Foto: Prefeitura de Belo Horizonte

Com frutas e legumes, bancos de alimentos combatem a fome, mas alcance é insuficiente

Estruturas ainda são poucas e concentradas no Sul e no Sudeste. Governo Lula projeta aumento dos investimentos e articulação em rede, além de proximidade com Ceasas para reduzir desperdícios

Vem de um banco de alimentos quase metade da dieta dos cerca de 60 residentes psiquiátricos da Associação Emanuel, um lar terapêutico de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. São frutas, legumes e verduras entregues pela unidade na capital gaúcha do programa Mesa Brasil, uma iniciativa do Serviço Social do Comércio (Sesc) que mantém 96 centros do tipo distribuídos pelo país. “Se não tivéssemos [esse auxílio], não conseguiríamos proporcionar aos atendidos uma alimentação saudável”, diz a psicopedagoga Jéssica Dornsbach, vice-presidente da entidade, que atende principalmente pessoas com esquizofrenia abandonadas na rua por suas famílias. “Trabalhamos no vermelho e não temos como comprar abóbora ou batata”, afirma. Alimentos in natura não costumam vir de outros doadores que, no geral, entregam não perecíveis, carnes e ultraprocessados.

Ao todo, são 234 bancos de alimentos no Brasil, a maior parte deles localizados no Sul e no Sudeste. Em 84% dessas unidades, os estoques mais comuns são de frutas, verduras e legumes, segundo a Avaliação Nacional de Bancos de Alimentos, publicada pelo governo federal em 2021. “Isso demonstra uma preocupação com a segurança nutricional no stricto sensu do conceito”, avalia a nutricionista Natalia Tenuta, autora do estudo e coordenadora-geral de Equipamentos Públicos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). “Os alimentos ultraprocessados compõem zero vírgula dos estoques.” A pesquisa dela também apontou que quase 45% dessas unidades são bancos públicos municipais; 38,5% são mantidas pelo Sesc; 12,5% por organizações da sociedade civil; e o restante, menos de 5%, estão ligados às Centrais de Abastecimento (Ceasas).

Segundo Tenuta, o MDS estima ao menos 1,97 milhão de brasileiros atendidos por bancos de alimentos em 2022. O alcance, no entanto, é pequeno em comparação aos 33 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave, conforme números de 2022 da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). No Amapá, por exemplo, onde falta comida para 32% dos amapaenses, há só um banco de alimentos. Na região Norte inteira, a que concentra o maior índice de insegurança alimentar e nutricional no país, com uma pessoa a cada quatro sem acesso regular a comida, há um total de 16 centros do tipo. Só no Rio Grande do Sul, para fins de comparação, há 37. São índices que contrastam com estimativas das Nações Unidas, que calculam por volta de 27 milhões de toneladas de alimentos desperdiçados no Brasil ao ano. A meta desses bancos é redirecionar, para o prato de quem precisa, o que for próprio para consumo e que iria para o lixo.

O governo federal reconhece o problema, mas passou 2023 sem dinheiro para ações de combate à fome, devido ao escasso orçamento aprovado para a área no último ano de Bolsonaro. “Assumimos com zero orçamento para equipamentos públicos e sem recursos para os programas restaurante popular, cozinha solidária ou apoio aos estados e municípios na oferta de alimentos”, lamenta a nutricionista Patrícia Gentil, diretora do Departamento de Promoção da Alimentação Adequada e Saudável do MDS. Agora, para 2024, o plano é garantir algum orçamento e corrigir a desigualdade regional na distribuição dos bancos. “Nossa prioridade é cobrir com novas unidades nos estados historicamente não contemplados, como Alagoas, Amapá, Amazonas, Pará, Piauí, Roraima e Tocantins, por exemplo”, projeta.

Comida do mercado e do campo

Os bancos de alimentos brasileiros costumam funcionar em duas modalidades. Na convencional, que corresponde a quase 65% das unidades no país, se dispõe de uma sede com estrutura para triagem, seleção e, às vezes, beneficiamento ou estocagem de alimentos antes da entrega para entidades ou organizações. Já na colheita urbana ou rural, cerca de 35% do total, os bancos coletam alimentos, selecionam e imediatamente distribuem. Sem estrutura para estocagem, em geral, essas unidades dispõem de veículos próprios para receber comida e logo entregá-la. A unidade do Sesc Mesa Brasil em Porto Alegre, por exemplo, faz o armazenamento, mas também “colheitas” pela manhã em sacolões, supermercados e indústrias para entrega às instituições à tarde, em rotas pré-programadas.

