Interesses comerciais e geopolíticos fizeram da China uma gigante dos mares a partir dos anos 80. A voracidade dessa frota, conectada à voracidade dos consumidores de países como os EUA, cobra agora um preço ambiental e social
Daniel Aritonang terminou o ensino médio em maio de 2018 com a esperança de encontrar um trabalho. Baixo e ágil, vivia na aldeia costeira de Batu Lungun, na Indonésia, onde o pai tinha uma oficina de carros. Nos tempos livres, Daniel reconstruía motores na oficina e, de vez em quando, escapava com a sua Yamaha azul para fazer corridas de motos nas estradas secundárias da aldeia. Como estudante, era muito dedicado, mas também conhecido por ser “o palhaço da turma”, sempre tirando sarro das meninas. “Ele era todo gargalhadas e sorrisos”, lembra a sua professora de Matemática, Leni Apriyunita. A mãe levava pão caseiro para os professores, tentando ajudá-lo a tirar boas notas para que depois conseguisse um trabalho. A loja do pai estava à beira da falência e a família precisava de dinheiro.
Quando Daniel terminou a escola, a taxa de desemprego entre os jovens era superior a 13%. Pensou em entrar para a academia de polícia e candidatou-se a vagas em fábricas de plásticos e têxteis nas redondezas, mas nunca recebeu qualquer proposta, desiludindo os pais. Escreveu no Instagram: “Sei que falhei, mas continuo a tentar fazê-los felizes.” O seu amigo de infância Hengki Anhar também lutava para encontrar trabalho.
Nessa altura, muitos pessoas da sua aldeia que tinham aceitado empregos como marinheiros em navios de pesca estrangeiros estavam regressando com dinheiro suficiente para comprar motos e casas. Anhar sugeriu então que também fossem para o mar. Daniel concordou, dizendo: “Desde que fiquemos juntos.” Ele tencionava usar o dinheiro para fazer obras na casa dos pais ou talvez começar um negócio.
Firmandes Nugraha, outro amigo, temia que Daniel não fosse talhado para um trabalho tão duro como aquele. “Fizemos um teste de corrida e ele ficou exausto”, diz. Mas Daniel não desistiu. Um ano depois, em julho de 2019, ele e Anhar viajaram para a cidade portuária de Tegal e candidataram-se a um emprego por meio de uma agência de recrutamento chamada PT Bahtera Agung Samudra (a agência parece não ter licença para funcionar, de acordo com os registos oficiais, e não respondeu às perguntas que lhe foram enviadas). Nessa altura, os dois amigos entregaram os seus passaportes, cópias das suas certidões de nascimento e documentos bancários. Aos 18 anos, Daniel ainda era suficientemente jovem para que a agência exigisse uma carta de autorização dos seus pais. Publicou nas redes sociais uma fotografia sua e de outros candidatos. “Apenas um grupo de pessoas comuns que esperam ter um futuro radiante e de sucesso”, escreveu.
Nos dois meses seguintes, Daniel e Anhar esperaram em Tegal por um navio. À certa altura, Daniel pediu a Firmandes Nugraha que lhe emprestasse dinheiro, dizendo que estavam tendo dificuldades para comprar comida. Nugraha pediu que voltasse para casa. “Você nem sequer sabe nadar.” Daniel recusou. “Não há outra escolha.” Finalmente, em 2 de setembro de 2019, Daniel e Anhar viajaram de avião para Busan, na Coreia do Sul, para embarcar no que pensavam ser um navio coreano. Mas, quando chegaram ao porto, subiram a bordo de um navio chinês — um navio de pesca de lulas enferrujado, branco e vermelho, chamado Zhen Fa 7. Nesse dia, o navio partiu para atravessar o Pacífico.
Daniel Aritonang tinha acabado de se juntar àquela que pode vir a ser a maior operação marítima que o mundo já conheceu. Nas últimas décadas – em parte, num esforço para projetar a sua influência no mundo –, a China aumentou brutalmente a sua frota de pesca em águas distantes. Hoje, as empresas chinesas possuem ou operam terminais em 95 portos estrangeiros. Estimativas da própria China apontam para um total de 2,7 mil navios de pesca de águas distantes, embora este número não inclua navios que operam em águas disputadas. Os registos públicos e as imagens de satélite sugerem que a frota pode estar mais próxima dos 6,5 mil navios. Em comparação, os Estados Unidos e a União Europeia têm menos de 300 navios de pesca em águas distantes cada.
Alguns navios chineses que parecem ser navios de pesca fazem reivindicações territoriais em águas disputadas, incluindo no mar do Sul da China e ao largo de Taiwan. “Pode parecer uma frota de pesca, mas, em certos locais, também serve a objetivos militares”, diz Ian Ralby, que dirige a I. R. Consilium, uma empresa de segurança marítima. A primazia da China no mar tem um custo. O país não respeita as leis internacionais e a sua frota é a que mais pratica pesca ilegal no mundo, contribuindo para pôr várias espécies à beira da extinção. Os navios chineses também andam lado a lado de denúncias de tráfico humano, servidão por dívidas, violência, negligência criminosa e morte. “As violações dos direitos humanos nestes navios acontecem em escala industrial e global”, afirma Steve Trent, diretor da Environmental Justice Foundation.
Foram necessários pouco mais de três meses para que o Zhen Fa 7 atravessasse o oceano Pacífico e ancorasse perto das ilhas Galápagos. Um navio de pesca de lulas é um lugar agitado, brilhante e confuso. O cenário no convés parece uma oficina mecânica onde uma mudança de óleo correu terrivelmente mal. Dezenas de linhas de pesca estendem-se na água, cada uma com anzóis específicos movimentados por bobinas automáticas. Quando puxam uma lula a bordo, o animal esguicha uma tinta quente e viscosa, que cobre as paredes e o chão do navio. As lulas de profundidade têm níveis elevados de amônia, que utilizam para flutuar, e o cheiro paira no ar. Centenas de lâmpadas do tamanho de bolas de boliche estão penduradas em ambos os lados do navio, atraindo para a superfície as lulas que estão nas profundezas. O brilho ofuscante das lâmpadas faz com que a escuridão circundante pareça de outro mundo. “As nossas mentes foram postas à prova”, observou Anhar.
A cabine do capitão ficava no convés superior, os oficiais chineses dormiam um nível abaixo dele – e os marinheiros chineses por baixo destes. Os trabalhadores indonésios ocupavam as entranhas do navio. Daniel e Anhar viviam em estreitos camarotes com beliches. Varais com meias e toalhas alinhavam-se nas paredes e havia garrafas de cerveja espalhadas pelo chão. Os indonésios recebiam cerca de 3 mil dólares (R$15 mil ) por ano, mais um bônus de 20 dólares por cada tonelada de lula capturada. Uma vez por semana, uma lista do que cada homem havia pescado era afixada no navio com o intuito de encorajar a tripulação a trabalhar mais. Por vezes, os oficiais davam palmadinhas na cabeça dos marinheiros indonésios, como se fossem crianças. Quando estavam zangados, xingavam ou até batiam neles. O capataz dava bofetadas e socos nos trabalhadores que cometiam erros. “É como se não tivéssemos qualquer dignidade”, recorda Anhar.
O navio raramente se encontrava perto da terra para haver rede de telefonia. De qualquer modo, a maioria dos marinheiros não tinha aparelhos que funcionassem nos países estrangeiros. De vez em quando, os membros da tripulação chinesa podiam utilizar um telefone por satélite na ponte de comando do navio. Mas quando Daniel e outros indonésios pediam para telefonar para casa, o capitão recusava.
