Uma dose de capitalismo extremo: do modelo sócio-político-econômico neoliberal, não se deve esperar nada de bom. Dele, o que deveria emergir de maneira simples e gentil é coberto por uma complexa teia, onde as batalhas mais duras são diárias, o que exige que a compreensão e o respeito pela existência de corpos diversos estejam no centro do enfrentamento contínuo.
É doloroso reivindicar algo que deveria ser óbvio. Mais ainda, nas alturas do ano 24 do milênio de número dois, século 21. Apostamos que se alguém de mente aberta passasse os últimos 50 anos dormindo e acordasse hoje, uma folheada no calendário o encheria de esperança de que pessoas pretas; pessoas mulheres; pessoas LGBTQIAPN+; pessoas indígenas e pessoas gordas não fossem vítimas de preconceito. Pudera. Bastariam alguns minutos de atualização – virtual e/ou física – para concluir que as discriminações sistêmicas e sistemáticas são vigentes, e que essas pessoas seguem ininterruptamente obrigadas à luta pelo direito de existir.
Veja: falamos em existir. Nem chegamos à etapa do respeito, já que distantes estamos de um caminho que, de fato, permita a coexistência pacífica de diferentes povos, diferentes comunidades, diferentes pessoas e espécies. Diferentes corpos.
O que podemos declarar é luta. Existem movimentos que rumam para fora do ódio. Há vida. Há histórias. Com a força de ambas (ou são a mesma coisa?), cenários complexos sempre podem ser destrinchados. Debatidos. Ampliados. É isso o que desejamos aqui, no Joio, onde a luta é constante contra os preconceitos, inclusive a gordofobia, como mostra o atualíssimo episódio Quem Ganha Com a Obesidade, do Prato Cheio.
Por não óbvio que soe para ultraconservadores, reacionários e neofascistas, questões de autonomia e justiça social são inerentes a todo o espectro de seres vivos, independentemente de “tamanho”. Aqui, a gente vai ser bem direto: não é aceitável usar a régua do peso, dos quilos de uma pessoa, para medir o direito dela à existência, ao respeito e à igualdade.
Na crueza da realidade, no entanto, essa forma de medição é usada fartamente, já que o neoliberalismo avança a passos largos para garantir onipresença nas decisões individuais, coletivas e estatais. E as regras desse modelo são explícitas. Usadas em repetição, estão incrustadas na rotina, do micro ao macro. Estão incrustadas na vida. Na memória.
“Liberdade individual” e “liberdade de escolha” são partes de uma canção ruim, mas que gruda nos ouvidos e nos atravessa as cabeças, dia após dia. Em formato de refrão quando se trata de obesidade, os versos insistem que uma pessoa deve “perder peso” com a imediata transferência para a “culpa individual”. Mesmo que sob o apelo à saúde, a responsabilização pessoal só favorece os algoritmos financeirizados da estrutura de poder das corporações transnacionais e dos bilionários criados por ela.
Estes, no exercício do controle dos corpos, riem, quando ignoramos fatores ambientais incontroláveis e estruturantes no debate sobre a obesidade. Divertem-se, ao observar nossos rompimentos, quando, de um lado, damos de ombros à justiça social e, de outro, nos distanciamos da boa ciência. Gargalham, enquanto nos defrontamos nos andares de baixo a partir de agendas pautadas pelos lucros privados – catastróficos para a saúde pública.
Esse controle, invariavelmente, vem acompanhado do potencial para matar. O poder privado de corporações trilionárias cava caminhos ao infinito para lucrar mortalmente em cima de todos os tipos de corpos. O que pode se dar desde agendas falsamente positivas que levam a ainda mais controle até a institucionalização de exércitos militarizados e armados para eliminar “corpos indesejáveis”.
Em concomitância, o Estado é o mecanismo executor e legitimador da eliminação de populações e grupos dissidentes indesejados. Para esses, a força e a violência estético-política estatal aparecem a serviço de um modelo privatista.