“Somente armazenamos o que tem validade maior”, diz a nutricionista Priscilla Rosa, do Mesa Brasil na capital gaúcha. “São produtos processados, com mais durabilidade ou que vieram em volume muito grande”, explica. A unidade atende a cerca de 300 entidades do litoral norte e da região metropolitana do estado, e tem uma lista de espera de outras 100 instituições em busca de alimentos. Rosa calcula que cerca de 60 toneladas sejam doadas à unidade ao mês, mas alerta que o índice é variável e que a quantidade de doações nunca é garantida. O que chega, geralmente, é comida que perdeu o valor comercial para as prateleiras do mercado ou para a indústria.

São produtos que estão próximos da validade, com erros na rotulagem ou que não estão mais frescos, mas seguem nutritivos. Por exemplo, uma fruta amassada, um iogurte que vencerá em uma semana ou um pão do dia anterior. “Não erramos em dizer que a comida dos bancos vem principalmente de supermercados e sacolões, já que eles acessam o final da cadeia de alimentos, que está mais próxima do consumidor”, explica Natalia Tenuta. Segundo Rosa, nesse volume de alimentos doados, que inclui de hortifrutis e não perecíveis a ultraprocessados, o trabalho técnico da nutrição avalia quem vai receber aquela comida e em qual volume. “Fazemos um cadenciamento dentro de uma dieta equilibrada, já que o ultraprocessado também pode ser consumido em um contexto saudável, mas tem produtos que não enviamos a creches ou escolas”, afirma.

Esse balanço inclui alimentos que chegam à unidade direto do campo, entregues por produtores rurais por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal. “O pequeno agricultor está distante do centro urbano, tem seu produto, mas às vezes tem dificuldade de comercialização, então o programa traz esse aporte”, afirma o agricultor familiar Jorge Ritter, representante da Cooperativa Agropecuária de Sertão Santana, município a 82 km a sudoeste de Porto Alegre, que fornece batata doce, uva e sucos ao Mesa Brasil. “Por três, quatro anos, [o PAA] deu uma parada, faltou dinheiro e aí no último ano voltou com mais força e conseguimos aprovar novos projetos”, explica Ritter, cuja cooperativa, em 2023, forneceu R$ 230 mil em comida principalmente para bancos de alimentos via PAA.

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Origem nos anos 90

Os bancos de alimentos da rede do Sesc correspondem a quase 40% das unidades no país e, em ao menos nove estados brasileiros do Norte e Nordeste, os únicos centros presentes são os do Mesa Brasil, que soma 96 centros no país inteiro, 18 só no estado de São Paulo. A nutricionista Claudia Roseno, gerente de Assistência do Departamento Nacional do Sesc, diz que a entidade inaugurou a primeira unidade do país na cidade de São Paulo, em 1994. “Um diretor regional visitou bancos de alimentos em Chicago, nos Estados Unidos, achou interessante a proposta de combate ao desperdício numa ponta para levar o alimento a quem precisa na outra, e trouxe essa experiência”, explica.

A unidade de Porto Alegre, por exemplo, foi aberta em 2003, no ano em que a rede nacional do Mesa Brasil foi criada. O impulso partiu da agenda criada pelo programa Fome Zero, no ano da estreia de Lula na presidência, momento em que os bancos de alimentos “se tornam um equipamento de segurança alimentar e nutricional”, segundo Tanata. Ao longo dos anos 90 e início dos 2000, experiências capitaneadas pelas iniciativas do Sesc, da prefeitura do município paulista de Santo André e da Fundação Gaúcha dos Bancos Sociais sedimentaram os modelos predominantes de bancos no país, ligados a municípios, ao Mesa Brasil, a OSCs e a Ceasas.