Depois de algumas semanas a bordo, um ajudante de convés chamado Rahman Finando teve a coragem de perguntar se podia ir para casa. O capitão disse que não. Alguns dias mais tarde, um outro marinheiro, Mangihut Mejawati, surpreendeu um grupo de oficiais e marinheiros chineses batendo em Finando: era o castigo por pedir para ir embora. “Bateram no seu corpo todo e pisaram nele”, conta Mejawati. Os outros marinheiros gritaram para que parassem e vários entraram na luta. Por fim, a violência terminou, mas os marinheiros ficaram presos no navio. “Era como se estivéssemos numa jaula”, lembra Mejawati.
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Quase cem anos antes de Cristovão Colombo, a China dominava os mares. Nas primeiras décadas do século 15, o imperador chinês Yongle enviou para o Índico várias frotas com os chamados “barcos do tesouro”, que incluíam navios de guerra, de transporte de cavalaria e mercantes carregados com seda e porcelana. São considerados alguns dos maiores navios de madeira jamais construídos, com inovações como lemes compensados e amuradas com compartimentos que antecederam em séculos a tecnologia europeia. A dimensão desta armada só viria a ser ultrapassada pelas marinhas que lutaram na Primeira Guerra Mundial. Mas, durante a dinastia Ming, a instabilidade política levou a China a voltar-se para dentro. Em meados do século 16, navegar num barco com vários mastros tornou-se um crime. Ao imobilizar a sua frota, a China perdeu a relevância além-fronteiras. Louise Levathes, autora de When China Ruled the Seas (Quando a China Dominava os Mares, ainda sem edição em português), nota que “o período de maior expansão externa da China foi seguido pelo período do seu maior isolamento”.
Durante a maior parte do século 20, a pesca em águas distantes – grande parte da qual tem lugar em alto mar – foi dominada pela antiga União Soviética, pelo Japão e pela Espanha. Mas o colapso da URSS, em 1991, juntamente com o aumento da regulação ambiental e trabalhista, fez com que estas frotas diminuíssem. Desde os anos 1960, porém, houve avanços na refrigeração, na tecnologia de satélites, na eficiência dos motores e na eficácia do radar. Atualmente, os navios podem permanecer no mar durante mais de dois anos sem regressar à terra. Como resultado, o consumo mundial de pescado quintuplicou.
A pesca da lula cresceu especificamente por causa do apetite crescente dos consumidores estadunidenses. Até ao início dos anos 1970, os americanos consumiam lulas em pequenas quantidades, principalmente em restaurantes de nicho na costa. Mas, à medida que a sobrepesca esgotava as reservas de peixe, o governo dos EUA encorajou os pescadores a se concentrarem na lula, cujas reservas ainda eram robustas. Em 1974, um estudante de administração chamado Paul Kalikstein publicou uma dissertação de mestrado em que afirmava que os americanos prefeririam as lulas empanadas e fritas. Os marketeiros sugeriram que lhe chamassem “calamari”, o que fazia com que soasse mais como um prato gourmet. Nos anos 1990, cadeias de restaurantes em todo o Meio Oeste americano estavam servindo lulas. Hoje, os americanos comem cem mil toneladas por ano.
A China lançou a sua primeira frota de pesca em águas distantes em 1985, quando a estatal Empresa Nacional de Pesca da China enviou 13 navios com redes de arrastão para a costa da Guiné-Bissau. A China tinha pescado nas suas próprias águas costeiras de uma forma agressiva. Desde os anos 1960, a sua biomassa de peixes diminuiu 90%. Zhang Yanxi, o diretor-geral da empresa, argumentou que o fato da companhia se juntar “às fileiras das potências mundiais da pesca offshore” faria com que a China ganhasse dinheiro, criasse empregos, alimentasse a sua população e salvaguardasse os seus direitos marítimos. O governo chinês de então organizou no porto de Mawei, em Fuzhou, província de Fujian, uma grande cerimônia para o lançamento dos primeiros navios, com mais de mil convidados, incluindo as elites do Partido Comunista. Um vídeo promocional descrevia a tripulação como “223 corajosos pioneiros a abrir caminho entre as ondas”.
Desde então, a China investiu fortemente na sua frota. Hoje, o país pesca por ano mais de 2,2 milhões de toneladas em águas distantes, sendo a maior parte lulas. A indústria de pesca da China, cujo valor é estimado em mais de 35 bilhões de dólares (R$ 175 bi), representa um quinto do comércio internacional e ajudou a criar 15 milhões de empregos. O Estado chinês detém grande parte da indústria – incluindo cerca de 20% dos navios de pesca de lulas – e supervisiona o resto por meio da Associação Chinesa das Pescas Ultramarinas. Neste momento, a China consome mais de um terço do peixe do mundo.
A frota de pesca da China também aumentou a influência internacional de Pequim. O país construiu dezenas de portos no âmbito da iniciativa One Belt, One Road (também conhecida por “Nova Rota da Seda”), um programa global de infraestrutura que, em alguns casos, tornou a China o maior financiador de países da América do Sul, da África subsariana e do Sul da Ásia. Na prática, esses portos permitem que o país fuja de impostos e evite a intromissão de fiscais. Os investimentos nestes países também compram a influência de Pequim. Em 2007, a China emprestou ao Sri Lanka mais de 300 milhões de dólares para pagar a construção de um porto — em 2017, quando estava à beira da inadimplência, o Sri Lanka foi forçado a celebrar um acordo que concedia à China o controle do porto e arredores durante 99 anos.
Analistas militares acreditam que a China utiliza a sua frota de pesca para fins de vigilância. Em 2017, o país aprovou uma lei que exige que cidadãos e empresas privadas apoiem os esforços dos serviços secretos chineses. Os portos usam uma plataforma de logística digital chamada “Logink”, que rastreia o movimento de navios e mercadorias na área circundante – incluindo, eventualmente, carga militar americana. “Essa é uma informação realmente sensível para os EUA cederem”, afirma Michael Wessel, membro da Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China. Por seu lado, o Partido Comunista chinês rejeita essas preocupações:”Não é segredo para ninguém que os EUA se tornaram cada vez mais paranóicos em relação a qualquer coisa relacionada com a China”.
A China também tem enviado a sua frota pesqueira para águas disputadas. “É provável que a China acredite que, com o tempo, a presença da sua frota se converta num certo grau de controle soberano sobre essas águas”, diz Ian Ralby. Alguns dos seus navios estão disfarçados de navios de pesca, mas na realidade formam aquilo a que os especialistas chamam uma “milícia marítima”. De acordo com dados recolhidos pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (um think tank dos EUA), o governo chinês paga aos proprietários de alguns destes navios 4,5 mil dólares por dia para ficarem em zonas disputadas durante a maior parte do ano. Dados de satélite mostram que, em 2022, várias dezenas de navios pescaram ilegalmente em águas taiwanesas e que havia 200 navios em zonas disputadas do mar do Sul da China. Esses navios ajudam a executar o que um estudo recente do Serviço de Investigação do Congresso dos EUA designou por “operações de ‘zona cinzenta’, que utilizam a coerção sem chegar à guerra” – escoltam navios chineses de prospeção de petróleo e gás, entregam abastecimento e obstruem a rota a navios estrangeiros.
Por vezes, estes navios são chamados à ação. Em dezembro de 2018, o governo filipino começou a consertar uma pista de aterragem e a construir um molhe na ilha de Thitu, um pedaço de terra reivindicado pelas Filipinas e pela China. Mais de 90 navios chineses juntaram-se ao longo da costa da ilha, atrasando a construção. Em 2019, um navio chinês abalroou e afundou um barco filipino ancorado no monte submarino Reed, uma região disputada no mar do Sul da China que é rica em reservas de petróleo. Zhou Bo, um coronel chinês reformado, avisou recentemente que esse tipo de confrontos poderiam desencadear uma guerra entre os EUA e a China. O governo chinês se recusou a comentar estes casos. Mas Mao Ning, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, já argumentou que seu país tem o direito de defender “a soberania territorial e a ordem marítima”. Greg Poling, membro sênior do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, diz que a presença da frota chinesa em águas disputadas faz parte do mesmo projeto, que é assumir o controle de Taiwan. “O objetivo destes navios de pesca é [ajudar a] recuperar o ‘território perdido’ e restaurar a antiga glória da China”, afirmou.
