Com a perspectiva de dobrar produção para atender chineses, avanço da fruta sobre territórios que produzem alimentos e uso exaustivo da água aumentam a tensão entre camponeses e agronegócio fruticultor
Em vez do sabor suave e adocicado do melão, um gosto amargo toma conta da memória do agricultor Francisco Edilson Neto, de 65 anos, ao lembrar de sua primeira experiência com a fruta. “O melão conseguiu destruir o sonho de muita gente”, lamenta.
Edilson fazia parte de um grupo de cerca de cem agricultores que viviam e trabalhavam em Apodi, no Rio Grande do Norte. Cultivavam de forma agroecológica o famoso arroz vermelho típico da região, assim como feijão, hortaliças e algumas frutas. Tudo era produzido em mutirão para consumo das famílias e, o que sobrava, vendido nas feiras do município.
As coisas mudariam dali em diante com a chegada das grandes empresas de melão, na virada dos anos 90 para os anos 2000 na Chapada do Apodi, uma mancha de solo fértil que se estende por municípios do Ceará e Rio Grande do Norte.
Resolveram investir na fruta, na expectativa de aumentar a renda das famílias. “O lance era plantar melão pra exportar. O pessoal esperava o Jornal Nacional para saber o preço do dólar”, recorda. Já naquela época, a fruticultura de exportação não era uma aposta para peixes pequenos.
“A gente foi pro Banco Nordeste e fez o empréstimo. Eram 13 pessoas e isso começou a dividir a comunidade. Antes, eram cem pessoas que trabalhavam permanentemente em mutirão. Resultado? A gente conseguiu se endividar, uma dívida de R$ 13 mil. Passou mais seis anos com essa dívida. E sabe quantas vezes a gente juntou esse povo? Nunca mais”, lamenta.
Na época, o sistema de cultivos agroecológicos e em escala comunitária era tido como uma agricultura atrasada. “Confesso a você que doeu muito quando a gente viu esse sonho se destruir. Mas, no meio dessa luta, nasceu outra luta, e a gente veio pelo sindicato”, pondera Edilson, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Apodi (RN).
Encontramos Edilson na sede do sindicato, em setembro de 2022. Camponeses da região se reuniram por três dias para discutir os impactos da fruticultura de exportação em uma região com tradições próprias ligadas à agroecologia e à agricultura familiar.
Com maior disponibilidade de água do que o lado cearense da Chapada, Apodi e outras cidades do lado potiguar estão se tornando campo de batalha entre o agronegócio fruticultor e comunidades camponesas, e suas visões opostas sobre uso do território e de recursos naturais. Em disputa, modos de viver e produzir, e o acesso ao bem mais valioso no semiárido nordestino, a água.
Primeira fruta fresca brasileira a chegar na China
Bem longe do sertão potiguar, no Palácio do Planalto, em Brasília, um aperto de mão e o tradicional gesto oriental de se curvar ao interlocutor selaram um acordo que ameaça o futuro sonhado por Edilson a seus filhos e netos. E que aposta em um tesouro submerso e desconhecido para a maior parte dos brasileiros.
Em novembro de 2019, sob os olhares de Jair Bolsonaro e do presidente da China, Xi Jinping, a então ministra da Agricultura e hoje senadora pelo Mato Grosso do Sul Tereza Cristina e seu colega chinês oficializaram um acordo comercial considerado “histórico” para os exportadores de frutas.
Naquele ano, o Brasil obteve a abertura do mercado chinês para o melão, primeira fruta fresca a entrar na China. Em troca, os chineses poderão exportar suas peras para o Brasil. O acordo foi firmado durante a XI Cúpula do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em Brasília.
“Dia histórico! A primeira carga de melões brasileiros chega à China. Três toneladas e meia de melão pele de sapo, vindas da região de Mossoró (RN), chegaram ao aeroporto de Xangai, nesta manhã. Conquista do agro do Brasil”, comemorou Tereza Cristina em suas redes sociais sobre a primeira remessa enviada ao gigante asiático, em setembro de 2020.
