Produtos passam a estampar alertas de alto teor de açúcar, gordura e sódio em embalagens; em outros países, indústria driblou regras e trocou açúcar por adoçante, aumentando consumo de aditivos
Até outubro, quase todos os produtos ultraprocessados do mercado terão que se adaptar às novas regras de rotulagem do Brasil – o que inclui a inserção de alertas, na frente da embalagem, indicando se o produto tem alto teor de açúcar adicionado, gordura saturada e sódio. A medida foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) há 3 anos, para auxiliar consumidores a fazerem escolhas alimentares mais conscientes.
Só que nem tudo é informado nesse alerta. É o caso dos edulcorantes – aditivos alimentares, conhecidos popularmente como adoçantes, que têm um sabor doce muito mais intenso que o açúcar, como o aspartame (200 vezes mais intenso) e a sucralose (600 vezes mais intensa). A experiência do Chile, primeiro país da América Latina a implementar o sistema de alertas frontais, sete anos atrás, mostra que a medida pode ter um efeito indesejado: estimular a substituição do açúcar por adoçantes – uma troca que muitos consumidores não percebem, porque esses aditivos são informados apenas em letras miúdas, escondidos lá na lista de ingredientes, na parte de trás dos produtos.
Pesquisas mostraram que, para evitar os alertas de “alto em açúcar”, a indústria chilena reduziu a quantidade do ingrediente, inserindo edulcorantes, o que levanta uma série de preocupações, como a superexposição a aditivos. “Porque, aí, não vai ser só o adoçante que o diabético colocava no cafezinho, porque ele quer manter um paladar doce. Ele vai consumir no café, aí, ele vai botar um docinho diet para comer, vai tomar um iogurte, e aí ele começa a botar tudo diet na vida dele. Invariavelmente, ele vai estar exposto a mais adoçante e, muito provavelmente, a mais diversos outros aditivos”, explica a nutricionista e pesquisadora Vanessa Montera.
Também há preocupação quanto à influência no paladar e à possibilidade de confundir o consumidor. Em um dos estudos chilenos, feito com 250 crianças, os autores afirmam que “é improvável que os pais saibam o que são adoçantes não nutritivos [edulcorantes], assim, em sua maioria, desconhecem a presença deles nos alimentos e não regulam a quantidade ingerida por seus filhos”, o que pode modular o paladar, fazendo-os gostar ainda mais do sabor doce.
A experiência do Chile foi pedagógica para outros países da região e também para órgãos internacionais. Em 2016, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), órgão vinculado à Organização Mundial de Saúde (OMS), criou o modelo de perfil nutricional da OPAS, para auxiliar governos latino-americanos a implementarem políticas públicas para desencorajar o consumo de alimentos não saudáveis, associados ao desenvolvimento de obesidade, diabetes e outras doenças crônicas não transmissíveis (DCNT).
O perfil estabelece critérios para identificar produtos processados e ultraprocessados com alto teor de açúcares, gorduras e sódio, bem como defende a adoção de alertas frontais nas embalagens. Também recomenda alertas para edulcorantes, porque “o consumo habitual de sabores doces (baseados em açúcar ou não) promove a ingestão de alimentos e bebidas doces, inclusive daqueles que contêm açúcares”.
Nos últimos anos, dois países latino-americanos aprovaram o uso desses alertas. Em 2020, o México, e no ano seguinte, a Argentina. O modelo adotado é parecido: ambos se baseiam na proposta da OPAS e informam quando o produto “contém edulcorantes”. Na Argentina também é preciso acrescentar que “não é recomendado para crianças”.
O Brasil não seguiu esse caminho e agora corre o risco de viver um remake da novela chilena. Quando as novas regras de rotulagem estavam em discussão, entidades recomendaram à Anvisa a adoção dos alertas para edulcorantes – dentre elas, a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a própria OPAS. Mas a Anvisa, pressionada pela indústria, decidiu não adotar os parâmetros da OPAS para nutrientes críticos, nem o alerta de edulcorantes.
Primeiro a Anvisa alegou, em um relatório preliminar em 2018, que “tais propostas aumentariam ainda mais a quantidade de informações transmitidas aos consumidores ao invés de simplificá-las” e que não havia evidências científicas demonstrando que o consumo de edulcorantes “causa excesso de peso e DCNT”.
