Setor plant-based aposta em profissionais de culinária para legitimar, pelo gosto, alimentos que buscam reproduzir sabor e textura de boi, frango e peixe
Foodtechs têm se aliado a chefs para criar carnes vegetais que imitam a suculência de proteínas animais. Como consultores ou contratados, esses profissionais ajudam a dar textura, cheiro e sabor a produtos plant-based.
Com o movimento, o setor almeja trazer mais legitimidade às proteínas alternativas, cujas vendas no varejo brasileiro atingiram R$ 1,1 bilhão em 2023, um aumento de 38% em relação ao ano anterior, segundo o Good Food Institute, uma organização não governamental que fomenta startups.
As tecnologias da indústria avançaram, diz Ernesto Vecilla, chef espanhol que trocou restaurantes por uma foodtech, mas muitos produtos no mercado carecem de autenticidade de sabor.
Formado em gastronomia pelo Basque Culinary Center na Espanha e com passagens por restaurantes de renome como o Narisawa, em Tóquio, o chef recebeu o convite para comandar a “cozinha” da empresa australiana Nourish Ingredients.
A ideia era tornar apetitosos os produtos que estão em desenvolvimento por lá: gorduras análogas às de animais produzidas com fermentação de precisão de fungos — processo em que os microrganismos produzem certas moléculas.
Vecilla diz que aceitou a oferta não só pela liberdade de desenvolver produtos ligados ao prazer de comer, mas pela oportunidade de mudar o atual sistema de produção alimentar, intensivo em pecuária.
Parte das funções do chef é preparar degustações com as inovações da empresa. A última aconteceu na Future Food Summit, conferência do setor realizada em março em San Francisco, nos Estados Unidos.
Como entrada, assou um biscoito em que misturava farinha de trigo com Tastilux, a gordura para carnes da empresa. Para o prato principal, preparou dois kaftas que imitavam frango, feitos com proteína de trigo. No primeiro, colocou 1% da gordura análoga; no segundo, nada.
“O kafta com o Tastilux caramelizou mais, o que realçou as moléculas de sabor animal”, afirma Vecilla. A carne alternativa foi servida com cebolinha, salsinha, homus, conserva de rabanete e salada. “Foi um sucesso”, diz o chef. “Todos que provaram ficaram impressionados com a diferença.”
Sabor e textura, atributos com os quais Vecilla trabalha, motivam compra e recompra de proteínas alternativas, segundo Guilherme Vilela, especialista de engajamento corporativo do Good Food Institute.
A depender da estratégia e do orçamento das empresas, profissionais de culinária testam como os produtos plant-based reagem à cocção. “As proteínas alternativas precisam estar prontas para serem integradas às técnicas gastronômicas usadas em restaurantes, já que a dinâmica das cozinhas não vai mudar só pelos novos ingredientes”, afirma Vilela.
Na Fazenda Futuro, empresa brasileira que produz imitações de carnes à base de plantas, chefs trabalham como consultores. “Gostamos de ouvir as opiniões deles porque queremos um produto cada vez mais próximo à proteína animal”, diz Mariana Tunis, gerente de marketing da empresa.
Esses feedbacks ajudaram a melhorar alguns produtos. Tunis afirma que um dos chefs avisou que a carne moída da empresa estava empelotando na panela. A proteína alternativa precisava de outro formato, mais ondular, segundo o consultor—avaliação que a Fazenda Futuro incorporou na nova versão.
“Um outro profissional nos ajudou a melhorar a sensação da mordida do produto. Ele disse que precisávamos entender que morder um hambúrguer é diferente da experiência de morder uma massa, já que a proteína animal é mais rígida”, lembra Tunis.
Em um dos seus últimos lançamentos, o Burger 4.0, a empresa diz ter produzido diferentes texturas e sabores. Na receita, combinou água, preparado proteico de soja e ervilha, além de gordura vegetal. Para sabor e cor, trouxe sal, beterraba e cebola em pó – além de um aroma natural. Completam os ingredientes dextrose, que é um carboidrato, e estabilizante metilcelulose.
O novo hambúrguer repete o que, em geral, aparece nos rótulos de outros análogos à carne bovina. A composição de ingredientes se enquadra na definição de ultraprocessados da NOVA, classificação que divide os alimentos pelo grau e pelo propósito de processamento.
Segundo a classificação, ultraprocessados “não são propriamente alimentos, mas, sim, formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos”. Entre essas substâncias podem estar açúcares e óleos, mas também isolados ou concentrados protéicos, gordura hidrogenada ou amidos modificados.
Além disso, esses produtos têm adição de “corantes, aromatizantes, emulsificantes, espessantes e outros aditivos que dão às formulações propriedades sensoriais semelhantes às encontradas em alimentos do primeiro grupo [in natura e minimamente processados]. Também servem para disfarçar características indesejadas do produto final”.
O debate sobre a definição de ultraprocessados
Por ser um dos pontos que abala a confiança do consumidor em relação à saudabilidade dos alimentos plant-based, a definição de ultraprocessados passa por um embate na academia e na indústria.
Algumas pesquisas já apontaram problemas de excesso de aditivos. Um artigo de revisão de literatura publicado no começo de 2023 na Foods mostrou que carnes alternativas apresentavam altas concentrações de sódio.
É um ponto que as empresas têm trabalhado para melhorar, segundo Tunis, da Fazenda Futuro. “Mas a palavra ‘ultraprocessado’ se refere a alimentos sem valores nutricionais claros, o que não seria o caso dos plant-based”, afirma ela.