Se no Brasil a pera está longe de ser considerada uma fruta popular e acessível, o mesmo não podemos dizer do melão na China. O país é o maior produtor e consumidor do mundo, e vem aumentando substancialmente suas importações de frutas. Nos últimos vinte anos, consolidou-se mais e mais como o principal parceiro comercial do Brasil.
Os melões vêm abocanhando uma fatia cada vez maior nas exportações do setor. Nos últimos anos, essa tem sido a fruta mais exportada pelo Brasil, atrás apenas das mangas do Vale do São Francisco. Os principais destinos são União Europeia, o Reino Unido e os Estados Unidos, mercados já consolidados para as frutas brasileiras.
A entrada da China neste tabuleiro pode aumentar a pressão sobre regiões como a Chapada do Apodi. E ampliar os impactos de um modelo que garante segurança hídrica para o agronegócio, mas impõe dificuldades cada vez maiores a pequenos agricultores como Edilson e a comunidades tradicionais que produzem alimentos agroecológicos.
Empresa líder estima dobrar produção de melão
A grandiosidade do mercado chinês justifica a euforia da ex-ministra, principal voz do agronegócio no governo Bolsonaro, e das grandes empresas exportadoras da fruta.
Caso o Brasil de fato passe a fornecer para a China, em uma perspectiva conservadora, será necessário dobrar os atuais 20 mil hectares de cultivo, segundo estima Luiz Barcelos, sócio da Agrícola Famosa, maior produtora e exportadora de melões e melancias do Brasil e uma das maiores do mundo.
“A China planta 430 mil hectares de melão por ano, o Brasil planta apenas 20 mil, ou seja, eles plantam vinte vezes mais que a gente (…) Muito conservadoramente eu acho que nos próximos cinco anos temos condições de dobrar nosso plantio de melão”, estimou Barcelos, em entrevista à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
Desde a assinatura do acordo, o Brasil exportou cerca de 200 toneladas de melão para a China, entre 2019 e 2022, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Um volume ainda pequeno, que arrefeceu diante da desorganização de cadeias logísticas durante a pandemia e o aumento no preço dos fretes aéreos e marítimos. A maior parte foi transportada de navio: os carregamentos partem em caminhões do Rio Grande do Norte para Santos (SP), onde são embarcados e seguem rumo ao porto de Xangai, na China.
Como empresa líder deste mercado, a Agrícola Famosa pode vir a se tornar uma importante fornecedora de melões para os chineses. Hoje atende aos mercados britânico, holandês, alemão, italiano, português e espanhol.
Não é a única: há outras empresas de grande porte, inclusive de capital internacional, que fornecem melão e outras frutas aos mercados externo e interno. Elas estão distribuídas em sua maioria no Rio Grande do Norte e no Ceará, estados que respondem por cerca de 70% de todo o melão produzido no Brasil. Mais da metade dessa produção é voltada para a exportação.
A Agrícola e outros grandes fruticultores cultivam em plena caatinga, num território contíguo aos dois estados, uma terra fértil que se estende até o litoral cearense. O clima quente e seco, a predominância de sol o ano todo e a falta de chuva oferecem condições perfeitas para a produção de frutas de um modo geral – e do melão em particular.
Ao contrário do que possa parecer, há abundância de água nesse bioma. Uma água que não se vê a olhos nus, mas encontra-se sob a terra. O melão depende – e muito – deste recurso: um quilo da fruta consome cerca de 200 litros de água, desde o plantio das mudas até o despacho.
A Chapada do Apodi e parte do Vale do Jaguaribe estão sobre um sistema de aquíferos, o Jandaíra-Açu. Aquíferos são uma espécie de reservatório disposto sob a terra, em formações rochosas. Essa água vem sendo utilizada à exaustão para a produção de melão e melancia principalmente, mas também mamão, banana, goiaba e acerola em menor escala.