Alto-mar: um mundo sem dono
Não há dados sobre a frota de pesca de águas distantes da China. O país divulga pouca informação sobre as suas embarcações e algumas permanecem no mar durante mais de um ano por vez, o que torna difícil a sua inspeção. Apoiado por uma equipe de repórteres invstigativos que trabalham para uma organização de jornalismo sem fins lucrativos que dirijo, chamada Outlaw Ocean Project, passei os últimos quatro anos visitando navios da frota chinesa nas suas maiores zonas de pesca: perto das ilhas Galápagos, das ilhas Malvinas, ao largo da costa da Gâmbia e no mar do Japão, perto da península coreana. Quando foi permitido, entrei a bordo dos navios para falar com a tripulação ou me aproximei para entrevistar oficiais por rádio. Em muitos casos, os navios chineses se assustavam, recolhiam os seus equipamentos e zarpavam. Quando isso acontecia, os seguia numa lancha, aproximando-me o suficiente para atirar para bordo garrafas de plástico cheias de arroz, contendo também caneta, cigarros, balas e perguntas num papel. Em várias ocasiões, os marinheiros atiraram as garrafas de novo para a água, escreveram respostas e números de telefone de familiares. Esta reportagem incluiu entrevistas com os seus familiares e com mais duas dúzias de membros de tripulação.
Por ano, a China reforça a sua frota com subsídios de mais de sete bilhões de dólares (R$ 35 bi), bem como com apoio logístico, de segurança e de informações. Envia aos navios, por exemplo, informações atualizadas sobre a dimensão e a localização das principais colônias de lulas do mundo, permitindo-lhes coordenar a sua pesca. Em 2022, observamos cerca de 260 navios pescando num pedaço de mar a oeste de Galápagos. A frota levantou âncora de repente e, quase ao mesmo tempo, deslocou-se cem milhas para sudeste. Ted Schmitt, diretor do Skylight, um programa de monitoramento marítimo, diz que essa movimentação não é trivial. “Os navios de pesca da maioria dos outros países não trabalhariam juntos nesta escala.” Em julho do mesmo ano, encostei no Zhe Pu Yuan 98, um navio de pesca de lulas que funciona como hospital flutuante para tratar os marinheiros sem trazê-los para terra. “Quando os trabalhadores estão doentes, vêm para o nosso navio”, disse-me o capitão, por rádio. A embarcação transportava um médico, tinha uma sala de cirurgia, um aparelho para fazer análises clínicas e salas de videoconferência para consultar médicos na China. O antecessor deste médico tinha tratado mais de 300 pessoas nos cinco anos anteriores.
Em fevereiro de 2022, fui para o alto mar, perto das Ilhas Malvinas, com o grupo de conservação Sea Shepherd e o documentarista Ed Ou, que também serviu como tradutor na viagem. Nessa altura, consegui entrar num navio chinês de pesca de lulas. O capitão nos autorizou a andar livremente na embarcação, desde que não mencionássemos o nome do navio. Ficou na ponte de comando, mas mandou um oficial me seguir para onde quer que fosse. O ambiente no navio parecia o de um purgatório aquático. A tripulação era composta por 31 homens — os marinheiros tinham os dentes amarelados por causa do tabaco, a pele pálida e as mãos feridas e esponjosas por causa dos artefatos cortantes de pesca e da umidade permanente. O cenário a bordo lembrava uma citação do filósofo Anacharsis, que dividia as pessoas em três categorias: os vivos, os mortos e os que estavam no mar.
Quando as lulas se agarravam a um dos anzóis, um enrolador automático recolhia-as para uma prateleira de metal. Os marinheiros logo as atiravam para cestos de plástico para serem selecionadas. Muitas vezes, os cestos transbordavam e o chão se enchia de lulas até às canelas. As lulas tornavam-se translúcidas nos seus últimos momentos, por vezes sibilando ou cuspindo. O fedor e a sujeira da tinta de lula são praticamente impossíveis de tirar da roupa. É comum os membros da tripulação atarem as suas roupas sujas a uma corda e arrastarem-na durante horas na água atrás do navio. Por baixo do convés, outros membros da tripulação pesavam, selecionavam e embalavam as lulas, que seriam congeladas. Na cozinha, alguém disse que o navio já não tinha frutas ou legumes frescos e perguntou se poderíamos dar alguns do nosso navio.
Falámos com dois marinheiros chineses que vestiam coletes salva-vidas cor de laranja. Nenhum deles quis dizer o nome, por receio de represálias. Um tinha 28 anos e o outro 18. Era a sua primeira vez no mar e tinham assinado contratos de dois anos. Ganhavam cerca de dez mil dólares por ano, mas para cada dia de baixa por doença ou ferimento eram descontados dois dias de salário. O marinheiro mais velho conta que viu um peso de pesca ferir o braço de outro membro da tripulação. À certa altura, o oficial que nos seguia foi chamado. O marinheiro mais velho disse então que muitos dos tripulantes eram mantidos ali contra a sua vontade. “É impossível ser feliz”, disse ele. “Não queremos estar aqui, mas somos obrigados a ficar.” Calculou que 80% dos outros homens iriam embora se isso fosse permitido. “É como estar isolado do mundo e longe da vida moderna.”
Com um ar nervoso, o marinheiro mais novo nos conduziu a um corredor escuro. “Os nossos passaportes foram roubados”, disse. “Eles não vão devolver. Você poderia nos ajudar?” Começou a escrever no celular:. “Não posso revelar muito neste momento porque ainda preciso trabalhar no navio e, se der muita informação, pode haver problemas a bordo”. Me deu o número de telefone da sua família e pediu que entrasse em contato com eles. “Você pode nos levar à embaixada na Argentina?”, perguntou. Neste exato momento, o oficial encarregado de me seguir dobrou a esquina e o marinheiro foi embora. Minutos depois, fomos levados para fora do navio.
Quando regressei à terra, contatei a família do marinheiro mais novo. “Meu coração dói”, disse a irmã mais velha, uma professora de Matemática em Fujian, depois de se inteirar da situação do irmão. A família discordava da sua decisão de ir para o mar, mas ele era persistente. Ela não sabia que ele estava sendo mantido em cativeiro e se sentiu impotente. “Ele é muito jovem”, disse. “E agora não há nada que possamos fazer, porque está muito longe.”
Beribéri, um sinal
Em junho de 2020, o Zhen Fa 7 viajou para uma zona de oceano entre Galápagos e o Equador continental. O navio era propriedade da Rongcheng Wangdao Deep-Sea Aquatic Products, uma empresa de médio porte com sede em Xantum. A bordo, Daniel Aritonang habituou-se lentamente à sua nova vida. O capitão descobriu que ele tinha experiência em mecânica e o transferiu para a casa das máquinas, onde o trabalho era um pouco menos exigente. Para as refeições, o cozinheiro preparava panelas de arroz misturado com pedaços de peixe. Os indonésios recebiam duas caixas de macarrão instantâneo por semana. Se quisessem mais comida — ou café, álcool e cigarros —, o custo podia ser deduzido nos seus salários. As fotografias da tripulação mostram os marinheiros posando com o que capturaram e celebrando com cervejas.
