Foto: Wenderson Araujo/Trilux

Renúncia fiscal: soja recebe quase R$ 60 bi ao ano, o dobro da cesta básica

Em meio à discussão sobre reforma tributária, estudo mostra como o grão concentra benesses e propõe que sojicultores encontrem a ‘porta de saída’ do governo

A soja tem dificuldades em abrir mão do Estado-babá? Como todo produto do colonialismo, o grão depende fortemente de subsídios públicos. Um novo estudo mostra que a produção custa quase R$ 60 bilhões ao ano apenas em renúncia fiscal. O valor é o dobro das desonerações garantidas à cesta básica, e seria suficiente para arcar com quatro meses de Bolsa Família

O relatório “O custo da soja para o Brasil: renúncias fiscais, subsídios e isenções da cadeia produtiva”, lançado hoje (17), reforça o papel concentrador desse grão na disputa por terras, financiamento e benesses. E, em meio à discussão sobre reforma tributária, propõe que sejam repensados os subsídios ao setor. 

O autor, o economista Arnoldo de Campos, destrincha leis que garantem isenções para a produção agrícola em várias etapas, desde insumos (como fertilizantes e agrotóxicos) até a livre circulação pelos estados e a exportação, passando pelo processamento de óleos, biodiesel e farelo de soja. 

O resultado é uma estimativa de renúncia de R$ 56,81 bilhões apenas em impostos federais ao longo de 2022. Isso equivale a 15% do faturamento estimado para a produção de soja, de R$ 400 bilhões.

“Estamos trazendo ao público a informação de quanto é o custo para o país como um todo de uma opção estratégica que foi tecida durante a ditadura, onde não houve esse processo de transparência, participação e democracia. Esse é o cerne do nosso estudo”, diz Marcos Woortmann, coordenador de Políticas Socioambientais do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), uma das organizações responsáveis pelo estudo. Ele faz alusão ao fato de que a estrutura tributária atual do país começou a ser instituída durante o regime autoritário, e depois foi apenas sendo sucessivamente remendada. 

“O Brasil é o país que mais se desindustrializou no mundo nos últimos trinta anos. E existe uma razão do porquê isso aconteceu. Não houve priorização da indústria na economia. Um setor está pagando, o outro está recebendo. O setor industrial paga IPI, CSLL, Cofins. E o setor da soja não paga. E quem paga somos nós como contribuintes.”

O relatório traça ainda uma projeção para a renúncia fiscal de ICMS em Mato Grosso, maior produtor de soja e estado-símbolo do agronegócio no Brasil. A estimativa é de uma perda de quase R$ 8 bilhões, o que equivale a 6,1% do faturamento da cadeia de soja no estado. No total, a desoneração foi maior que a própria arrecadação, projetada em R$ 5,9 bilhões. 

“Não sou um otimista”, diz Woortmann sobre a possibilidade de que a reforma em tramitação no Congresso acabe com os privilégios do agronegócio. “O Brasil está subsidiando a destruição ambiental, a concentração de renda e o autoritarismo. A democracia brasileira está subsidiando as forças que atentaram contra ela. E isso ficou profundamente nítido a partir das investigações de financiamento dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. Esses atos foram subsidiados por empresas subsidiadas pelo contribuinte. Existe uma complexidade do momento histórico que é gravíssima.”

Papa-tudo

Não é de hoje que a capacidade da soja em ser predatória com outras culturas chama atenção. Ainda assim, o avanço do grão nos últimos anos tem se dado em bases astronômicas. A projeção da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a safra atual é de 44 milhões de hectares, o equivalente à soma dos territórios de Mato Grosso do Sul e Pernambuco. Se fosse um país, a soja teria o tamanho aproximado de Marrocos. 

Como assinala o relatório, é verdade que o cultivo teve um ganho de produtividade, mas a principal explicação reside na expansão geográfica: na comparação com o primeiro mandato de Lula, a soja mais do que dobrou de tamanho. 

“O estudo é uma oportunidade de abrir um debate de que existem alternativas”, assinala Paula Johns, diretora-executiva da ACT Promoção da Saúde, outra das organizações responsáveis pela análise.”Para desnaturalizar essa coisa que está dada na sociedade, de que o agronegócio é que salva a lavoura no Brasil. Esses números mostram que o que a gente tem de aparentemente bem-sucedido é o fruto de um investimento de décadas. Hoje a gente sabe que esse investimento tem uma série de consequências ambientais e de saúde humana. A gente pode rever essa rota.”

O relatório “O custo da soja para o Brasil: renúncias fiscais, subsídios e isenções da cadeia produtiva” foi produzido por ACT Promoção da Saúde, Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) e Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)

Essa capacidade de concentração fica explícita também na pesquisa Produção Agrícola Municipal, cuja versão mais recente foi divulgada em setembro pelo IBGE. Tirando da conta o milho, nem mesmo a soma de todos os demais produtos faz frente à soja: são R$ 292,7 bilhões entre cana-de-açúcar, café, algodão, trigo, arroz, laranja, feijão, mandioca e outros alimentos. 

Como temos mostrado no Joio, o mote de que o agro é tudo cai por terra diante da desproporção entre a soja e todo o restante. Sem o grão, o agro perderia quase metade do valor de produção, o que expõe a fragilidade do setor que se apresenta como “indústria-riqueza do Brasil”.  

Segundo o estudo, a participação da cadeia da soja no PIB do agro passou de 9% para 27% entre 2010 e 2022 – uma expansão de 58%, contra apenas 8% do agro como um todo. 

O relatório analisa como essa concentração se reflete na concessão de crédito. Os dados do Banco Central mostram que o grão sugou 52% dos recursos de financiamento em 2022. “Ou seja, de um total de R$ 133,2 bilhões emprestados para custear as lavouras no país, R$ 69,5 bilhões foram destinados para financiar exclusivamente o custeio da soja.”

Somando o milho, chega-se a 72%, ou seja, todos os demais alimentos, num total de 140 culturas, ficam com apenas 28% do crédito rural. O feijão, por exemplo, ficou com menos de 1% dos recursos, num total de 8,4 mil contratos para um universo de quase um milhão de produtores. 

A porta de saída

O estudo defende que a soja é o exemplo-mor da ênfase colocada pelo Estado na transformação do país em potência agrícola. O grão é o resultado de políticas agrícolas, comerciais, de infraestrutura e de tributação. Vale lembrar que a adaptação do cultivo ao Cerrado é vista como uma das maiores realizações da Embrapa, que celebra 50 anos em 2023. 

“Se o objetivo de fomentar e desenvolver o agronegócio foi alcançado, como demonstra o caso da soja aqui destacado, será que faz sentido manter os atuais níveis de apoio que as cadeias produtivas privilegiadas receberam ao longo de décadas?”, questiona o relatório, sugerindo que está na hora de o agronegócio brasileira começar a devolver parte dos investimentos feitos pelo país. 

O texto aponta que parte da elite do país questiona o tempo do qual famílias pobres dependem de programas sociais, como o Bolsa Família, “e cobra do poder público as chamadas ‘portas de saída’, para que estas famílias deixem, depois de um determinado período, de receber o apoio do Estado. Dizem que as famílias não deveriam ficar ‘dependentes’ das políticas sociais”.

Então, por que a soja deveria ficar eternamente dependente do Estado? A pergunta, ao fim, é: o agronegócio sobrevive sem fartos apoios públicos? 

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