Já no relatório final de análise do impacto da medida, que substituiu o anterior, a agência reconheceu o risco de “substituição total ou parcial dos açúcares totais por edulcorantes, com potencial aumento da exposição a estes aditivos”. Mas, no mesmo documento, alega que não adotou o alerta para edulcorantes porque se tratam de aditivos e não nutrientes, como é o caso do açúcar. Também afirma que a avaliação dos requisitos sanitários para uso de aditivos estaria no escopo de outros projetos, de outros setores, da própria agência.
Vale lembrar que, entre o primeiro e o segundo relatório, houve reação. A Associação Nacional de Atenção ao Diabetes (ANAD) – que tem como parceiros, basicamente, a indústria farmacêutica, de ultraprocessados e doces, a exemplo de PepsiCo, Nestlé, Finn, Garoto e Kibon – acusou a proposta de ser discriminatória e limitar o livre-arbítrio do consumidor.
Em nota, argumentou que “estamos numa democracia e não podemos aceitar esta postura autocrática de pretender impingir a eles [diabéticos] o uso de produtos in natura”, “por capricho e interesses econômicos e ideologias políticas de alguns”. Mas a orientação para evitar ultraprocessados e priorizar alimentos in natura não é mero capricho, é uma recomendação de órgãos internacionais, como a OPAS, e do Guia Alimentar para a População Brasileira. A ANAD ainda argumentou que “sabe-se também da compensação psicológica que o alimento saboroso produz”, para questionar “porque então pretende-se obrigá-los a se alimentar sem esse prazer”.
Esses são argumentos recorrentes da indústria. Em uma palestra oferecida pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad), que tem como associadas a Ajinomoto, Cargill, PepsiCo, Coca-Cola, Nestlé e outras, a nutricionista Bruna Rosito diz que “o ideal seria a gente falar para um paciente com diabetes ou obesidade ‘olha, diminua drasticamente o açúcar, para você conseguir controlar essa doença’, mas a gente não vai [dizer], porque o açúcar está muito além de ser só um alimento, ele traz conforto”. E completa: “aqui existe a grande chance, a grande deixa, para o edulcorante, porque eu não preciso tirar isso do meu paciente, eu não preciso que ele pare de sentir o sabor doce”. A palestra foi realizada no ano passado, no último Congresso Brasileiro de Nutrologia, da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).
Questionada, a Anvisa reafirmou, em junho, que “não incluiu os edulcorantes como parte da rotulagem nutricional frontal porque a rotulagem nutricional não visa destacar a presença de ingredientes”. Também elencou uma série de outros motivos para não ter adotado o alerta para edulcorantes, como “a qualidade das evidências científicas disponíveis sobre os possíveis riscos à saúde”. É preciso lembrar, no entanto, que os estudos que poderiam fornecer evidências mais robustas, como um ensaio clínico com humanos, são caros, complexos e, no caso dos aditivos, podem representar um desafio ético, visto que seria preciso expor seres humanos a substâncias para as quais já há evidências indicando riscos.
“As pessoas precisam considerar outras maneiras de reduzir a ingestão de açúcares”
Os adoçantes surgiram como solução milagrosa da indústria para quem tem diabetes, obesidade ou simplesmente quer emagrecer. No entanto, há cada vez mais evidências científicas levantando dúvidas sobre a segurança e eficácia do consumo desses ingredientes no cotidiano e no longo prazo.
Em maio, a OMS publicou uma nova diretriz sobre o uso de adoçantes que não contém calorias (caso do aspartame, sucralose, advantame, estévia e outros edulcorantes), na qual afirma que a substituição do açúcar por esse tipo de adoçante não ajuda no controle de peso a longo prazo. “As pessoas precisam considerar outras maneiras de reduzir a ingestão de açúcares livres, como consumir alimentos com açúcares naturais, como frutas, ou alimentos e bebidas sem açúcar”, disse o diretor de Nutrição e Segurança Alimentar da OMS, Francesco Branca.