Um dos amigos de Daniel chamava-se Heri Kusmanto. “Quando embarcamos no navio, Heri era uma pessoa animada”, contou Mangihut Mejawati. “Ele conversava, cantava e brincava com todos.” O trabalho de Kusmanto era carregar cestos de lulas de cem quilos até ao porão refrigerado. Por vezes, cometia erros, o que lhe valia pancadas. “Não se atrevia a revidar”, contou um ajudante de convés chamado Fikran. “Ficava quieto e não se mexia.” Muitas vezes, o cozinheiro do navio batia em Kusmanto, por isso ele o evitava, comendo arroz branco simples na cozinha quando o cozinheiro não estava por perto. Kusmanto depressa ficou doente. Perdeu o apetite e deixou de falar, comunicando-se sobretudo através de gestos. “Parecia uma criança”, conta Mejawati. Depois, as pernas e os pés de Kusmanto incharam e começaram a doer.
Kusmanto parecia sofrer de beribéri, doença causada por deficiência de vitamina B1, ou tiamina. O seu nome deriva de uma palavra cingalesa, “beri”, que significa “fraco” ou “não posso”. É frequentemente causada por uma dieta que consiste em arroz branco, macarrão instantâneo ou farinha de trigo. Os sintomas incluem formigamento, ardor, dormência, dificuldade em respirar, letargia, dores no peito, tonturas, confusão e inchaço grave. Tal como o escorbuto, o beribéri era comum entre os marinheiros do século 19. É uma doença que também tem um histórico em prisões, asilos e campos de migrantes. Se não for tratada, pode ser fatal.
O beribéri é frequente nos navios chineses, em parte porque as embarcações permanecem muito tempo no mar – uma tendência facilitada pelo transbordo, que permite que os navios descarreguem as pescas em transportadores refrigerados sem necessidade de regressar à terra. Os navios chineses normalmente armazenam arroz e macarrão instantâneo para viagens longas porque são alimentos baratos e não se estragam com facilidade. Mas quando os hidratos de carbono são consumidos em grandes quantidades e durante períodos de esforço intenso, o corpo pede mais vitamina B1. Os cozinheiros dos navios também misturam arroz ou massa com peixe cru ou fermentado e complementam as refeições com café e chá, todos eles ricos em tiaminase – que destrói a B1, agravando o problema.
O beribéri é visto frequentemente como uma indicação da condição de cativeiro de alguém, já que é evitável e facilmente reversível. Alguns países (mas não a China) exigem que o arroz e a farinha sejam suplementados com B1. A doença também pode ser tratada com vitaminas e, via de regra, quando a B1 é administrada por via intravenosa, os doentes se recuperam em 24 horas. Mas poucos navios chineses parecem transportar suplementos de B1. Em muitos casos, os comandantes se recusam a levar os membros da tripulação doentes para terra firme, provavelmente porque o processo implicaria perda de tempo e custos de mão-de-obra. Por outro lado, a ondulação pode tornar perigosa a aproximação entre navios grandes para transferir tripulantes.
Ao todo, entre 2013 e 2021, encontramos duas dúzias de casos de trabalhadores em navios chineses que sofreram de sintomas associados ao beribéri. Pelo menos 15 morreram.
O contrato tipicamente utilizado pela agência que recrutou Kusmanto estipulava pesadas penalizações financeiras para os trabalhadores e suas famílias em caso de desistência. Também permitia que a empresa ficasse com os documentos de identidade dos trabalhadores, incluindo o passaporte durante o processo de recrutamento, e que ficasse com os documentos se eles não pagassem uma multa por saírem antes do fim do contrato – disposições que violam as leis da Indonésia. Mesmo assim, à medida que o estado de saúde de Kusmanto piorava, os seus companheiros de tripulação indonésios perguntaram se ele podia ir para casa. O capitão recusou. A empresa Rongcheng Wangdao negou ter cometido qualquer infração. Não foi possível identificar os capitães dos navios chineses mencionados nestes casos para que pudessem comentar o assunto. Um porta-voz da agência de recrutamento culpou Kusmanto pela sua doença. “Quando estava no navio, não queria tomar banho, não queria comer e só comia massa instantânea”, escreveu.
Àquela altura, o navio podia estar pescando ilegalmente, o que poderia complicar a situação de Kusmanto. De acordo com um relatório dos serviços secretos não publicado e compilado pelo governo dos EUA, durante este período o Zhen Fa 7 desligou o seu transponder de localização várias vezes, o que viola a própria lei chinesa. Isto geralmente ocorria quando o navio estava perto de águas equatorianas e peruanas; os capitães costumam ir às escuras para pescar em águas de outros países, como as do Equador, onde os navios chineses são normalmente proibidos. “A menos que sejam apanhados em flagrante, isto é o mais próximo a que se pode chegar de provas concretas”, diz Michael J. Fitzpatrick, embaixador dos EUA no Equador.
Os navios da Rongcheng Wangdao são conhecidos por pescar em áreas não autorizadas. Um dos navios irmãos do Zhen Fa 7 foi multado por entrar ilegalmente em águas peruanas em 2017, e outro foi flagrado na costa da Coreia do Norte. A empresa recusou-se a comentar o assunto. A transferência de Kusmanto para outro navio teria exigido a divulgação da localização do Zhen Fa 7, o que poderia ser incriminatório.
No início de agosto, Kusmanto já apresentava sintomas de desorientação. Outros marinheiros exigiram que ele fosse atendido por um médico. Por fim, o capitão cedeu e o transferiu para outro navio, que o levou até ao porto de Lima. Foi levado a um hospital, onde se recuperou. Mais tarde, foi embarcado num avião e pôde regressar para casa. (Kusmanto não pôde ser contatado para comentar o caso.) Entretanto, o resto da tripulação, que já estava no mar há um ano, foi revelando um crescente sentimento de isolamento. “Inicialmente, tinham dito que iríamos navegar durante oito meses e que depois iriam atracar o navio”, disse Anhar. “O fato é que nunca desembarcamos.”
Afogar botos e cortar barbatanas de tubarões
A China pratica mais pesca ilegal do que qualquer outro país, de acordo com a Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional. Operar em alto mar é caro e não há praticamente nenhuma presença de agentes da lei – o que incentiva a pesca em regiões proibidas e a utilização de técnicas ilegais para obter vantagens competitivas. A pesca agressiva tem um custo ambiental. Um terço das populações marinhas do mundo é objeto de sobrepesca. A população de lulas, antes abundante, diminuiu drasticamente. Mais de 30 países, incluindo a China, proibiram a extração de barbatanas de tubarão, mas a prática persiste. Os navios chineses capturam frequentemente tubarões-martelo, tubarões-brancos e tubarões-azuis para que as suas barbatanas possam ser utilizadas em sopas.
Em 2017, as autoridades equatorianas descobriram pelo menos 6 mil tubarões capturados ilegalmente a bordo de um único navio-frigorífico. Outras espécies marinhas também estão sendo dizimadas. As embarcações que pescam totoaba, um peixe grande cuja bexiga é muito apreciada na medicina chinesa, usam redes que inadvertidamente enredam e afogam botos-do-Pacífico também conhecidos por “vaquita”, que vivem apenas no mar de Cortez, no México. Como resultado da prática, os investigadores estimam que restem apenas cerca de dez vaquitas, sendo hoje o cetáceo mais ameaçado do planeta.
A China tem a maior frota de navios de arrasto de profundidade do mundo, que espalha redes pelo fundo do mar, arrasando os recifes de coral. Os sedimentos marinhos armazenam grandes quantidades de carbono e, de acordo com um estudo recente publicado na revista Nature, esses arrastões libertam quase 1,5 bilhão de toneladas de dióxido de carbono por ano – o mesmo que toda a indústria da aviação.
As práticas de pesca ilegais da China também roubam dos países mais pobres os seus próprios recursos. Ao largo da costa da África Ocidental, onde a China mantém uma frota de centenas de navios, estima-se que a pesca ilegal custe à região mais de 9 bilhões de dólares (R$ 45 bilhões).
