O Joio e O Trigo

O sabor de uma doença pediátrica que a indústria do tabaco quer manter   

Exclusivo: profissionais da Anvisa falam da urgência em banir aditivos usados para viciar jovens      

Às vésperas de duas decisões importantes para o futuro do controle do tabagismo no Brasil, o Joio conversou com Ana Márcia Messeder e André Oliveira da Silva, profissionais do setor de Regulação e Vigilância Sanitária da Anvisa

Messeder é farmacêutica, sanitarista e epidemiologista. Tem 13 anos de experiência na regulação de produtos fumígenos. Silva é biólogo com doutorado em saúde pública pela Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz). Trabalha na regulação de fumígenos há 16 anos.

Ambos participaram da edição da RDC 14/2012, norma da agência que proibiu a utilização de aditivos – como mentol, saborizantes e aromatizantes – nos cigarros fabricados e comercializados no país. Silva e Messeder argumentam que os aditivos são utilizados pela indústria para facilitar a iniciação de crianças e adolescentes no tabagismo e, por isso, devem ser banidos. 

“O tabagismo é uma doença pediátrica. De cada dez fumantes, nove começaram a fumar antes dos 18 anos”, disse Silva durante a conversa. Eles também comentaram a posição da indústria sobre o tema e contaram o caminho percorrido pela RDC 14 até sua publicação, dez anos atrás. 

A entrevista ocorreu enquanto o Tribunal Regional Federal da 1ª Região julgava recursos das fabricantes de cigarro contra decisão que deu ganho de causa à Anvisa e considerou a norma de 2012 constitucional. Ao final, a decisão foi mantida pelo voto da relatora e dos colegas, mas o presidente da terceira sessão, Carlos Brandão, pediu vistas e paralisou a ação mais uma vez.

Em paralelo, o Supremo analisa outro recurso, este da Companhia Sulamericana de Tabacos, pedindo a revogação da mesma norma. Conforme contamos em reportagem anterior, a empresa é vinculada por órgãos de investigação ao bicheiro carioca Adilsinho e, em 2021, teve seu registro de fabricante cancelado.

Segundo pesquisa Datafolha encomendada pela ACT Promoção da Saúde, 70% da população é favorável à proibição dos aditivos.

Confira a seguir a entrevista, na íntegra.

Por que a Anvisa decidiu proibir, em 2012, a utilização de aditivos em cigarros?

André Silva: Basicamente, a Anvisa decidiu proibir os aditivos em cigarros e outros produtos de tabaco porque as evidências científicas são categóricas em apontar que eles facilitam o consumo de produtos de tabaco, especialmente por crianças e adolescentes. 

O tabagismo é uma doença pediátrica. De cada dez fumantes, nove começaram a fumar antes dos 18 anos. Então, a decisão da Anvisa visa impedir que esse produto fique mais agradável para crianças e adolescentes. 

Ana Márcia Messeder: Essa é uma discussão feita por todos os países que têm medidas de controle e de contenção dos riscos e dos danos causados pelo tabagismo. 


Quais são os aditivos mais utilizados e os seus efeitos?

André Silva: Há aditivos que são usados para conferir sabor ao cigarro. O mentol, por exemplo, além de conferir o sabor da menta, também reduz a irritação da fumaça. Ele é um anestésico local, dá uma sensação de refrescância. 

Além disso, há outros aditivos que são usados para diminuir a irritação da fumaça. É bastante comum o uso de chocolate, açúcares e alcaçuz [para esse propósito].

Ana Márcia: Há também os aditivos que são usados para esconder a fumaça, que irrita o entorno. Esses aditivos visam, além de diminuir a irritação, diminuir o desconforto gerado pela fumaça. São os extratos de frutas, o dióxido de titânio e alguns branqueadores.

Mas é importante lembrar que existem outros aditivos que continuam permitidos porque não têm esse objetivo [de facilitar a iniciação], de mudar as características naturais do produto, [como] sabor, aroma e aparência da fumaça.

