Autor de estudo destaca que, apesar do resultado, a amamentação segue sendo a melhor fonte de alimentos para os recém-nascidos
Presente na água e nos alimentos consumidos por boa parte da população brasileira, o agrotóxico glifosato passa a ter contato com o corpo humano logo na primeira infância. Uma das origens indiretas disso é o leite materno, como já demonstraram pesquisas feitas nos últimos 12 anos, em quatro estados de diferentes regiões do Brasil: São Paulo, Paraná, Piauí e Mato Grosso. Isso mostra, segundo o médico obstetra Rodrigo Fernando Marandola, autor de pesquisa recente feita em Tupã, município no interior paulista, que o problema, claro, não está no leite materno, mas na contaminação de outras fontes que transportam o veneno para o corpo das mães. Não bastasse, o estudo, intitulado “Ocorrência de Glifosato no leite materno humano e sua interface com a saúde ambiental: uma realidade oculta no município de Tupã”, redobra o alerta: produtos ultraprocessados são potencializadores dos efeitos nocivos.
Em uma dissertação de mestrado apresentada na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marandola ressalta que o leite materno é a melhor fonte de alimentos para recém-nascidos, porém, por ser rico em gorduras, quando contaminado, acaba por se tornar um importante veículo de transmissão dessa soma para o bebê.
O glifosato encontrado nas mulheres é o agrotóxico mais usado do Brasil. Em todas as cem amostras colhidas para o trabalho, esse veneno está presente. Banido em alguns países da União Europeia, como Alemanha e Áustria, e com restrição rigorosa em outros, como Itália, Holanda e República Tcheca, o herbicida ataca as chamadas “ervas daninhas” e é exageradamente aplicado em grandes áreas brasileiras de monocultura, casos das produção de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar.
Na América, o México aprovou um projeto que visa a banir a aplicação da substância até o fim do ano que vem. Costa Rica, Uruguai e Argentina já aprovaram limitações ao glifosato. No mês passado, um tribunal do Missouri, nos Estados Unidos, condenou a Monsanto, do grupo Bayer, a indenizar quatro agricultores em US$ 1,56 bilhão. Eles alegaram ter contraído câncer por uso do Roundup, veneno à base de glifosato fabricado pela empresa. No mês anterior, a transnacional já havia perdido outros três processos pelo mesmo motivo. As derrotas apontam para uma virada na jurisprudência.
Além do uso disseminado no Brasil, Marandola escolheu o glifosato por ser o único dos 27 agrotóxicos encontrados na água de Tupã, cuja quantidade estava acima do limite aceito pela União Europeia. Além de ter uma legislação mais permissiva em quantidade, o Brasil não leva em conta os riscos de diferentes substâncias somarem ou multiplicarem os impactos de outras na contaminação.
Um levantamento feito pela pesquisadora Larissa Mies Bombardi, do Laboratório de Geografia Agrária da USP, mostra que o Brasil permite uma presença até 400 vezes maior de agrotóxicos nos alimentos do que a União Europeia. A discrepância é ainda maior no caso da água potável, em que chega a até 5 mil vezes, justamente no caso do glifosato. A situação pode ficar ainda pior daqui para frente, pois o Senado aprovou, na semana passada, o pacote do veneno, que facilita a liberação de novos agrotóxicos no país. O governo Bolsonaro já havia liberado 2.182 dessas substâncias em quatro anos, um recorde para a série histórica, analisada desde 2000.
Como a absorção se dá por água, por alimentos e por processos de aplicação, seja pelo contato direto com trabalhadores rurais ou pela chamada deriva – no caso da aplicação aérea dos produtos – o trabalho analisou resultados em moradoras das zonas urbana e rural de Tupã, que fica a aproximadamente 500 quilômetros da cidade de São Paulo e tem uma população de 64 mil habitantes.
A maioria das voluntárias reside em áreas urbanas e não tem contato direto com o plantio, a aplicação da substância ou a manipulação de roupas de profissionais que fazem esse trabalho. “A gente já sabia, com base em pesquisas feitas em outros países, que a contaminação pelo glifosato é maior via sistema digestivo do que pelo contato da substância com a pele”, conta Marandola.
Com a maior contaminação pela água e pelos alimentos, dois outros dados chamam a atenção do pesquisador. A maior presença da substância se dá entre as mulheres de famílias com renda superior a cinco salários-mínimos e o impacto negativo é maior entre as mães com mais de 30 anos, e/ou com sobrepeso, já que o agrotóxico é lipossolúvel e se acumula em tecidos adiposos.
A interpretação do pesquisador, baseada também em trabalhos internacionais, é de que o consumo de ultraprocessados é o principal motivo da potencialização dos efeitos. “Estudos feitos na Europa, China e Estados Unidos já relacionam as altas taxas de glifosato com os ultraprocessados”, afirma. No Brasil, estudos feitos pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) apontaram a presença do veneno nos ultraprocessados.
A conclusão de Rodrigo Marandola reforça as evidências de que o glifosato se acumula conforme avança exponencialmente em conjunto com o novo padrão alimentar da população brasileira, do qual a indústria de ultraprocessados é formadora prejudicial.