Mas a maior concentração de navios de pesca ilegal do mundo possivelmente foi uma frota chinesa em águas norte-coreanas. Em 2017, em resposta aos testes de mísseis nucleares e balísticos da Coreia do Norte, o Conselho de Segurança das Nações Unidas – com o aparente apoio da China – impôs sanções destinadas a privar o regime de Kim Jong Un de divisas estrangeiras, em parte impedindo-o de vender direitos de pesca, uma importante fonte de rendimento. De acordo com a ONU, Pyongyang continuou a obter divisas – 113 milhões de euros (R$ 625 milhões) só em 2018 – concedendo direitos de pesca ilegais, predominantemente a empresas chinesas. Um anúncio no site chinês Zhihu oferece licenças emitidas pelos militares norte-coreanos para a pesca “sem risco e de alto rendimento”, sem limites de captura. “Ansioso por uma cooperação vantajosa para todos”, diz o anúncio. A China parece não conseguir ou não querer impor sanções ao seu aliado.
Os barcos chineses contribuíram para o declínio da população de lulas da região: as capturas diminuíram cerca de 70% desde 2003. Os pescadores locais não conseguem competir. “Estamos a caminho da ruína”, disse Haesoo Kim, líder de uma associação de pescadores sul-coreanos na ilha de Ulleung, que visitei em maio de 2019. Os capitães de pesca norte-coreanos foram forçados a se afastar da costa, e os seus navios são apanhados por tempestades ou sucumbem a falhas de motor. Os membros dessas tripulações enfrentam fome, temperaturas geladas e afogamento. Cerca de uma centena de pequenos barcos de pesca norte-coreanos aparecem ao longo da costa do Japão todos os anos, alguns deles com cadáveres de pescadores.
Os barcos chineses que navegam nestas águas são também conhecidos por atacar navios de patrulha. Em 2016, pescadores chineses abalroaram e afundaram um navio sul-coreano no mar Amarelo. Em outro incidente, a Guarda Costeira sul-coreana abriu fogo contra mais de duas dúzias de navios chineses que se precipitaram sobre as suas embarcações.
Em 2019, embarquei num navio de pesca de lulas sul-coreano até à fronteira marítima entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul. Não demoramos muito pra encontrar uma fila de barcos chineses de pesca de lulas que se dirigia para águas norte-coreanas. Fomos para perto deles e lançamos um drone para captar os seus números de identificação. Um dos capitães chineses tocou a buzina e acendeu as luzes – sinais de aviso no protocolo marítimo. Como estávamos em águas sul-coreanas e a uma distância legal, o nosso capitão manteve o rumo. O capitão chinês virou abruptamente na nossa direção, numa trajetória de colisão. O nosso capitão desviou-se quando o navio chinês estava a apenas 30 metros.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês disse que “a China tem aplicado de forma consistente e conscienciosa as resoluções do Conselho de Segurança relativas à Coreia do Norte” e acrescentou que o país tem “punido de maneira firme” a pesca ilegal. Mas o ministério não admitiu, nem negou que a China envia barcos para águas norte-coreanas. Em 2020, a organização sem fins lucrativos Global Fishing Watch utilizou dados de satélite para revelar que centenas de navios chineses de captura de lulas pescavam rotineiramente em águas norte-coreanas. Em 2022, a China tinha reduzido esta frota ilegal em 75% em relação ao seu pico. Ainda assim, em águas não regulamentadas, as horas trabalhadas pela frota aumentaram e a quantidade das suas capturas também cresceu.
“Se isto é uma dor de barriga…”
Pouco depois de 1 de janeiro de 2021, o Zhen Fa 7 contornou a ponta da América do Sul e parou brevemente em águas chilenas, suficientemente perto da costa para conseguir acesso à rede de telefonia. Daniel Aritonang dirigiu-se à ponte de comando e, num um tom brincalhão e inglês vacilante, perguntou a um dos oficiais se podia emprestar o celular. Esfregando o indicador e o polegar um no outro, o oficial deu sinais de que sim, mas que isso ia custar dinheiro. Aritonang correu para baixo do convés, vendeu alguns dos seus cigarros e snacks a outros marinheiros, pediu emprestado todo o dinheiro que pôde e regressou com o equivalente a cerca de 13 dólares, o que renderia cinco minutos ao telefone. Ligou para casa dos pais e a mãe atendeu, entusiasmada por ouvir a sua voz. Disse que estaria em casa em maio e pediu para falar com o pai. “Ele está dormindo”, ela disse. Na verdade, ele tinha morrido de ataque cardíaco alguns dias antes, mas a mãe de Daniel não queria dar a notícia ao filho enquanto ele estivesse no mar. Mais tarde, disse ao pastor da aldeia que estava ansiosa pelo regresso de Daniel. “Ele quer construir uma casa para nós.”
Pouco depois, o navio ancorou numa zona chamada “Buraco Azul”, uma área perto das ilhas Malvinas, onde as disputas territoriais entre o Reino Unido e a Argentina criaram uma lacuna na aplicação da lei marítima que os navios podem explorar. Daniel ficou com saudades de casa, permanecendo no seu quarto e comendo sobretudo macarrão instantâneo. “Ele parecia ficar triste e cansado”, disse Fikran. Em janeiro de 2021, Daniel adoeceu com beribéri. O branco dos seus olhos ficou amarelo e as pernas incharam. “Daniel estava muito mau”, lembrou Anhar. O capitão recusou-se a prestar assistência médica. “Ainda havia muita lula”, disse Anhar. “Estávamos no meio de uma operação.” Em fevereiro, a tripulação descarregou a pesca num navio-frigorífico que a transportou para as Ilhas Maurício. Mas, por razões que ainda não são claras, o capitão recusou-se a enviar Aritonang para terra também.
Quando Aritonang não conseguia mais andar, a tripulação indonésia dirigiu-se novamente à ponte de comando e confrontou o capitão, ameaçando fazer greve se ele não arranjasse ajuda médica. “Estávamos todos contra o capitão”, disse Anhar. Finalmente, o capitão cedeu e, em 2 de março, transferiu Daniel para um navio-tanque de combustível, o Marlin, que concordou em transportá-lo para Montevidéu, no Uruguai. A tripulação do Marlin levou-o para uma área ao largo da costa, onde um barco o apanhou e o levou para o porto. Uma agência marítima que representa a Rongcheng Wangdao no Uruguai telefonou para um hospital local e uma ambulância levou-o para lá.
Jesica Reyes, de 36 anos, é uma das poucas intérpretes de indonésio em Montevidéu. Aprendeu a língua sozinha enquanto trabalhava num cibercafé popular entre os tripulantes indonésios. Chamavam-lhe “Mbak”, que significa “senhora” ou “irmã mais velha”. De 2013 a 2021, navios pesqueiros – a maioria chineses – desembarcaram um cadáver em Montevidéu a cada mês e meio, aproximadamente. Durante um jantar, Jesica falou de centenas de marinheiros em dificuldades que ela tinha ajudado. Descreveu, por exemplo, o caso de um que morreu de uma infecção dentária porque o seu capitão não o levou para terra. Falou de outro marinheiro doente, cuja agência se recusou a levá-lo para o hospital, mantendo-o num quarto de hotel enquanto o seu estado se deteriorava – acabou morrendo.
No dia 7 de março de 2021, a agência marítima da Rongcheng pediu a Reyes que fosse à emergência do hospital para ajudar os médicos a se comunicarem com Daniel Aritonang; disseram-lhe que ele tinha uma dor de barriga. No entanto, quando ele chegou ao hospital, todo o seu corpo estava inchado e ela podia ver nódoas negras à volta dos olhos e do pescoço. Ele sussurrou que tinha sido amarrado pelo pescoço (outros marinheiros disseram, mais tarde, que não tinham visto isso acontecer e que não sabiam quando é que ele tinha sofrido os ferimentos). Reyes telefonou para a agência marítima e disse: “Se isso é uma dor de barriga… vocês não estão vendo esse rapaz. Ele está todo bichado!” Em pânico, Reyes começou a tirar fotografias do corpo até que os médicos lhe pediram para parar.
