O Joio e O Trigo

Por que chamamos ultraprocessados de produtos, e não de alimentos

Diante do avanço das evidências científicas sobre danos à saúde, o Joio decide explicitar essa escolha editorial como forma de reforçar que evitar ultraprocessados é uma tarefa urgente, porém coletiva

Ultraprocessados já são, na média, mais baratos no Brasil do que alimentos in natura e minimamente processados. 

Um maior consumo de ultraprocessados eleva o risco de morte prematura, diabetes, câncer e doenças cardiovasculares.

Evidências científicas cada vez mais sólidas apontam os ultraprocessados como um fator de risco para questões de saúde mental e declínio cognitivo. 

Diante disso, o Joio decidiu se posicionar de forma explícita: consideramos que ultraprocessados são produtos, antes de serem alimentos. E encorajamos outros veículos jornalísticos a darem esse passo. Ao longo de nossa trajetória, temos dado preferência a essa construção, mas jamais a havíamos explicitado. Esta é uma escolha que busca enfatizar que os ultraprocessados têm como principal razão de ser a lucratividade, e não a nutrição

O avanço inegável das evidências científicas, a criação de políticas públicas que buscam desestimular o consumo de ultraprocessados e o nosso momento enquanto veículo jornalístico nos levam a trazer este posicionamento ao público. Como exploramos ao longo da série “A máquina de criar problemas”, em nosso podcast, Prato Cheio, ultraprocessados são um enorme desafio para a humanidade no século 21. 

Entendemos a delicadeza da dimensão psicológica e social, uma vez que estamos diante daquilo que boa parte da humanidade está obrigada a consumir diariamente. É, realmente, triste e estarrecedor que assim seja. Durante o período mais duro da pandemia, emitimos um posicionamento sobre por que evitar o uso da expressão “comida-porcaria” – algo que mantemos.

Mas, nesse momento histórico, cumprir com o preceito básico do Guia Alimentar para a População Brasileira é não apenas necessário: é urgente. Evitar ultraprocessados é uma tarefa coletiva, inexequível do ponto de vista individual em um arranjo social, político e econômico que os coloca como prioridade total. 

A mesma dimensão psicológica e social é, para nós, a razão de evidenciar que ultraprocessados, do ponto de vista cultural, não são comida. Em nossa visão, ultraprocessados são algo que afeta o preceito constitucional que nos garante o direito humano à alimentação adequada. Aceitar que pessoas de baixa renda, em especial crianças, estejam fadadas a consumir ultraprocessados seria irresponsável e cruel. Precisamos de um conjunto de medidas voltadas à despromoção desses produtos e à promoção de alimentos saudáveis. 

Isso passa, essencialmente, por entendermos e comunicarmos o problema. Até a criação da classificação NOVA, em 2009-10, pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens), a indústria de ultraprocessados ainda surfava a onda pós-Segunda Guerra Mundial: era a indústria de alimentos, que estava nos ajudando a escapar da fome. Essa onda segue formando espuma, mas tem perdido força diante do avanço das evidências científicas. É preciso separar alimentos e formulações. 

Ultraprocessados são uma das obras-primas de um mundo que vai de mal a pior. De um conjunto de forças que, se não forem freadas, sem dúvida alguma nos levarão à extinção enquanto espécie – e, não menos grave, levarão à extinção de milhares de outras espécies que não contribuíram em nada para esse estado de coisas. 

Esses produtos são, ao lado das carnes, a expressão da Revolução Verde, que varreu métodos de produção tradicionais de alimentos em nome de promover monoculturas baseadas no uso intensivo de agrotóxicos e de tecnologias dominadas por um punhado de corporações. No caso brasileiro, e em boa parte do mundo, são também uma expressão da violência concretizada em expulsão de povos tradicionais, desmatamento, grilagem e trabalho escravo. 