Número de poços mais que dobrou em 8 anos
Fundada em 1995, a Agrícola tornou-se uma gigante no rastro deixado pela falência de outras grandes empresas de frutas que atuavam nessa região. Hoje tem uma área total de 30 mil hectares, seis vezes maior do que quando começaram as operações, distribuídos em 16 fazendas. Foi criada por Barcelos, advogado paulista vindo de família que atua no agronegócio no interior de São Paulo, e Carlos Porro.
Os dois se tornaram sócios em uma trading que intermediava a compra de frutas e vendia para o mercado externo. Uma quebra de safra do melão e a dívida contraída por um dos seus fornecedores no Ceará foram a oportunidade para comprar a primeira fazenda, em Icapuí, no litoral do estado, onde até hoje funciona a sede.
A cada dez melões produzidos pela empresa, sete são destinados ao mercado internacional.
São 400 contêineres carregados de melão despachados por semana. A Agrícola Famosa se autointitula a maior produtora e distribuidora mundial de melões e melancias.
Em 2021, ano em que as exportações de frutas bateram recorde em volume e faturamento no Brasil, a empresa ampliou sua participação internacional. Abriu uma representação no Reino Unido, maior consumidor dos melões brasileiros, criando a Melon & Co, e se associou à gigante espanhola Citri-Co, a maior companhia de produção e fornecimento de frutas cítricas e de caroço da Europa.
Uma das fazendas da Agrícola Famosa em Russas, no Ceará: tentamos visitar a empresa, mas não fomos atendidas. Crédito: Raquel Torres
Mas a maior expansão da empresa escapa aos olhos. Em oito anos, a Agrícola Famosa passou de quatro para 21 poços profundos, com entre 400 e 800 metros de profundidade. O número de poços rasos, com até 400 metros, mais que dobrou: eram 250 e hoje são 582, segundo dados disponibilizados pela própria empresa.
No Ceará, está entre os maiores consumidores de água do estado – ao lado de outras grandes empresas de frutas. Em 2022, a empresa obteve autorização para usar quase 10 milhões de metros cúbicos de água, segundo cálculo feito pelo geógrafo Diego Gadelha, pesquisador do tema e professor do Instituto Federal do Ceará, com base nas outorgas expedidas pelo governo cearense.
“Há uma multiterritorialização na presença da fruticultura, são latifúndios fragmentados. Vão territorializando seguindo a água. O tamanho da terra não significa maior uso de água. O critério mais importante é a intensidade de uso da água”, explica. Essa dinâmica levou à adoção do termo latifúndio hídrico – que caracteriza esse modus operandi dos grandes fruticultores.
Para se ter uma ideia, 10 milhões de metros cúbicos seriam suficientes para abastecer os 244 mil habitantes somados dos municípios da Chapada do Apodi com 110 litros de água por dia, quantidade mínima recomendada para consumo e higiene, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Avanço sobre aquífero Jandaíra-Açu no RN
Em 2012 o Ceará começou a viver um grande período de seca que se estendeu por oito anos. “Desde então, a água que sai do aquífero é muito maior do que a água que a recarga. Então o aquífero vem apresentando déficit ano após ano pela expansão da produção, da área plantada, e sobretudo, sobreposto a isso, o período de seca”, alerta o pesquisador.
No Baixo Jaguaribe e no lado cearense da Chapada do Apodi, o melão e outras frutas deixaram um rastro de desertificação, especulação fundiária, desemprego e dificuldades para agricultores acessarem a água dos lençóis freáticos. “Lagoinha foi a maior produtora de melão do Nordeste e tinha a maior empresa, a Del Monte. Eram três mil hectares de melão. Essa cidade é prima de Baraúna do ponto de vista hídrico e social. Todo esse distrito incha por causa da fruticultura, na época da safra eram três mil trabalhadores. Houve crescimento desordenado. As empresas vão embora e esse distrito foi à falência”, lembra Diego Gadelha.
Desde então, os grandes monocultivos de melão e melancia passaram a avançar para o Rio Grande do Norte, onde há ao menos três barragens, além de acessarem o sistema Jandaíra-Açu, que tem maior disponibilidade hídrica.
