Políticos e entidades sindicais têm trabalhado a favor das indústrias fumageiras multinacionais, enquanto programas de diversificação de cultivos esbarram no corte de verbas e na falta de políticas públicas
Raul da Silva, de 32 anos, vive em uma propriedade rural no interior de Paraíso do Sul (RS). Ali, o agricultor chegou a plantar cem mil pés de tabaco. Afinal, a cultura é predominante em toda a região central do Rio Grande do Sul e o produtor iniciou a trajetória no campo, seguindo o destino seguro que lhe foi prometido, assim como a tantos outros moradores locais. Quando pensou em diversificar por meio de produção de leite, esbarrou na seca e no baixo preço. Foi assim que ele desistiu e retornou para o tabaco, plantando, atualmente, vinte mil pés a mais do que antes. “A gente tem que ter coragem pra ficar”, diz.
Em Agudo, cidade vizinha, a 250 km da capital Porto Alegre, Edson Weise já chegou a cultivar 182 mil pés de tabaco. Apesar dos obstáculos envolvendo mão de obra, intoxicação por veneno, dificuldades de crédito bancário e vendas frustrantes, o agricultor de 52 anos não vê a possibilidade de deixar totalmente a cultura, embora plante cebola, morango, mandioca, milho e abacate.
A preocupação sobre a renda também é do agricultor Celso Ruff, de 58 anos, morador de Paraíso do Sul. Junto com a esposa, planta fumo burley (de corda), além de mandioca, batatinha, milho e arroz. Porém, os planos de priorizar a cultura do tabaco persistem, junto do sonho de que os jovens familiares também sigam no campo.
As jornadas de trabalho de quem planta fumo são intensas. No período de colheita, muitos agricultores trabalham de 12 a 16 horas por dia. Além de colher o fumo, precisam levantar de madrugada para colocar lenha no forno (que está secando o fumo). Nesses meses, dormem pouco. No verão, com altas temperaturas, a rotina fica mais exaustiva. Não tem feriado. Nem final de semana. Os festejos de final do ano, quando muitos brasileiros viajam e se reúnem para aproveitar o Natal e o Ano Novo, não incluem quem planta fumo. Nada de comemoração. Se o dia é “bom” na lavoura, inclusive colhem fumo nas datas festivas.
O grande esforço empregado conecta os agricultores, com um pedido em comum: a valorização da agricultura familiar. Pedido não atendido, por influência de grupos com grande concentração de poder econômico e político: em 2017, no último Censo Agropecuário, houve uma redução de 9,5% no número de estabelecimentos classificados como de agricultura familiar.
Já sobre os jovens que não querem seguir no campo, a decisão, geralmente, é de morar na cidade. Contudo, não sem enfrentar preconceitos, até mesmo em relação ao sotaque. Por vezes ingênuos, acabam em armadilhas e, comumente, cedem aos subempregos. Quando não tem “muito estudo”, nem as vagas precárias conseguem manter. Vai-se embora o pouco sustento e a volta ao trabalho no campo, com o plantio de tabaco, é inevitável.
Críticas à cadeia produtiva também vem de trabalhadores de dentro das fumageiras. Um dos pontos de quem defende a indústria do tabaco são os empregos gerados. No entanto, dados do Ministério do Trabalho e Previdência apontam que, em 2022, as fábricas de fumo empregaram apenas 12,6 mil pessoas no Brasil.
E na ponta urbana, o problema social não é menos grave. Duas safristas ouvidas pela reportagem contam sobre as condições reais enfrentadas para fazer parte desse número. Elas desempenham diversas funções, dependendo da forma de contrato. Podem ficar apenas na montagem de caixas (onde o fumo é depositado), ou, então, nas esteiras, fazendo mais uma limpeza e qualificação do fumo. É um serviço altamente repetitivo.
Mãe e filha, as safrista preferiram não se identificar, por medo de retaliações, Elas criticam a forma de contratação. São dispensadas de meses em meses e costumam ser contratadas geralmente em janeiro, até julho/agosto. Ganham pouco mais de um salário mínimo. Com isso, nos meses fora da indústria, acabam procurando a sobrevivência financeira como ajudantes exatamente nas colheitas de tabaco.