A diretriz se baseou em uma revisão de centenas de estudos sobre o assunto. Foram encontradas associações entre o consumo desse tipo de adoçante e o desenvolvimento de DCNT, câncer, problemas na microbiota intestinal e outros. Em nota, a Anvisa afirmou que “a recomendação é condicional, já que há necessidade de reunir mais informações sobre as consequências versus os benefícios da sua adoção” e que “está acompanhando atentamente a discussão sobre o tema e que se juntará a outros entes governamentais, particularmente o Ministério da Saúde (MS), e também a atores não governamentais, para avaliar a nova diretriz”.
No mês passado, outro órgão vinculado à OMS, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC, pela sigla em inglês), também atualizou o status de um dos edulcorantes mais utilizados pela indústria, o aspartame – presente, por exemplo, na Coca-Cola Zero. A Agência o classificou como possivelmente cancerígeno para humanos.
Nenhuma das duas revisões – da OMS e da IARC – tinha o objetivo de reavaliar a segurança dos produtos que contém esse tipo de aditivo. Mas, no caso do aspartame, outro órgão vinculado à OMS fez isso: o Comitê Conjunto de Especialistas em Aditivos Alimentares da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e da OMS – JECFA, pela sigla em inglês.
O Comitê considerou que “não havia razão suficiente para alterar a Ingestão Diária Aceitável (IDA)”, uma espécie de limite seguro de consumo de um determinado aditivo. Cada edulcorante tem a sua IDA e, no caso do aspartame, são 40 mg por peso corporal. A nota da ONU sobre o assunto diz que, para exceder a IDA, um adulto de 70 kg precisaria consumir mais de 14 latas de refrigerante diet em um dia.
O exemplo viralizou e surgiu até calculadora para saber quantos produtos você pode consumir por dia, sem exceder a IDA do aspartame. Sem nenhuma menção às recomendações oficiais para evitar o consumo de ultraprocessados – com ou sem aspartame. Um show de desinformação. A quantidade de edulcorantes presentes no produto não é descrita no rótulo, como acontece com o açúcar. Então, na prática, o consumidor não tem como fazer esse cálculo. Além disso, ninguém vive só de refrigerante diet, ainda mais 14. Na vida real, as pessoas consomem, muitas vezes sem saber, vários produtos ultraprocessados com adoçantes. Também não é incomum que um produto tenha mais de um tipo de edulcorante em sua composição. E não há estudos nem valores de referência para ingestão segura de misturas de aditivos alimentares. Então o buraco é bem mais fundo.
“É um sinal de alerta para a própria Anvisa, especialmente porque é uma consequência da norma”
Mesmo com essa decisão do Comitê ligado à ONU, de não mudar a IDA, a indústria não ficou satisfeita e reagiu à diretriz da OMS. A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad) publicou uma nota na qual “expressa preocupação com as conclusões divulgadas” e afirma que “a diretriz da OMS sobre o uso de adoçantes de baixa e sem caloria não manteve um rigor científico como o esperado”.
Mas, para ativistas que defendem os direitos do consumidor, a diretriz é um alerta. “Quando a gente tem um compilado desses [da OMS], que mostra uma direção mais acertada, mais nítida, traz um embasamento muito maior. Eu acho que é um sinal de alerta para a própria Anvisa, especialmente porque é uma consequência da norma deles”, afirma a coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Laís Amaral.
Questionada, a Anvisa informou que, atualmente, “entende que é necessário avaliar se outras medidas de rotulagem específicas para edulcorantes são necessárias” e que “o uso de edulcorantes em alimentos será objeto de Avaliação do Resultado Regulatório (ARR), a fim de verificar se a reformulação dos alimentos em resposta à rotulagem nutricional resultaria numa exposição acima daquela considerada segura, considerando os resultados que foram observados no Chile”. Ainda de acordo com a agência, o tema está em discussão no âmbito do Mercosul.
Também disse que “pretende realizar um diálogo setorial sobre edulcorantes para discutir, de forma mais ampla, as preocupações que têm sido identificadas em relação ao uso e consumo destes aditivos alimentares pela população brasileira e possíveis alternativas regulatórias, incluindo intervenções relacionadas à atribuição de uso de edulcorantes em alimentos e à rotulagem destas substâncias”. Mas não informou quando essa reunião deve acontecer e quais são as organizações convidadas.