o produto, para que ele exiba na embalagem colorida alguma mensagem otimista – “alegação nutricional”, no jargão da área. Por exemplo, “fonte de cálcio” em um produto lácteo que tem muito pouco leite. “É um valor agregado”, finaliza Cardoso.
Por outro lado, o aumento do consumo de ultraprocessados fortificados e de suplementos pode expor pessoas que não têm nenhuma deficiência nutricional ao consumo excessivo de micronutrientes, o que pode ocasionar problemas de saúde. O que era para ser solução, acaba virando problema.
Cardoso explica que, no caso de alguns micronutrientes, quando a ingestão é excessiva, o corpo expele o excesso. No entanto, isso varia caso a caso. Por exemplo, os que são solúveis em gordura tendem a se acumular no organismo. “Então não é uma coisa como a gente já ouviu as pessoas falando ‘ah vitamina, em último caso não faz mal’”.
Além disso, junto com os micronutrientes adicionados, os ultraprocessados carregam açúcares, gorduras, sódio e uma série de aditivos alimentares. Ao ver a lista de ingredientes do Danoninho, Feldenheimer disse que “o cálcio e a vitamina D dele não valem a pena, por tudo que vem junto”.