As safristas também relatam que a indústria oferece uma cesta básica mensal, desde que o funcionário não falte um dia e não chegue atrasado. “Quando minha filha está doente e não pode ir para a creche, preciso ficar com ela. Daí, não recebo a cesta básica e isso faz diferença pra nós”, diz a mãe. “Sem contar que não se pode ir muito ao banheiro, não pode usar o celular e sempre tem um superior [geralmente, um homem] vigiando.”
Vera Luiza da Costa e Silva, médica sanitarista, pesquisadora da Fiocruz e atual secretária executiva da Convenção-Quadro Para o Controle do Tabaco (CQCT), explica que a precarização na zona rural e na zona urbana se cruzam e se somam: “Temos uma problemática social que não é, de maneira alguma, abordada ou contemplada nas políticas de governo.”
Para Tânia Cavalcante, que também foi secretária-executiva da Convenção-Quadro, por 19 anos, explica essa situação: “Os agricultores são mantidos numa espécie de escravidão moderna, isolados, presos à dívidas, sob pressão produtiva do intensivo trabalho e sob pressão ideológica dos agentes da cadeia produtiva de tabaco. As denúncias, inclusive acadêmicas, sobre essa situação são antigas”.
Entrelaçadas, essas histórias, do campo ao urbano, e de volta ao campo, bem como os dados de queda de propriedades da agricultura familiar, têm explicação.
A diversificação sofre
Os números são explicados depois de 2016, com o fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário – na época, o presidente era Michel Temer (MDB). No caso dos agricultores, o maior incentivo para diversificação vinha do governo federal, como o Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco (PNDACT), criado após o Brasil ter ratificado, em 2005, a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) – o primeiro tratado internacional de saúde pública firmado no mundo.
Os agricultores que acreditam na diversificação, no entanto, sofrem com a sabotagem constante da indústria do tabaco no PNDACT, Não bastasse isso, também enfrentam as reduções de investimento público em eixos como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), utilizado pelo agricultor Edson Weise para comercializar os alimentos no município de Agudo, a partir do direcionamento a compras públicas de produtos da agricultura familiar para escolas, hospitais e projetos sociais. Desde 2019, com Jair Bolsonaro (PL) na presidência, as verbas diminuíram agressivamente e essas vendas deixaram de ocorrer.
Entre 2012 e 2014, o PAA teve, em média, R$ 1 bilhão ao ano. Já a partir de 2015, o montante baixou para cerca de R$ 600 milhões. Em 2019, a redução foi drástica: R$ 168 milhões. Em 2021, o valor seguiu em declínio, para R$ 135 milhões.
Considerada a oitava maior produtora de alimentos do mundo, segundo pesquisa do governo federal em 2018, a agricultura familiar brasileira também conta – ou deveria contar – com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Criado para auxiliar no processo de diversificação da produção, investindo em culturas mais saudáveis e igualmente rentáveis, o crédito chegou a ser apropriado por grandes empresas fumageiras, que acessavam o programa para financiar a produção de fumo.
Estudos mostram que, no Rio Grande do Sul, o tabaco chegou a absorver sozinho 46% do crédito subsidiado para custeio do Pronaf, 55% em Santa Catarina e 16% no Paraná. Em 2002, o Tribunal de Contas da União (TCU), em relatório de auditoria sobre o Pronaf, avaliou positivamente a iniciativa, mas orientou “coibir o favorecimento das empresas fumageiras com esse recurso”.
O parecer destacou o fato de que, em toda a história do Pronaf, a produção de tabaco foi a mais financiada com esse recurso, chegando a contar com 25% de todas as operações de crédito, com 98% desses financiamentos concentrados na região Sul. O TCU considerou, ainda, que “sendo o fumo reconhecidamente prejudicial à saúde, é equivocada a destinação de recursos federais ao setor” e endossou a resolução do Banco Central, de janeiro de 2001, que excluiu a produção de tabaco dos benefícios do programa.