Ainda na sala de emergência, os médicos começaram a tratar Aritonang, que chorando e tremendo perguntou a Reyes: “Onde estão os meus amigos?” E sussurrou. “Estou com medo.” Aritonang foi declarado morto na manhã seguinte. “Fiquei com raiva”, disse Reyes. Os marinheiros com quem falamos também estavam furiosos. “Esperamos realmente que, se for possível, o capitão e todos os oficiais sejam capturados, acusados ou presos”, declarou Mejawati. Anhar, o melhor amigo de Aritonang, só soube da sua morte depois de desembarcar do Zhen Fa 7 em Singapura, em maio de 2021. “Ficamos destroçados”, disse. Quando o encontramos, ainda guardava uma mala cheia de roupas de Daniel Aritonang. Eletinha prometido ao amigo levá-las para casa.
A pesca é um dos trabalhos mais mortíferos do mundo – um estudo recente estima que mais de cem mil trabalhadores morrem todos os anos – e os navios chineses estão entre os com as condições mais brutais. Os recrutadores têm frequentemente como alvo homens desesperados no interior da China e em países pobres. “Se está endividado, se a sua família o abandonou, se não quer ser desprezado, desligue o telefone e fique longe de terra”, lê-se num anúncio online na China.
De acordo com documentos judiciais e investigações de agências de notícias chinesas, alguns candidatos são aliciados com promessas de contratos lucrativos, mas acabam descobrindo que têm de pagar uma série de taxas – por vezes, mais do que o salário de um mês – para cobrir despesas como viagens, formação profissional, certificações da tripulação e vestuário de trabalho e equipamento de proteção. Muitas vezes, os trabalhadores pagam estas taxas contraindo empréstimos junto às agências de recrutamento, criando uma forma de servidão por dívidas. As empresas confiscam os passaportes e cobram multas por abandono do emprego, aprisionando ainda mais os trabalhadores. Por vezes, mesmo aqueles que estão dispostos a correr o risco de serem penalizados são, na prática, mantidos em cativeiro nos navios.
Para um relatório de 2022, a Environmental Justice Foundation entrevistou mais de uma centena de membros de tripulações indonésias e descobriu que cerca de 97% tiveram seus documentos confiscados ou foram alvo de servidão por dívidas. Por vezes, os trabalhadores nessas condições conseguem alertar as autoridades. Em 2014, 28 trabalhadores africanos desembarcaram de um navio chinês chamado Jia De 1, ancorado em Montevidéu, e vários deles se queixaram de espancamentos a bordo e mostraram marcas de algemas nos tornozelos. Quinze membros da tripulação foram hospitalizados. (A empresa proprietária do navio não respondeu a pedidos de comentário.) Em 2020, vários marinheiros indonésios queixaram-se de espancamentos graves no mar e da presença do corpo de um homem num dos congeladores do navio. Uma autópsia revelou que o homem tinha hematomas, cicatrizes e uma lesão na coluna vertebral. As autoridades indonésias condenaram vários executivos da agência de recrutamento a mais de um ano de prisão por tráfico de trabalhadores. (A empresa também não respondeu aos pedidos de comentário.)
Na China, esses abusos trabalhistas são um segredo mal guardado. Um detalhado diário escrito por um marinheiro chinês proporcionou um raro vislumbre desse mundo. Em maio de 2013, esse marinheiro pagou uma taxa de recrutamento de 200 dólares a uma agência que o enviou para um navio chamado Jin Han Yu 4879. A tripulação foi informada de que os seus primeiros dez dias a bordo seriam um período experimental, após o qual poderiam partir, mas o navio permaneceu no mar durante 102 dias. “Somos escravos para trabalhar em qualquer altura e em qualquer lugar”, escreveu o marinheiro no diário. Segundo ele, os oficiais comiam carne nas refeições, mas os marinheiros só recebiam ossos. “Quando a campainha toca, temos de nos levantar, seja de dia, de noite, de manhã cedo, por mais forte que seja o vento, por mais forte que seja a chuva, não há domingos nem feriados.” (A empresa proprietária do navio não respondeu aos pedidos de comentário.)
Na China, essas condições vieram a público quando, em 2011, a tripulação de um navio de pesca de lulas chamado Lu Rong Yu 2682 se amotinou. O capitão, Li Chengquan, era um “homem grande, alto e mal-humorado” que, de acordo com um ajudante de convés, deu um soco no olho de um trabalhador que o irritou. Começaram a circular rumores de que o salário anual de 7 mil dólares (R$ 36 mil) que lhes tinha sido prometido não estava garantido. Em vez disso, ganhariam muito menos: cerca de quatro centavos de dólar por quilo de lula capturada. Nove membros da tripulação fizeram o capitão de refém. Nas cinco semanas que se seguiram, a tripulação do navio transmutou-se em facções em guerra. Houve homens que desapareceram durante a noite, um membro da tripulação foi amarrado e atirado ao mar e alguém sabotou uma válvula do navio, que começou a deixar entrar água. A tripulação acabou conseguindo consertar o sistema de comunicações, o que permitiu transmitir um sinal de socorro, atraindo dois navios de pesca chineses em seu auxílio. Apenas 11 dos 33 homens da tripulação inicial conseguiram regressar à terra. O líder dos amotinados e o capitão do navio foram condenados à morte pelo governo chinês. (A empresa proprietária do navio não respondeu aos pedidos de comentário.)
O tráfico de trabalhadores também foi documentado em barcos americanos, sul-coreanos e tailandeses. Mas a frota da China é indiscutivelmente a pior infratora e pouco tem sido feito para conter as violações. No decorrer desta reportagem descobrimos que, entre 2018 e 2022, a China deu mais de 17 milhões de euros (R$ 94 milhões) em subsídios a empresas nas quais pelo menos 50 navios podem estar envolvidos em crimes de pesca ou tiveram mortes ou ferimentos a bordo – alguns dos quais, provavelmente, resultantes das condições de trabalho perigosas. O governo se recusou a comentar o assunto, mas Wang Wenbin, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, disse que a frota opera “de acordo com as leis e regulamentos” e acusou os EUA de politizar “questões que dizem respeito às pescas em nome da proteção ambiental e dos direitos humanos”.
Nos últimos anos, a China concretizou uma série de reformas, mas elas parecem ter mais como objetivo reprimir a dissidência do que responsabilizar as empresas. Em 2017, depois de um trabalhador filipino ter morrido numa luta à faca com alguns dos seus companheiros de tripulação chineses, Pequim criou uma delegação do Partido Comunista em Chimbote, no Peru – a primeira para os trabalhadores da pesca –, com o objetivo de reforçar o seu “apoio espiritual”. A polícia local de algumas cidades chinesas começou a utilizar vídeochamadas por satélite para se ligar às pontes de comando de algumas embarcações chinesas. Em 2020, quando os tripulantes chineses de um navio perto do Peru entraram em greve, a empresa contatou a polícia local, que explicou aos trabalhadores que poderiam desembarcar no Peru e regressar à China, mas teriam de pagar as passagens de avião. “Não se sentiriam prejudicados se se demitissem agora?”, perguntou um agente da polícia. Os homens voltaram ao trabalho.