Por princípio, os fundamentos desse modelo, ao contrário de oferecer atendimento acolhedor e apropriado em unidades de saúde, transportes e espaços públicos, categoriza corpos como “grandes demais”, assim como os que são vistos como “pretos demais”, “gays demais” para circularem livremente.
Áreas de estudo e do saber já convergem para conectar a gordofobia à misoginia – vale ressaltar que a pressão e os julgamentos sobre as mulheres pelo “corpo perfeito” é sobremodo maior –, bem como ao racismo e à transfobia.
Também há evidências fartas no campo científico (e não falamos somente das ciências duras de exatas ou estritamente de saúde, mas, também, das sociais) que apresentam a fundamentalidade da construção de uma cultura que dê conta de tratar dos Direitos Humanos desses corpos e do rechaço à gordofobia, sem descartar os impactos dos fatores associados à obesidade na saúde pública.
Porém, existe um acordo do qual não podemos, nem queremos, fugir. Se nos sentimos responsáveis no combate ao estigma atribuído a pessoas e coletivos por uma palavra, consideramos igualmente a responsabilidade em não condenar toda uma produção científica séria, comprometida com o interesse público.
Posicionarmo-nos contra o uso do termo neste momento histórico não colaboraria para a evolução da discussão. Ao contrário, nos colocaria no campo da interdição do debate, o que, aliás, impossibilitaria levar em conta fatores correlacionados para muito além de julgamentos sobre o tamanho dos corpos por índices questionáveis, como o IMC, ou a respeito da medicalização da vida e das distorções mercadológicas no uso de medicamentos, caso da moda do Ozempic.
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Faça parteDefendemos nossa posição inegociável contra a gordofobia e pelo entendimento de que a palavra obesidade deve ser inscrita e escrita em contextos e cenários de respeito à diversidade de corpos. Evidente que a disputa do repertório linguístico é sempre parte essencial das lutas entre oprimidos e opressores. Não à toa, colonizadores destroem idiomas e dialetos em nome da “construção de uma língua unificada”.
Em uma perspectiva descolonizada, é mais do que relevante, pois fundamental, que nosso léxico avance e afrouxe mecanismos rígidos constituídos pelos dominadores. Mecanismos esses, que estão carregados de estereotipia.
Vamos disputar a palavra. Seja no campo do debate público, seja no campo das ciências da saúde feitas nos centros de pesquisa. Que permaneçamos abertos para substituir o termo no futuro, se essa for a exigência de uma democracia radical. Afinal, a ciência não é o todo da sociedade (assim como não o é o jornalismo que fazemos), mas é uma parte importante dela, que deve caminhar de acordo com as reivindicações legítimas das comunidades que a cercam.
E não só a reivindicação da palavra é prioridade, mas, idem, a revisão de métodos de avaliação sobre um corpo, se doente ou não, além de um atendimento pleno a todos os corpos.
É urgente compreender a necessidade de olhar para a estrutura de poder que se lambuza de lucros e risos enquanto o debate público e a boa ciência, como a publicada no Observatório da Obesidade, que não se furta de expor vivências de gordofobia médica, não andarem de mãos dadas. Na disputa pela língua, não é suficiente dissolver ou substituir palavras sem o entendimento da fonte original que as criou para difundir rótulos, estigmas e, posteriormente, lucrar.
Enquanto o neoliberalismo permanecer de pé, sempre estará pronto a cooptar ou a destruir bandeiras legítimas, terminologias novas ou velhas, e a reproduzir negacionismo e conflitos de interesses na ciência, nos movimentos sociais e em coletivos de matizes variados.
Temos um inimigo em comum. Poderoso. Estrutural. Sem desvalorizar quaisquer lutas, é elementar reconhecer o que mais nos esmaga. Temos de partir de algum lugar, de algum aspecto, é certo.
Além de erguer escudos contra a munição pesada do capital que nos atinge todos os dias, é fundante que cerremos alianças para analisar e propor o desmonte do dispositivo que fabrica as armas que nos matam.