Jaime Weber, agroecologista que mora em Santa Cruz do Sul (RS) e que trabalhou no Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), explica que quando falamos de crédito para uma determinada linha de produção, o mesmo se torna contraditório no momento em que se pretende fortalecer os sistemas de produção hegemônicos. “O agricultor quando vai ao banco, pergunta: tem crédito disponível para o quê? Para qual linha de produção? Isso é péssimo. Ele sabe que nem sempre consegue fazer o que quer. Não tem um crédito para diversificação da propriedade”, pontua.
No caso dos agricultores de tabaco Edson, Raul e Celso havia o desejo de diversificar totalmente as propriedades, mas eles se depararam com os cortes no incentivo à agricultura familiar e o estigma de que não há nada mais rentável do que o tabaco para quem tem uma propriedade menor no Sul do país.
Tânia Cavalcante avalia que “os agricultores que plantam tabaco, embora sejam agricultores que produzem em regime familiar, fazem parte de uma cadeia de agronegócio comandada por grandes transnacionais que decidem como e quando devem plantar tabaco. São mão de obra a baixo custo a serviço de empresas transnacionais que as contratam sem nenhum ônus trabalhista”.
Profissionais da dubiedade
Heitor Schuch, deputado federal pelo PSB e presidente da Frente Parlamentar da Agricultura Familiar do Congresso, afirma: “Sou defensor da agricultura familiar, independente da cultura que ela produza”. Porém, ele também não esconde a força e atuação em prol da cultura do fumo na região que representa, Santa Cruz do Sul, conhecida como a terra do tabaco, por concentrar indústrias como a British American Tobacco (ex Souza Cruz), Universal Leaf e JTI. “Defendo os produtores de tabaco, por entender que essa cultura garante a soberania econômica e social de milhares de famílias, não só agricultores, mas de todos os empregos que o setor gera”, defende o parlamentar.
A defesa dos “políticos do tabaco” é vista de maneira diferente por Tânia Cavalcante, que explica que, apesar dos avanços na política de controle no Brasil, ao analisar a trajetória de cada lei ou regulação para a redução do tabagismo, percebe-se lentidão e um registro de embates entre a saúde pública e os porta-vozes da indústria: “Quando falo de porta-vozes, me refiro a organizações como Afubra, Sinditabaco, AmproTabaco e, principalmente, a políticos beneficiados pela relação com empresas fumageiras”, denuncia.
Essa linha é compartilhada por Vera Luiza da Costa e Silva, secretária executiva da CQCT: “Não tem a menor dúvida de que os políticos da bancada ruralista e da agropecuária fazem de tudo para enfraquecer as políticas públicas”, diz.
Vera cita a Câmara Setorial do Tabaco – criada em 2004 e que reúne representantes dos diversos elos da cadeia produtiva. Romeu Schneider – secretário da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) – é o atual presidente. Para ele, a câmara existe para olhar “a questão do produto” – em relação à venda e às condições em que o agricultor trabalha. No entanto, ela é usada para bater no governo, nas políticas públicas de saúde, ou qualquer tipo de ação que vá contra a venda do produto. Segundo Vera, via articulações no Congresso Nacional, políticos se organizam para bloquear a tramitação e se manifestar com objeções sistemáticas às medidas de diversificação.
A ferrenha defesa dos interesses da indústria do tabaco tem um “impacto positivo” na carreira dos parlamentares, já que, segundo a médica sanitarista, eles têm as campanhas pagas com dinheiro gerado pelas fumageiras. Mesmo com a proibição do financiamento por corporações, executivos ligados à indústria seguiram pagando contas de campanhas eleitorais. “[Os que se beneficiam] São políticos que vêm, geralmente, do Sul do Brasil e que chegam ao Congresso Nacional defendendo o tabaco, enfraquecendo as políticas públicas alternativas”, revela.
Já mostramos aqui doações de empresas a candidatos nas eleições brasileiras, principalmente políticos envolvidos na Associação dos Municípios Produtores de Tabaco (Amprotabaco). A nova diretoria foi eleita em março de 2023, com foco no fortalecimento da entidade, que se prepara para provocar embates na próxima Conferência das Partes (COP 10), que inclui a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), que será sediada no Panamá, entre os dias 20 e 25 de novembro deste ano. Um dos grandes enfrentamentos se dará em torno do cigarro eletrônico.