“A água do calcário Jandaíra é uma água com teor de sal elevado. Ela é misturada com a água do Arenito Açu, e passa a ser uma água adequada para melão e melancia”, explica o agrônomo Josivan Barbosa, professor e ex-reitor da Universidade Federal Rural do Semiárido. Enquanto o Jandaíra está mais perto da superfície, o Açu fica a cerca de mil metros de profundidade e tem água doce, propícia para o abastecimento e consumo humano.
Um tesouro para poucos que podem acessá-lo. Quanto maior a profundidade, mais caro se torna a prospeção de um poço, algo na casa de alguns milhões de reais. Trazer essa água para uso na irrigação também não é barato, já que o bombeamento depende de energia elétrica.
E é aqui que entra um ponto-chave para a parceria comercial entre Brasil e China, e que pode definir também o futuro de uma região de tradições históricas e socioeconômicas próprias, ligadas à produção agroecológica e familiar.
Com a autoridade de quem acompanha de perto a trajetória da agricultura irrigada e das principais empresas de fruticultura há muitos anos, Josivan Barbosa afirma que as expectativas de exportar melões do semiárido para a China ainda “estão mais no campo político” e não são reais. “Não tem água. Para justificar a frequência do navio, teria que ter mais 10 mil hectares, certo? Isso representa 50% a mais da área plantada hoje. Não tem água pra isso. Um ponto-chave é esse, o outro é a logística. São 35 dias de navio. A fruta não aguenta. Teria que ter material genético com vida útil pós-colheita muito longa, de 40 a 45 dias. Ainda não temos”, avalia Josivan.
Mas a água não parece ser uma preocupação para a Agrícola. Em novembro, empresários do setor foram recebidos pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, ainda no governo de transição. Estavam representando a então recém-criada Rede Nacional de Irrigantes, presidida por Barcelos, e a Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas, a Abrafrutas, entidade que reúne os principais exportadores. Na pauta, aumento das áreas irrigadas, os chamados perímetros, e abertura de novos mercados.
Sem ar livre
Bem longe dos gabinetes refrigerados onde acordos comerciais e diplomáticos são costurados, e mais distante ainda da China, Miguel*, de 58 anos, tem perdido o sono por causa do melão. E esta não é apenas uma figura de linguagem. Conforme se aproxima a época de safra, são noites mal dormidas no assentamento onde vivem ele e outras 40 famílias, no município de Apodi, no Rio Grande do Norte.
“À noite a gente acorda com o nariz queimando. Principalmente na época que eles expurgam. Passam a noite todinha banhando a lavoura. É quando a gente começa a sentir esse ardor no nariz”, conta o agricultor, um homem matuto, de rosto vincado, cabelos grisalhos e aparência de pelo menos dez anos mais que sua idade.
Há cerca de seis anos o melão tornou-se um incômodo vizinho. Foi neste mesmo período que o Brasil conquistou, ano a ano, resultados notáveis nas exportações de frutas. Os cultivos foram se aproximando cada vez mais de sua propriedade, onde cria cabras, ovelhas e abelhas, além de um pequeno roçado para subsistência.
“Aquele ar livre que a gente antes poderia ter, deitar no alpendre e ver aquele ar livre, hoje a gente não tem mais. No lugar do ar, a gente sente poeira contaminada ou veneno. Hoje, na nossa comunidade, há muitos que, para preparar a terra, passam dez dias com a poeira cobrindo o corpo”, lamenta Miguel. Apenas duzentos metros separam a casa onde Miguel vive e trabalha das roças de melão da Agrícola Famosa.
Miguel também lamenta o desempenho ruim das abelhas que maneja há alguns anos e que representam uma parte importante de sua renda.
A região de Apodi é conhecida pela produção de um mel de altíssima qualidade, proveniente de abelhas silvestres e de uma floração específica que só a caatinga tem, proporcionando a sensação de abocanhar um punhado de flores. Esses insetos também exercem um papel fundamental na manutenção da biodiversidade de um bioma único e exclusivamente brasileiro.