Escravidão a bordo
À medida que essa reportagem decorria, iam surgindo histórias de violência e cativeiro, mesmo quando eu não estava à procura delas. Em 2023, recebi um vídeo de 2020 no qual dois tripulantes filipinos diziam estar doentes, mas que estavam sendo impedidos de abandonar o navio. “Por favor, nos salvem”, pedia um deles. “Já estamos doentes aqui. O capitão não quer mandar para o hospital.” Três marinheiros morreram nesse verão; pelo menos um dos corpos foi atirado ao mar. (A agência de recrutamento que contratou estes trabalhadores para o navio, a PT Puncak Jaya Samudra, não respondeu às perguntas enviadas; nem a empresa proprietária do navio.)
Numa viagem a Jacarta, Indonésia, em 2020, conheci meia dúzia de rapazes que me contaram que, no ano anterior, um jovem marinheiro chamado Fadhil morreu no seu navio porque os oficiais se recusaram a trazê-lo para terra. “Ele implorava para voltar pra casa, mas não permitiram”, disse Ramadhan Sugandhi, um marinheiro de convés. (A empresa proprietária do navio não respondeu aos pedidos de comentário, nem a sua agência de recrutamento, a PT Shafar Abadi Indonesia.) Em junho de 2023, uma garrafa chegou à costa perto de Maldonado, no Uruguai, contendo o que parecia ser uma mensagem de um chinês desesperado. “Olá, sou um membro da tripulação do navio Lu Qing Yuan Yu 765 e fui preso pela empresa”, lia-se. “Quando virem este papel, por favor me ajudem a chamar a polícia! S.O.S. S.O.S.” (A proprietária do navio, a Qingdao Songhai Fishery, disse que as acusações foram inventadas por membros da tripulação.)
Jesica Reyes, a tradutora, nos colocou em contato com Rafly Maulana Sadad, um indonésio que, enquanto trabalhava no Lu Rong Yuan Yu 978 há dois anos, caiu de um lance de escadas e fraturou as costas. Voltou imediatamente ao trabalho, puxando as redes; desmaiou e acordou na cama. O capitão se recusou a levá-lo para terra e Sadad passou os cinco meses seguintes no navio, piorando. Seus amigos o ajudavam a comer e tomar banho, mas ele estava desorientado e muitas vezes ficava deitado numa poça da sua própria urina. “Tinha dificuldade em falar”, contou-nos Sadad em 2022. “Sentia-me como se tivesse tido um AVC ou algo do gênero.” Em agosto de 2021, o capitão deixou Sadad em Montevidéu e ele passou nove dias no hospital, antes de regressar pra casa de avião. (Os pedidos de comentário da Rongcheng Rongyuan, proprietária do navio em que Sadad trabalhou, e da PT Abadi Mandiri International, a sua agência de recrutamento, ficaram sem resposta.) Sadad falou comigo a partir da Indonésia; agora só consegue andar de muletas. “Foi uma experiência de vida muito amarga”, disse.
Tal como os barcos que as abastecem, as fábricas de transformação chinesas dependem de trabalho forçado. Nos últimos 30 anos, o governo norte-coreano tem exigido que os cidadãos trabalhem em fábricas na Rússia e na China, e que depositem 90% dos seus salários – que somam centenas de milhões de dólares – em contas controladas pelo Estado. Os trabalhadores são frequentemente sujeitos a um controle rigoroso e têm os seus movimentos vigiados. As sanções da ONU proíbem esse tipo de utilização dos trabalhadores norte-coreanos, mas, de acordo com estimativas do governo chinês, em 2022, cerca de 80 mil trabalhadores norte-coreanos viviam apenas numa cidade do Nordeste da China.
De acordo com um relatório do Comitê para os Direitos Humanos na Coreia do Norte, pelo menos 450 destas pessoas trabalhavam em fábricas de pescado. O governo chinês retirou da internet grande parte das referências a estes trabalhadores. No entanto, utilizando os termos de pesquisa “North Korean beauties”, encontramos vários vídeos no Douyin, a versão chinesa do TikTok, que parecem mostrar trabalhadoras de fábricas de pesca, a maioria posts de funcionários homens. Um trabalhador chinês observou que as mulheres “têm um forte sentido de identidade nacional e são autodisciplinadas!”. Outro argumentou, no entanto, que as trabalhadoras não têm outra opção senão obedecer às ordens, caso contrário “os membros das suas famílias vão sofrer”.
Na última década, a China desencadeou uma onda de repressão contra os uigures e outras minorias étnicas em Xinjiang, uma região no Noroeste da China, criando centros de detenção em massa e forçando os detidos a trabalhar nas colheitas de algodão ou tomate e em fábricas de polissilício (material semicondutor utilizado na produção de células fotovoltaicas). Mais recentemente, num esforço para desestabilizar essas comunidades e encontrar mão-de-obra barata para as grandes indústrias, o governo deslocou milhões de uigures para trabalharem em empresas de todo o país. Os trabalhadores são frequentemente supervisionados por seguranças e postos em dormitórios rodeados de arame farpado.
Ao pesquisar os boletins informativos das empresas, os relatórios anuais e as notícias dos meios de comunicação estatais, descobrimos que, entre 2018 e 2023, milhares de uigures e outras minorias muçulmanas foram postas para trabalhar em fábricas de transformação de pesca. Alguns são submetidos a uma “educação patriótica”. Numa notícia de 2021, funcionários locais do Partido Comunista afirmaram que os membros de grupos minoritários que trabalhavam numa fábrica de pescado eram uma “grande família tradicional” e estavam aprofundando a sua “educação para a unidade étnica”.
Laura Murphy, professora da Universidade Sheffield Hallam, no Reino Unido, especialista em tráfico humano, escravidão e trabalho forçado, diz que “tudo isto faz parte do projeto para apagar a cultura, as identidades, a religião e, certamente, a política dos uigures: o objetivo é a transformação completa de toda a comunidade”. As autoridades chinesas não responderam a vários pedidos de comentário sobre o trabalho forçado dos uigures e de cidadãos da Coreia do Norte na indústria de transformação da pesca do país.
Os EUA têm leis rigorosas que proíbem a importação de bens produzidos com mão- de-obra norte-coreana ou uigur. A utilização desses trabalhadores em outras indústrias – por exemplo, na fabricação de painéis solares – tem sido documentada nos últimos anos e, em consequência, os EUA confiscaram produtos importados no valor de 1 bilhão de dólares. Descobrimos, no entanto, que as empresas que empregam uigures e norte-coreanos exportaram recentemente pelo menos 47 mil toneladas de produtos de pesca (incluindo cerca de 17% de todas as lulas transportadas para os EUA). As remessas foram enviadas para dezenas de importadores americanos, incluindo os que abastecem bases militares e cantinas de escolas públicas. “Estas revelações põem um problema muito sério a toda a indústria da pesca”, diz Martina Vandenberg, fundadora e presidente do Human Trafficking Legal Center.
A China não aceita bem as reportagens sobre este setor. Em 2022, passei duas semanas a bordo do Modoc, um antigo barco da Marinha dos EUA que a organização sem fins lucrativos Earthrace Conservation utiliza como navio-patrulha. Nessa altura estivemos junto de navios chineses de pesca de lulas ao longo da costa da América do Sul. Quando estávamos retornando a um porto de Galápagos, um navio da Marinha equatoriana aproximou-se de nós e um oficial disse que a nossa autorização para reentrar em águas equatorianas tinha sido revogada. “Se não derem meia volta agora, vamos abordar o seu barco e prender vocês.” Nos disseram para navegarmos para outro país. Não tínhamos comida nem água suficientes para a viagem. Depois de dois dias de negociações, fomos autorizados a entrar brevemente no porto, onde oficiais equatorianos armados nos abordaram: alegaram que as licenças do navio tinham sido registradas incorretamente e também que tínhamos desviado um pouco da rota aprovada ao sair das águas nacionais. Esse tipo de infração não resulta normalmente em mais do que uma multa.