De olho na COP, os “dirigentes” da cadeia produtiva, entre eles a Afubra e o SindiTabaco, atuam pela reinstalação da Frente Parlamentar em Defesa dos Produtores da Cadeia do Tabaco. Em março, junto com a reinstalação, também ocorreu a 69ª Reunião da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco, que contou com a participação de Iro Schünke, presidente do Sinditabaco, e de Benício Werner, presidente da Afubra.
Inclusive, a nova diretora-executiva da Associação Internacional dos Países Produtores de Tabaco (ITGA), Mercedes Vázquez, da Espanha, esteve em fevereiro em Santa Cruz do Sul para falar sobre a redução global de tabaco e os desafios que serão enfrentados pelo setor durante a COP. Na coletiva de imprensa, na sede da Afubra, ela afirmou, em tom ameaçador, que “as reuniões da COP visam a acabar com a produção do tabaco“. O encontro reuniu representantes do SindiTabaco e do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias do Fumo e da Alimentação (Stifa). Mercedes também argumentou que, “nesse contexto, é preciso decidir qual alternativa será dada àquelas pessoas que ainda tiram o sustento da produção”.
Marcus Vinicius Pegoraro, prefeito de Canguçu (RS), reconduzido à presidência da entidade, enfatizou, também em coletiva de imprensa “que é o pequeno produtor de tabaco que fortalece o comércio e investe em construção civil nos municípios, ou seja, gera retornos para além do meio rural. Defender essa receita é nosso dever e a AmproTabaco tem esse papel de unir forças para fazer essa defesa com cada vez mais intensidade”.
Pegoraro cita como exemplo o ano de 1997. Antes do tabaco, em Canguçu o orçamento era de R$ 6 milhões. Hoje, já ultrapassa os R$ 220 milhões em arrecadação de ICMS, segundo ele. A conta do prefeito, apenas olhando para os números frios, parece boa, mas não leva em consideração, por exemplo, os prejuízos aos agricultores familiares que não conseguem acessar políticas de diversificação, o sofrimento das famílias que dependem exclusivamente do tabaco e o impacto do cultivo na saúde pública, o que também reflete nos cenários econômicos municipal, regional e nacional.
Lobby, lobby, lobby
Alberto Heck é vereador pelo PT em Santa Cruz do Sul, mas possui um olhar crítico sobre o tema: “Existe um lobby muito forte por parte das empresas, que financiam a eleição e a atuação de determinados políticos”, diz. “Teoricamente, eles defendem a ‘cadeia produtiva do tabaco’, mas nunca estão do lado dos fumicultores quando ocorre o processo de definição de preços mínimos do produto. Ou seja, eles defendem a cadeia a partir dos interesses das indústrias”, explica.
O vereador ressalta que existe uma interpretação equivocada do termo diversificação. Alguns setores da mídia e os discursos das empresas contribuem para isso, fazendo parecer que se propõe um processo de “substituição de cultura”. Nas palavras de Heck, é como se os agricultores e o resto da sociedade precisassem ser convencidas de que existem alternativas viáveis ou de que necessitam da segurança, de uma “produção que dominam”. O que também é veiculado na mídia regional dos municípios, onde o plantio de fumo está concentrado.
As empresas de mídia, por exemplo, alegam que muitas empresas podem fechar as portas, o que afetaria irreversivelmente o PIB dos municípios, contribuindo para o desemprego. A insistência nesse discurso causa temor tanto aos agricultores como aos moradores e comerciantes das áreas urbanas, locais onde a onipresença do tabaco está incrustada no imaginário popular.
Na opinião do vereador, a redução da produção poderia representar a valorização do produto, considerando a lei de mercado (oferta e procura), e a possibilidade de agregar outras plantações traria a alternativa de renda em caso de baixa da safra do tabaco.
Também de Santa Cruz, o deputado federal Marcelo Moraes (PL), defende outros interesses. Inclusive, já mostramos aqui que Moraes confessou ter “combinado” com Onyx Lorenzoni, então ministro do Trabalho e Previdência do governo Bolsonaro, a extinção do colegiado antitabaco.