Essa distribuição, no entanto, é desigual. A maior parte dos bancos de alimentos do país é pública e municipal, por exemplo, por causa de uma concentração intensa em Minas Gerais, que reúne ao menos 36 dos 105 bancos do tipo do Brasil, seguido de São Paulo, com 20. O mesmo acontece com as OSCs. Só o Rio Grande do Sul concentra 23 centros administrados por organizações da sociedade civil, dos 29 centros na modalidade em atividade no país. Sem apoio do PAA, a maioria dos alimentos coletados por essas organizações são pães, massas, cereais e farinhas, de acordo com a avaliação nacional do MDS de 2021. Já o Paraná soma três dos nove bancos ligados a centrais de abastecimento no país.

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“É comum uma indústria, por exemplo, dizer que tem dois mil potinhos de iogurte que vão vencer em dez dias, aí encaminhamos a uma instituição em que todos vão conseguir se alimentar disso em um dia só”, explica a coordenadora de comunicação Paola Monti, da Fundação dos Bancos Sociais, OSC que administra um banco de alimentos em Porto Alegre, mantida pela Federação das Indústrias do Estado (Fiergs). O centro da fundação oferta sobretudo alimentos minimamente processados e admite a falta de hortaliças, mas tenta compensar a menor quantidade de comida in natura por meio de cursos e oficinas junto às entidades beneficiadas, segundo a instituição.

“Os bancos de alimentos brasileiros têm essa vocação educacional na promoção de alimentação saudável: eles não recebem nem doam qualquer comida e ainda educam”, diz Tenuta. “É um diferencial quando você compara à agenda internacional”, afirma a nutricionista. No caso da Associação Emanuel, por exemplo, o residencial terapêutico recebeu apoio do Sesc para regularizar a cozinha da entidade após irregularidades apontadas por uma inspeção sanitária. A comida não era armazenada nos potes adequados, os calçados usados pelos colaboradores na cozinha não eram os adequados e o marco de uma das portas tinha cupins, lembra Jéssica Dornsbach. Além disso, o Mesa Brasil deu os cursos de formação necessários aos funcionários da entidade que não os tinham. “Muitos dos nossos colaboradores só cursaram até o sexto ano, então ir até o Sesc, fazer um curso e ganhar um diploma melhora a autoestima e os valoriza”, diz a psicopedagoga.

Mais bancos em rede

Segundo Patrícia Gentil, o MDS tenta garantir ao menos R$ 50 milhões para fomentar novos bancos de alimentos junto às centrais de abastecimento, os Ceasas – hoje, são apenas 10, quando há 70 centrais no país. Novamente há uma desigualdade regional: quatro estados do Norte (Amapá, Amazonas, Rondônia e Roraima) não têm Ceasas. A proposta é que o dinheiro do MDS contrate mão de obra para a coleta e triagem de alimentos que, hoje, são diariamente desperdiçados por produtores e comerciantes nesses locais. “A ideia é clara: ninguém joga nada no lixo sem passar por triagem nossa, que vamos evitar que o bom alimento seja jogado fora nas caçambas”, diz o zootecnista Eder Bublitz, presidente da Associação Representativa das Centrais de Abastecimento Brasileiras (Abracen) e da Ceasa no Paraná.

Bublitz levou a ideia à pasta após implementar o projeto na central paranaense. Ele estima que a iniciativa impediu o desperdício de cerca de 400 mil toneladas de alimentos. No total, sua central contratou 80 pessoas para a tarefa. O custo total é de cerca de R$ 2,5 milhões anuais, com um saldo de aproximadamente 130 mil pessoas impactadas mensalmente. Além dos bancos juntos às centrais de abastecimento, uma das apostas do governo federal é reorganizar a Rede Brasileira de Bancos de Alimentos, criada em 2017, mas abandonada ao longo das gestões Temer e Bolsonaro, que hoje reúne 190 unidades. “Colocar esses bancos em rede traz oportunidades para uma resposta mais organizada à nível local em segurança nutricional”, diz Gentil, do MDS. “Hoje, em que pese existir a rede, tem lacunas de informação e normatização, então a ideia é conectar bancos, doadores e as entidades que possam receber essas doações e aí termos um cenário mais claro e organizado desse trabalho.”

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