Historicamente, os ultraprocessados existem para dar conta da enxurrada de trigo, milho, soja e açúcares decorrentes da produção intensiva alavancada pelos Estados Unidos. É impossível desconectar esses produtos da discussão sobre mudanças climáticas, com a qual contribuem duplamente, pela via da Revolução Verde e pelo alto uso de plásticos – a Coca-Cola é a maior produtora de lixo plástico do mundo. 

Se estamos dispostos a promover as mudanças necessárias enquanto espécie para escaparmos da extinção em massa, abandonar os ultraprocessados faz parte desse conjunto, tanto quanto a redução do consumo de carne. 

Do ponto de vista existencial e filosófico, ultraprocessados são uma ruptura com a nossa história enquanto espécie. Até então, a agricultura e a capacidade de transformação de alimentos haviam nos levado a avanços extraordinários. Toda inovação criada pela humanidade – inclusive as dos últimos dois séculos – dependeu da base segura estabelecida por esses dois fatores. 

Ultraprocessados têm alimentos como origem, mas são engenharias. São formulações. Farinhas, óleos e açúcares constituem ingredientes fundamentais, mas o que verdadeiramente dá aos ultraprocessados as características finais são aditivos. É fácil apreender essa questão olhando para a lista de ingredientes. Todo ultraprocessado sólido terá uma base muito semelhante: o que lhe confere características “únicas” são os aditivos, que permitem variar sabores, texturas e cores de produtos que, em essência, diferem muito pouco entre si. 

Nós poderíamos considerar que os ultraprocessados são uma entre tantas expressões da chamada “evolução humana”. Mas eles têm representado, na verdade, uma involução. A publicidade ostensiva e a substituição de alimentos por ultraprocessados nos levaram a uma inestimável perda de métodos de produção e transformação. Enquanto saúde, é inegável que os ultraprocessados são um fator relevante do pacote que tem levado a humanidade a, pela primeira vez, ter uma redução em sua expectativa de vida. 

As evidências científicas produzidas em especial ao longo dos últimos cinco anos são sólidas o suficiente para entender que ultraprocessados são, sim, um problema grave de saúde pública. Há um conjunto cada vez maior de revisões sistemáticas que expõem uma associação entre ultraprocessados e câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e morte prematura. Há um conjunto ainda incipiente, mas crescente, de evidências de que os ultraprocessados podem ter um impacto negativo também sobre a saúde mental da população. 

Esse avanço científico tem uma série de implicações práticas. Será necessário criar uma rotulagem diferente para ultraprocessados? Os governos deveriam retirar subsídios e isenções de impostos garantidos a esse setor com base na construção publicitária de que estão alimentando o mundo. E, enquanto sociedade, precisamos discutir os muitos caminhos necessários para fazer da alimentação adequada e saudável a mais disponível para todos, independentemente de origem, geografia e renda. 

Mais que um alimento

Antes de redigirmos este posicionamento, refletimos longamente e consultamos pessoas importantes no estudo científico sobre o tema. Destacamos, em especial, as reflexões de Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e justamente o criador da classificação NOVA. Na visão dele, a denominação como “produto” é insuficiente, porque arroz, feijão e mandioca também podem ser produtos. 

“O ultraprocessado é mais do que um alimento”, ele disse. “Porque se ele fosse totalmente artificial, ele não seria compatível com a vida, né? Se o alimento ultraprocessado não nutrisse uma pessoa que tivesse uma dieta básica, ele não sobreviveria. Mas esse é o perigo. Porque ele é um alimento, ele é um alimento com o qual você pode sobreviver durante muito tempo.”

Mas com consequências terríveis, porque se trata de um alimento inerentemente desbalanceado. E com a presença de elementos estranhos à nutrição. “Xenobiótico é uma coisa estranha à vida. Estranha, no caso, ao organismo. Então, xenobióticos é tudo que você coloca dentro do seu organismo e que ele nunca entrou antes. Do ponto de vista da nossa espécie, é estranho.”

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