Aditivos em cigarros são usados para diminuir a repulsividade e conquistar público jovem, diz a Anvisa. Fontes: Tobacco Free Kids/Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco

Por que se preocupar em regular tanto um mercado ao invés de proibir os cigarros de uma vez?

André Silva: A Constituição permite a comercialização. A gente não pode ir além da lei. Se o cigarro tivesse entrado no mercado em qualquer outro momento, possivelmente não seria aceito. Pode ser que um dia a sociedade entenda que o prejuízo que ele causa é muito maior do que qualquer benefício.

Ana Márcia: No caso do Brasil, como não se escolhe por essa opção [da criminalização], você regula justamente para que os riscos do produto possam ser explicitados para a população. O produto é permitido e consequentemente, ele tem que ser muito regulado, já que se conhece que esse produto possui riscos na  utilização.


A indústria apresenta um estudo publicado pela FGV e bancado pelo setor para dizer que a norma da Anvisa não se ampara em evidências científicas. Qual é a posição da Agência a respeito?

André Silva: Esse estudo da FGV é tão mal feito que não é nem assinado. Há duas publicações apontando problemas no estudo. Um artigo de pesquisadores canadenses e um relatório da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). 

A questão científica está pacificada. A ciência diz que os aditivos tornam o produto mais atrativo. Os grandes blocos econômicos – como a União Europeia e os Estados Unidos – já entendem também nesse sentido. A própria Organização Mundial da Saúde. 

Os 181 países que assinaram a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco reconhecem que os aditivos aumentam a atratividade dos produtos de tabaco. 

E, além disso, os próprios documentos internos da indústria do tabaco, que foram liberados por força da ação judicial nos Estados Unidos, apontam que as indústrias internamente sabem que os aditivos tornam os produtos mais atrativos.

Em documento de 1985 da fabricante do Camel, diretor da empresa parabeniza funcionários pelo desenvolvimento de aditivos: “eles parecem especialmente atrativos para o público de 18-24 anos, que nós buscamos desesperadamente”. Disponível em ttps://www.industrydocuments.ucsf.edu/docs/gmgx0045

Como foi o processo de coleta de evidências científicas feito pela Anvisa antes da publicação da norma?

Ana Márcia: Primeiro ocorreu uma consulta pública, em 2010, com 12 mil contribuições feitas pela sociedade. Todas foram avaliadas pela Anvisa. 

Depois foi feita uma audiência pública. Em seguida a norma foi publicada. Quando a norma foi publicada, houve um questionamento do setor com relação a alguns aditivos incluídos ali. A Anvisa liberou esses aditivos questionados por um ano. 

Durante esse ano, foi criado um grupo técnico de especialistas (inclusive de outros países) que se debruçaram sobre a lista de aditivos apresentada pelo setor regulado. Ao final, o grupo técnico concluiu que estes aditivos deveriam permanecer vetados.

Foto: Adobe Stock


A Anvisa venceu o questionamento da RDC 14 feito pela Confederação Nacional da Indústria quando ele chegou ao STF, em 2018, mas não houve repercussão geral da decisão em função do empate na votação dos ministros. Qual é o estado de implementação da norma da Anvisa hoje?

Ana Márcia: Na prática, empresas que estão protegidas por ações judiciais estão isentas de cumprir com a norma da Anvisa. 

Há hoje uma ação do Sinditabaco-Bahia [ao qual as maiores empresas são filiadas] no Tribunal Regional Federal da 1ª Instância. As empresas foram derrotadas na última movimentação, na corte, mas entraram com um recurso que garantiu efeito suspensivo da norma novamente. 

Empresas que têm impetrado novos pleitos, na grande maioria, não têm logrado êxito. Via de regra, os argumentos que foram apresentados, principalmente pela ministra relatora, a ministra Rosa Weber [no julgamento de 2018 no STF] foram abraçados por boa parte do Judiciário.

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