Além das medições no leite materno, o trabalho cruza dados com pesquisas socioeconômicas para confirmar o impacto do agrotóxico na vida das entrevistadas e dos filhos delas. As mulheres com maior taxa de glifosato são, também, as que têm maior número de abortos espontâneos, óbitos neonatais de bebês que nasceram com peso inferior a 2,5 quilogramas. A pesquisa aponta, ainda, uma diminuição na quantidade de glifosato em mulheres que somam mais gestações.
A água, idem, é ponto de atenção. O estudo indica a necessidade de cuidados com os recursos hídricos para consumo. As mulheres que bebem água diretamente da torneira, mesmo com o tratamento pelo poder público, apresentam maior quantidade de glifosato no leite do que aquelas que bebem água de poço, mineral ou que utilizam filtro de barro.
Terminada essa etapa da pesquisa, Marandola deve entrar numa nova fase de aprofundamento das diferenças expressivas encontradas entre as regiões do município.
É emergência: só não vê quem não quer
Três anos antes, em Francisco Beltrão (PR), Márcia Camiccia fez uma pesquisa sobre o mesmo tema. Diferentemente de Marandola, ela priorizou moradoras do ambiente rural. Do total de 67, 41 moravam no campo. O período escolhido para a coleta foi o da colheita de milho e soja na região paranaense.
Apesar de ter testado diferentes fatores, como o trabalho rural e o uso de agrotóxicos na propriedade familiar, não houve diferenças significativas entre as amostras. Mais uma vez, todas as amostras de leite humano apareceram contaminadas.
Assim como em Tupã, a principal hipótese para o resultado é a contaminação por água, ar ou alimentos consumidos. A pesquisa de Camiccia partiu de uma dissertação de mestrado na Universidade Estadual do Oeste Paranaense (Unioeste). Na justificativa, ela explicou que o Paraná é o terceiro maior consumidor de agrotóxicos do Brasil e que o glifosato permanece nos alimentos por mais de um ano, mesmo depois de processos de congelamento, desidratação ou transformação. A substância é causadora de 60% das intoxicações por agrotóxicos. “É difícil escapar da contaminação, especialmente em regiões próximas à produção de grãos, como a nossa região. Mesmo se a pessoa tiver cuidado com os alimentos, o glifosato pode estar presente na água”, diz.
Ela comenta que se interessou pelo assunto depois de saber de uma pesquisa que apontava que 83,4% das amostras de leite materno continham glifosato, ácido aminometilfosfônico (AMPA) ou ambas as substâncias em Uruçuí, no interior do Piauí, em estudo do pesquisador Inácio Pereira Lima, mestre em Saúde da Mulher do Centro de Saúde e Ciências da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
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Faça parteOrientadora de Camiccia, a professora Carolina Panis coordena um laboratório especializado em contaminação humana por agrotóxicos. Apesar de apontar a dificuldade de relacionar diretamente essas substâncias a problemas de saúde, ela ressalta que regiões produtoras como o interior do Paraná apresentam altas taxas em relação a outras regiões na má-formação de bebês, infertilidade, abortos espontâneos, problemas mentais e incidência de cânceres.
Os estudos do grupo já haviam apontado para contaminações altas de agrotóxicos na água e na urina dos moradores. “É preciso pesquisar mais sobre a presença de agrotóxicos na água como um fator de contaminação para o ambiente e para as pessoas e animais que a consomem”, destaca. Ela lembra que o milho e a soja servem de ração para animais, que consomem também a água, e depois passam a ser alimentos das pessoas.
A professora já tem outras pesquisas feitas no Brasil e no exterior sobre a detecção de agrotóxicos no corpo humano. Ela acompanha, faz mais de dez anos, um grupo de mulheres para prevenção e cura do câncer de mama. “A gente constatou um risco de câncer de mama 32% maior pela contaminação e, dentro desses casos, uma possibilidade 50% maior de metástase”, revela.
Segundo Carolina Panis, a região tem uma mortalidade maior pela doença do que a média estadual. Apesar das dificuldades de estabelecer uma relação causal direta das doenças com os agrotóxicos, os números reforçam os motivos para preocupação.
O primeiro trabalho sobre a presença de agrotóxicos no leite humano, no Brasil, vem do início da década passada, quando a pesquisadora Danielly Palma detectou a presença de agrotóxicos em todas as amostras coletadas de mães de bebês de Lucas do Rio Verde (MT), um dos principais municípios produtores de grãos do país.
O trabalho é orientado pelo professor Wanderlei Pignati, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), referência sobre os impactos do agronegócio na saúde coletiva da população,e traz seis substâncias para a análise, entre elas, o glifosato. Além da contaminação em todas as amostras, 85% delas têm a presença de dois ou mais agrotóxicos.
Em apresentação para a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, em 2012, Pignati destacou que o uso dos agrotóxicos produz contaminação do solo, água, ar e alimentos.
Quem deveria prestar atenção e agir, no entanto, fez que não ouviu. A apresentação não foi suficiente para mudar a posição da maioria dos parlamentares brasileiros e os dados se repetem nos trabalhos feitos nos dez anos seguintes, em diferentes áreas do Brasil.