Moraes é conhecido pela “defesa dos fumicultores” e da indústria. Foi ele também que protocolou na Câmara dos Deputados o projeto de lei que cria o Fundo Nacional da Fumicultura (FNF), que não foi aprovado. A reportagem entrou em contato com a assessoria do parlamentar, mas não houve aceite de entrevista até o fechamento desta matéria.
Para Tânia Cavalcante, políticos como Moraes “conseguem inibir a evolução e a aprovação de medidas nacionais para reduzir o tabagismo”. Como defesa, as indústrias argumentam que essa busca pela redução do tabaco aumentará o contrabando de cigarros e a perda de arrecadação. “Mas não dizem o quanto essas mesmas empresas de tabaco que operam a cadeia produtiva estiveram envolvidas no fomento ao contrabando de cigarros, tendo sido alvo de litígios da União Europeia e Canadá “, conta.
O tamanho do desafio
A região Sul é responsável por 95% da produção de tabaco no país. Santa Cruz do Sul (a 150 km de Porto Alegre) é onde a maior parte dos agricultores comercializa o fumo. Porém, ano após ano, muitas vendas se tornam frustrantes com a comercialização abaixo do preço esperado. Isso porque, o fumo é uma monocultura e “cria uma dependência muito grande do humor do mercado internacional”, afirma o vereador Alberto Heck, também professor da rede municipal de ensino.
Mesmo com a instabilidade, os produtores persistem, segundo Heck, muito pela crença de que não há nada mais rentável do que o tabaco, que é tomado pelo discurso hegemônico como a única cultura que garante o sustento do pequeno produtor: “Talvez, porque existe um período restrito e específico de compra e pagamento do produto, cria-se [no agricultor] uma falsa ideia de que se ganhou um monte’ de dinheiro”, afirma.
Ou seja, na verdade, a remuneração concentra o resultado de praticamente um ano de trabalho, não apenas dos três ou quatro meses em que ocorre a comercialização. Se considerarmos a variação e o crescente desequilíbrio entre o valor pago pelo produto em relação ao aumento dos insumos, ainda que ocorra uma boa colheita e uma venda satisfatória, ou o produto, ou a mão de obra, quando não os dois, não são valorizados.
Com esse cenário, a diversificação, muitas vezes, fica apenas como segunda forma de renda. Sérgio Reis, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Agricultores e Familiares (STR) de Santa Cruz do Sul, diz que a diversificação é realizada na região durante a entressafra do plantio do tabaco. Isso ocorre a partir da produção leiteira, hortigranjeiros, arroz, soja, gado de corte, piscicultura, reflorestamento, milho, mandioca, nozes, como segunda fonte de renda ou, na maioria dos casos, para alimentar a família.
Como a produção de tabaco na região central gaúcha é basicamente concentrada em pequenas propriedades de agricultores familiares, Reis concorda que a redução do orçamento para agricultura familiar também traz insegurança, já que “o agricultor precisa ter garantia de renda pelo trabalho”.
A médica Vera Luiza conta que muitos agricultores não gostam de plantar fumo, mas a indústria “brinca” de fazer diversificação: “Ela [a indústria] até ‘estimula’ para que se façam hortas e outros plantios na entressafra. Só que isso não é uma diversificação. É utilização da terra com outro tipo de produto, mas desde que, naquele período determinado, o agricultor cultive o tabaco”, ressalta.
Como exemplo, Vera cita o caso da Afubra. Para ela, é emblemático, porque a associação, na verdade, “contempla muito mais os interesses da indústria do que os interesses dos plantadores de tabaco na região Sul do Brasil”, ainda que possa representar prejuízo para as quase 130 mil famílias que a integram.
A reportagem procurou a assessoria da Afubra, que optou por não dar entrevista, assim como o SindiTabaco, que afirma garantir a sustentabilidade do setor e representar “os interesses comuns da indústria do tabaco”.