“A gente sente que as abelhas fracassaram. Esse é o impacto que a gente já tem, já discutimos isso na comunidade. As abelhas antes eram muito fortes no verão. Hoje chega o inverno e as chuvas, e as abelhas estão fracas. Para recuperar dá muito trabalho”, lamenta. Ele estima que, apenas no ano passado, os apicultores da comunidade onde vive perderam cerca de um terço do número de abelhas e também da produção de mel.
A apicultura em escala familiar foi resultado de políticas públicas de assistência técnica e crédito para os assentados daquela região, mas que hoje esbarra no agronegócio.
Abelhas do agro
As abelhas protagonizam uma triste contradição na produção de melão em larga escala. Elas são fundamentais para a polinização das roças desta fruta. A tal ponto que ganharam até um sindicato próprio, o Colmeia Viva, iniciativa do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg).
A Agrícola Famosa tem 6.500 colmeias dedicadas exclusivamente ao melão. As abelhas do agro são exóticas, originadas a partir do cruzamento de espécies africanas e europeias, e têm sua atuação regulamentada no Brasil.
Frequentemente o uso das abelhas é associado a um manejo sustentável da produção, mas esses insetos, por serem exóticos, exercem função meramente produtiva na polinização de produtos agrícolas e na produção de mel e geleias em maior escala.
Miguel e praticamente todas as famílias assentadas têm parentes que trabalham na Agrícola. Embora os impactos da aproximação dos cultivos sejam intensamente discutidos, ninguém tem coragem de se expor. Por esse motivo, ele só aceitou falar desde que não revelássemos sua verdadeira identidade.
Nos picos de safra, são nove mil trabalhadores apenas na Agrícola Famosa. Isso dá uma ideia do poder econômico – e portanto político – que a empresa exerce em cidades rurais onde há pouca ou nenhuma geração de emprego. “A entrada das empresas mudou muito. Tem alguns pontos positivos, mas quase todos são negativos. O positivo hoje é o emprego no nosso município. É a única coisa positiva que eu vejo. Mas, em compensação, somos atingidos por muita coisa que é ruim para a nossa saúde e nossa comunidade”, resume.
Os casos de Edilson e Miguel e a ameaçadora aproximação dos melões da Agrícola ilustram apenas um entre os vários elos de impactos da fruticultura em larga escala. Embora o discurso oficial seja o do desenvolvimento e da geração de emprego e renda, pouco alterou a estrutura de poder no semiárido em relação a quem acessa água e terra. Na melhor das hipóteses, trouxe novos atores, mantendo uma grande assimetria entre grandes e pequenos produtores agrícolas.
Edilson lembra de como a experiência mal sucedida com o melão dividiu agricultores da Chapada do Apodi: em setembro de 2022, eles se reuniram na sede do sindicato para discutir o impacto da fruticultura na agricultura familiar. Crédito: Raquel Torres
Maísa, a vitória sobre a seca
Muitos desses agricultores estão assentados nas antigas terras da Mossoró Agroindustrial, a Maísa, uma experiência icônica do avanço da chamada Revolução Verde no semiárido. Este movimento remonta aos anos 60 e 70, e foi responsável por difundir a monocultura em larga escala, a mecanização do campo, e o uso de agrotóxicos e sementes modificadas na produção de alimentos.
Fundada por empresários ligados ao regime militar, a Maísa foi um imponente complexo agroindustrial criado nos anos 60 com incentivos do Estado, crédito subsidiado, investimentos em infraestrutura e projetos de irrigação. “Foi uma empresa que conseguiu recursos do Banco do Nordeste, do Banco do Brasil e do BNDES. Era muito forte do ponto de vista político, porque tinha vários empresários que faziam parte da gestão do Estado”, explica Josivan Barbosa.