Mas, de acordo com o embaixador Fitzpatrick, a explicação foi um pouco mais complicada. Disse que o governo chinês tinha contatado vários parlamentares equatorianos para manifestar a sua preocupação com a presença do que considerava ser um navio quase militar envolvido em operações secretas. Quando falamos com Juan Carlos Holguín, na época ministro dos Negócios Estrangeiros do Equador, ele negou que a China estivesse envolvida. Mas Fitzpatrick disse que Quito tem cuidado quando se trata da China, em parte porque o Equador está profundamente endividado com o país. “A China não gosta dos Modoc”, disse ele. “Mas, sobretudo, não queria mais cobertura midiática sobre a sua frota de pesca de lulas.”
Pesca criminosamente contaminada
No dia da morte de Daniel Aritonang, Reyes apresentou um relatório à Guarda Costeira uruguaia e mostrou as fotografias do corpo do rapaz aos oficiais. “Eles pareceram bastante desinteressados”, disse ela. Mas, no dia seguinte, um médico legista local fez uma autópsia. “Houve uma situação de abuso físico”, diz o relatório. Enviei o relatório a Victor Weedn, patologista forense, que me disse que o corpo apresentava sinais de violência e que o beribéri não tratado parece ter sido a causa da morte. Nicolas Potrie, que dirige o consulado da Indonésia em Montevidéu, lembra-se de ter recebido um telefonema de Mirta Morales, a procuradora que investigou o caso de Aritonang. “Temos de continuar a tentar descobrir o que aconteceu. Essas marcas – todo mundo viu”, disse Morales a Potrie. Um representante da Rongcheng Wangdao disse que a empresa não encontrou nenhuma prova de má conduta no navio: “Não houve nada relacionado com as suas alegações de incidentes terríveis de abuso, violação, insultos ao carater de alguém, violência física ou retenção de salários.” A empresa disse que tinha reportado o caso à Associação das Pescas Ultramarinas da China. As questões colocadas a esta associação ficaram sem resposta.
Potrie insistiu em fazer mais perguntas, mas também não houve resposta. Morales recusou-se a partilhar conosco qualquer informação sobre o caso. Em março de 2022, conversamos em Montevidéu com Aldo Braida, o presidente da Câmara de Agentes de Pesca Estrangeiros, associação que representa as empresas que trabalham com navios estrangeiros no Uruguai. Braida classificou os relatos de maus tratos em navios chineses que atracam no porto como “fake news”, afirmando que “há muitas mentiras em torno disso”. Nos disse ainda que, se os membros da tripulação cujos corpos foram desembarcados em Montevidéu tivessem sofrido maus tratos físicos, as autoridades uruguaias descobririam; e que, quando se juntam homens perto uns dos outros, é provável que surjam brigas. “Vivemos numa sociedade violenta”, disse.
O Uruguai não tem se mostrado disposto a escrutinar mais a China porque este país traz negócios lucrativos para a região. Em 2018, por exemplo, uma empresa chinesa que havia comprado um terreno de quase 28 hectares a oeste de Montevidéu apresentou um plano para construir um “megaporto” de mais de 188 milhões de euros (mais de R$ 1 bi). O noticiário local informou que o porto seria uma zona de comércio livre e incluiria docas de 800 metros de comprimento, um estaleiro, uma estação de abastecimento de combustível e instalações de armazenamento e processamento de produtos da pesca. Há anos que o governo uruguaio tentava obter esse investimento chinês. O então presidente Tabaré Vázquez tentou contornar a Constituição, que exige uma votação de dois terços de ambas as câmaras do Congresso, e autorizar a construção do porto por decreto. “Há tanto dinheiro em cima da mesa que os políticos começam a contornar a lei para o agarrar”, diz Milko Schvartzman, especialista em conservação marinha radicado na Argentina. Mas, devido à resistência da sociedade e dos partidos da oposição, o plano foi cancelado.
A indústria de produtos marinhos é difícil de controlar. Uma grande parte do peixe consumido nos EUA é capturado ou processado por empresas chinesas. Existem várias leis para impedir que os EUA importem produtos ligados a trabalho forçado. Mas a China não fornece pormenores sobre os seus navios e fábricas de processamento de pescado. Num navio chinês, durante essa apuração, um ajudante de bordo me mostrou pilhas de peixe congelado em sacos brancos. Explicou que não escrevem os nomes dos navios fora dos sacos para que estes possam ser facilmente transferidos entre navios. A prática permite que as empresas de pesca escondam as suas ligações a navios com histórico criminal.
Na ponte de comando de outro navio, um capitão chinês abriu o seu diário de bordo, que deveria documentar tudo o que foi pescado. As duas primeiras páginas tinham anotações; as restantes estavam em branco. “Ninguém faz isso”, disse ele. Os funcionários da empresa poderiam fazer uso dessas informações mais tarde.
É provável que nada mude enquanto os consumidores estiverem olhando para o outro lado. Para documentar as falhas de controle no sistema de abastecimento de pescado, a equipe desta reportagem seguiu os navios por satélite e observou-os transferindo as suas capturas para navios-frigoríficos. Seguimos esses navios até os seus portos e, com um time de investigadores na China, filmamos o que foi pescado sendo transferido para caminhões, que depois entregavam a carga em fábricas de transformação. Descobrimos, por exemplo, que o Zhen Fa 7 fazia o transbordo com uma empresa que empregou pelo menos 170 trabalhadores uigures ou de outras minorias deslocados de Xinjiang. Pelo menos seis fábricas que parecem ter processado o pescado do Zhen Fa exportaram grandes volumes de produtos para centenas de cadeias de empresas do ramo da alimentação nos EUA , incluindo a Costco, a Kroger, a H Mart, a Performance Food Group e a Safeway (nenhuma das empresas respondeu às perguntas enviadas).
No dia 22 de abril, o corpo de Daniel Aritonang foi transportado de avião de Montevidéu para Jacarta e depois levado para a casa da família em Batu Lungun, num caixão de madeira com uma figura de Jesus Cristo em cima. A mãe de Aritonang chorou e desmaiou ao ver o caixão. O funeral não demorou e Aritonang foi enterrado a poucos metros do pai, num cemitério não muito longe da igreja que frequentava. A sua lápide é feita de duas ripas de madeira unidas em forma de cruz.
À noite, depois do funeral, um funcionário da agência de recrutamento de Daniel visitou a família para discutir o que os locais chamam “acordo de paz”. Anhar disse que a família acabou por aceitar um acordo de cerca de 200 milhões de rupias, ou seja, aproximadamente 13 mil dólares. Os membros da família estavam relutantes em falar sobre os acontecimentos no navio. O irmão de Aritonang, Beben, disse que não queria que a sua família se metesse em confusão e que falar do caso poderia causar problemas para a sua mãe. “Nós, a família de Daniel, fizemos as pazes com o pessoal do navio”, disse ele.
Em 2022, 13 meses após a morte de Daniel Aritonang, voltei a falar com a família por videoconferência. A mãe, Regina Sihombing, estava sentada num tapete com padrão de leopardo na sala de estar com o seu filho Leonardo. A sala não tinha mobília nem outro lugar para se sentar que não fosse o chão. Segundo o chefe da aldeia, a habitação tinha sido reparada com dinheiro do acordo; afinal, parece que Daniel tinha conseguido ajudar a melhorar a casa dos pais. Quando a conversa se voltou para Daniel, a mãe começou a chorar: “Você está vendo como estou agora.” E Leonardo disse: “Não fique triste. Era a hora dele.”
Esta reportagem foi produzida pelo The Outlaw Ocean Project, uma organização de jornalismo sem fins lucrativos em Washington, D.C. A reportagem e a redação tiveram contribuições de Ian Urbina, Joe Galvin, Maya Martin, Susan Ryan, Daniel Murphy e Austin Brush.