Frustração multiplicada por anos
Quando chega a hora da comercialização, a tensão predomina. Essa costuma ser uma das maiores queixas dos agricultores. Um trabalho realizado arduamente, mas que, na hora da venda – com preços pagos abaixo da tabela – traz frustração. Agricultores da região central e do Vale do Rio Pardo vendem o tabaco geralmente em Santa Cruz do Sul ou em Venâncio Aires, onde estão as indústrias fumageiras. Devido ao deslocamento, acordam de madrugada para chegar de manhã, bem cedo, nas empresas.
Enquanto os caminhões descarregam o fumo, os agricultores podem acompanhar as vendas e até “negociar” com o classificador, mas, normalmente, os diálogos são em vão. “A maior dificuldade sempre foi com as vendas estressantes”, ressalta o agricultor Edson Weise, que já chegou a pagar frete para levar o caminhão cheio de tabaco de volta aos galpões da propriedade onde mora.
Esse também foi o caso do irmão de Edson, Elaudio Weise, hoje aposentado, mas que também já pagou frete para trazer o fumo de volta aos galpões de casa, após negociações fracassadas, já que os preços das folhas que cultivava eram desvalorizados. “Teve vez que acordei cedo, às 4h, tratei o bicharedo, e fui de carro, de Agudo até Santa Cruz do Sul. Era pra eu estar na firma às 8h. Quando cheguei lá, estava tudo atrasado. Eu estava cansado e, depois, tive uma venda péssima. Precisava do dinheiro, mas o que queriam pagar pelo produto, não tinha nem como vender. Paguei o frete para cada fardo de fumo e mandei trazer de volta para o meu galpão. É triste.”
Dependendo de quanto o agricultor planta, as vendas nas fumageiras variam de três a seis vezes em um ciclo de comercialização. Muitos deles, quando sabiam que conhecidos estavam vendendo no mesmo dia, combinavam de ir junto para economizar no combustível.
Hoje, o cenário é um pouco diferente, mas, nem por isso, os agricultores deixam de sair da propriedade para ir até a indústria e tentar vender o produto. Para mudar esse cenário, foi aprovada a Lei nº 15.958/23, que prevê que a classificação do fumo seja feita na propriedade do fumicultor. A questão é que a lei ainda não está em vigor e pouco se sabe de como será aplicada na prática.
Brecha de esperança vs exploração
Alguns modelos resistem para quem decide diversificar. Mesmo na terra do fumo, o setor de hortifruti avança e gera bons frutos, literalmente. A jovem Patrícia Nichterwitz, de 25 anos, mora no interior de Santa Cruz do Sul e comercializa hortaliças. Filha de fumicultores, a jovem decidiu ficar no campo, mas com outra prioridade. “Meus pais me falaram que quando eu fosse jovem, não ficaria na lavoura. É muito difícil, mas eu sei que na cidade também é”, revela.
Patrícia relata que a prefeitura apoia agricultores familiares na diversificação em Santa Cruz do Sul. Com a seca dos últimos cinco anos, que atrapalhou a produção de hortaliças, houve investimento em cisternas – aproximadamente mil unidades. O investimento, ainda baixo se pensarmos no número de famílias de agricultores, foi de RS 2 milhões. Também passou a ser oferecido aos funcionários públicos um vale de R$ 100, que deve ser gasto mensalmente nas feiras rurais.
O caminho trilhado pela jovem Patrícia é visto com bons olhos por Tânia Cavalcante. “Ao longo de décadas, muitos plantadores de fumo foram perdendo o conhecimento e a sabedoria do manejo tradicional da terra”.
O agroecologista Jaime Weber defende uma agricultura familiar organizada em cada região: “É fundamental a formulação de um projeto que aponte as potencialidades de cada município, mas com uma visão e construção regional para garantir que a diversificação não ocorra apenas nas propriedades individualmente, mas resulte em uma produção diversificada em toda a região”.
A passos lentos e com olhar para o futuro, o medo insistente sobrepõe o sonho daqueles que, longe da cidade, buscam viver da agricultura. Nem sempre podendo escolher, é comum ficar à mercê de quem pouco conhece a realidade do que é plantar fumo, um trabalho que, por vezes, sofre com a seca, em outras, com a chuva, e via de regra, com a exploração.