No início, a aposta era em um imenso cajueiro, mas uma grande seca levou a empresa a abandonar a fruta e partir para outros cultivos. Uma das experiências foi com o melão. E deu certo. Em apenas um ano, a primeira leva da fruta chegou à Inglaterra, feito que completou 40 anos em 2022. “Com esse sucesso da Maísa, logo em seguida ela instala um conjunto residencial com 600 casas na sua própria fazenda. E foi uma revolução porque você tinha toda a estrutura de moradia para o trabalhador rural. E esse trabalhador passou a ter uma casa, com água e esgoto, com área de lazer”, lembra o professor.
Por mais de 25 anos, a Maísa esteve na liderança da fruticultura no Rio Grande do Norte e alcançou projeção nacional e internacional na produção e beneficiamento de frutas. Naquela época, a produção de melão em larga escala e outras frutas no Rio Grande do Norte estava concentrada em quatro ou cinco empresas.
Nenhuma delas, incluindo a Maísa, sobreviveu. Voltadas para o mercado externo, sucumbiram na virada dos anos 90 para 2000. “Primeiro teve o Plano Real, os contratos que as empresas tinham eram em dólar. E o dólar passou de R$ 4 para R$ 0,80. Isso dificultou muito a sobrevivência das empresas de porte médio e grande que exportavam. A inflação também era muito alta na década de 90 e uma inflação alta é muito difícil para o produtor, porque ele vai ter que pagar os seus empréstimos com a moeda atualizada, com juros elevados.”
No rastro do sucesso da Maísa, agrônomos e ex-funcionários criaram novas empresas, e grupos internacionais chegaram à região de Mossoró e ao Ceará. Entre elas, a Delmonte Fruits, uma das seis maiores produtoras de frutas do mundo, e a Nolem, que assumiu a liderança na produção de melão por cerca de oito anos. Ambas encerraram as atividades entre os anos de 2008 a 2009.
“A Agrícola já nasceu aproveitando o mercado da Nolem. Quando a Maisa fechou, os empresários criaram essa outra empresa. Mas também tinham alguns vícios de gestão da antiga Maísa. E aí ela ficou só oito anos aberta. Entra a Agrícola Famosa e aproveita todos os clientes internacionais da antiga Maísa e da Nolem. E também da Delmonte Fresh Produce, que é uma gigante internacional”, relembra Josivan Barbosa.
No semiárido, água segue caminho do poder
O Brasil exporta melão há 40 anos. Neste período, o país atravessou crises econômicas e políticas, uma nova moeda surgiu, empresas de frutas foram à falência, mercados compradores criaram novas exigências, a tecnologia de irrigação e o melhoramento genético das frutas avançaram muito. O Brasil se consolidou no mercado global de frutas.
Mas o pensamento da elite econômica rural pouco mudou de lá pra cá, como observa o agrônomo. “A Maísa sempre foi governo. A exemplo de hoje, quando você pega o empresariado da agricultura irrigada aqui é mais ou menos o mesmo pensamento do empresário de grãos e de carnes. Eles têm esse entendimento de que realmente o trabalhador rural não precisava desse apoio todo que recebe hoje.”
Em que pese todo o rearranjo produtivo, econômico e político vivenciado em quatro décadas, a água no semiárido continua seguindo o caminho do poder econômico. Já naquela época, a Maísa produzia melão e outras frutas com a água do aquífero Açu. A empresa chegou a ter 11 poços profundos de 400 a 500 metros de profundidade, graças à facilidade em obter crédito de bancos públicos e ao fato de ter em sua própria estrutura especialistas em perfuração de solo.
Hoje, essa é a fonte de água que está em disputa para sustentar a potencial demanda chinesa. Mas não a única – há prospecção de novos recursos hídricos para produção de frutas em estados como Piauí e Maranhão. “A pergunta central aqui é: vamos usar indiscriminadamente essa água que é para o consumo humano, vamos usar para a irrigação?” questiona Barbosa.
Resposta Agrícola Famosa
Procuramos a Agrícola Famosa, por e-mail e telefone, mas a empresa não respondeu aos questionamentos.