“A proteína de soja e ervilha precisa passar por um processo para ter textura e suculência, senão seria só uma massa. Mas é um processo que traz fibras e um nível protéico maior. Ninguém vive só de hambúrguer, independente de que tipo, mas o plant-based tem menos colesterol e gordura do que um de origem animal”, diz.
Segundo Paula Martins, coordenadora do grupo de pesquisa Sistemas Alimentares Sustentáveis da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mesmo que o perfil dos produtos plant-based venha se adequando aos critérios nutricionais, eles continuam sendo ultraprocessados.
“Este é o problema de só se preocupar com o valor nutricional. Isso reduz alimentos a nutrientes, o que ignora toda complexidade que a comida carrega”, afirma ela.
Essa visão embasa a ambição do setor de modificar a definição de ultraprocessados, segundo a pesquisadora. “Alguns relatórios do GFI chamam a NOVA de incompleta, abrangente e genérica”, diz Martins, “mas a realidade é que esses produtos se enquadram na definição por motivos além do perfil nutricional.”
Segundo a pesquisadora, tanto as propagandas usadas para vender os produtos quanto a hiperpalatabilidade, a qual os chefs ajudam a criar, entram na lógica dos ultraprocessados.
“Tudo isso tem o objetivo de gerar um sobreconsumo, o que não é saudável”, afirma.
Outro motivo do enquadramento seria a concentração de mercado e de tecnologia. Quando as empresas controlam o mercado, diz Martins, elas passam a ter muito poder sobre os hábitos alimentares.
“Essa concentração de mercado é motor de desigualdade social que vai gerar insegurança alimentar”, diz ela. E um dos motivos aparece no valor das carnes alternativas.
Um estudo que analisou os preços desses produtos em sites de mercados brasileiros, publicado no Journal of Cleaner Production no final de 2023, estima que carnes de empresas plant-based custem 116% mais do que as de origem animal.
O valor corresponde aos custos maiores na cadeia de produção, no desenvolvimento de produto, na forma de obter proteínas vegetais, sem contar a compra de ingredientes que são, muitas vezes, importados.
A solução para a insegurança alimentar e nutricional, diz Martins, da Unifesp, são ações que valorizem uma cultura alimentar com menos carne. “Não é preciso ir longe. Há algumas décadas, a participação da carne na alimentação era muito menor”, diz ela.
Os chefs, continua a pesquisadora, têm papel nessa mudança. “Eles podem dedicar seu conhecimento, criatividade e energia para o desenvolvimento de receitas à base de vegetais. É uma forma de democratizar conhecimento no preparo de alimentos, ao qual muitas pessoas ainda não têm acesso”, afirma.
O papel dos restaurantes
O principal foco das foodtechs que desenvolvem produtos plant-based são os flexitarianos — grupo que reduz o consumo de carne por questões de sustentabilidade, bem-estar animal e preocupações com a saúde.
No Brasil, a maioria dos que escolhem comer menos carne (76%) é composta por mulheres de alta renda e de alta escolaridade que vivem em centros urbanos, segundo estudo publicado na revista científica Apettite em janeiro de 2024.
Uma das principais dificuldades encontradas pelo grupo é a disponibilidade de proteínas alternativas à carne animal, explica Carla Teixeira, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e uma das autoras da pesquisa.
Embora o mercado de alimentos à base de plantas esteja em expansão, a variedade de produtos acessíveis e — atrativos — ainda é limitada, diz Teixeira. “Mesmo assim, os flexitarianos têm potencial significativo de aceitação de produtos análogos à carne”, afirma.
Como alternativa, flexitarianos buscam, além das carnes que ainda comem, fontes de proteínas vegetais em leguminosas, como soja, grão-de-bico e lentilha, além de plantas alimentícias não convencionais (PANCs) e cogumelos.
No restaurante Green Kitchen, na região oeste de São Paulo, 80% do público é flexitariano, segundo Daniele Zuckerman, dona e chef criativa do endereço.
Metade do cardápio tem verduras e leguminosas in natura, enquanto a outra abriga produtos plant-based análogos à carne, os quais são produzidos de forma artesanal com técnicas de fermentação, desidratação e defumação.
São pratos como carne de porco desfiada, almôndega, nuggets de frango e até pancetta, que levou um ano para ser desenvolvida.
Para imitar a carne suína, a chef usa proteínas de soja e ervilha isoladas em uma textura achatada, que chegam sem sabor de um fornecedor. As tiras são marinadas por 12 horas em temperos frescos para depois serem assadas no bafo. No final, as pancettas recebem verdura vegetal de inhame, um tubérculo também conhecido como cará.
“Não importa ser só inovador na comida, ela precisa ser saborosa”, diz a chef, que também atua como consultora para foodtechs. “Meu ativismo se dá por comida gostosa.”
Zuckerman vê preconceito contra proteínas análogas à carne, rotuladas como não saudáveis. Muito da resistência nasce da comparação direta entre os produtos plant-based e legumes in natura, avalia a chef.
“Eles não são comparáveis. Os alimentos da terra são mais saudáveis. Mas, quando comparamos proteínas alternativas à carne animal, elas levam vantagem por ter menos colesterol e menor pegada ambiental”, afirma a chef.
Quem pode ajudar na aceitação dos produtos plant-based são os restaurantes, segundo Zuckerman. “Eles dão afeto aos pratos e fazem parte da tradição humana de compartilhar refeições”, diz.