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Como os ultraprocessados podem se beneficiar da reforma tributária

, especial para o Joio

Texto a ser apreciado pelo Senado garante alíquota reduzida para macarrão instantâneo, pão de forma, extrato de tomate, pizzas, salgadinhos e refeições congeladas. Além disso, categorias amplas de tributação dão margem a manobras

Quando chegarem ao fim as eleições e a onda de lacração, xingamentos e cadeiradas, o Senado terá de juntar os cacos e apreciar a reforma tributária. Caberá aos integrantes da Casa decidir se mantêm as reduções de impostos para ultraprocessados garantidas pelo governo Lula e pela Câmara dos Deputados. 

Até aqui, o texto prevê redução de imposto de 60% para refeições congeladas, macarrões instantâneos, extrato de tomate e pães de forma. Com exceção dos pães, esses ultraprocessados não estão explicitamente descritos no texto final, mas a classificação fiscal destes produtos os torna aptos à alíquota reduzida. A tramitação do Projeto de Lei Complementar 68/24, que regulamenta a reforma, ainda passará por votação no Senado e deve sofrer alterações.

A lista dos contemplados com isenção total ou parcial de imposto é, na maioria dos casos, acompanhada pelo código da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM). Todas as mercadorias vendidas no país precisam se enquadrar em um desses códigos, que determinam o valor da alíquota de vários impostos (futuramente extintos pelo imposto único criado pela Reforma Tributária). 

As massas alimentícias que terão imposto reduzido correspondem aos códigos 1902.20.00 e 1902.30.00 – que já estavam previstos no texto inicial enviado pelo Ministério da Fazenda para apreciação do Congresso. 

O Joio realizou uma busca em um banco de dados dos produtos e suas respectivas classificações e encontrou, nestes códigos, centenas de produtos ultraprocessados. Além de diversas marcas de macarrão instantâneo e biscoitos salgados e doces, há ultraprocessados congelados: pizzas, tortas, salgadinhos, pão de queijo, pão de alho, pão de batata, polenta e batata frita. 

“É um caso bem problemático. Esses produtos simplesmente não deveriam estar na lista da alíquota reduzida. É uma categoria de NCM inteira ruim, que contempla de salgadinho a miojo”, contesta Marcello Baird, coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde, ONG que defende políticas de saúde pública. 

Segundo estudo publicado no final de 2022, os ultraprocessados levam à morte anualmente, 57 mil brasileiros. O número corresponde a 10,5% do total de mortes precoces entre pessoas de 30 a 69 anos.

A proposta enviada pelo Ministério da Fazenda ao Congresso já tinha uma brecha importante: em vez de criar um imposto seletivo geral sobre ultraprocessados, o governo decidiu taxar apenas os refrigerantes. 

Os pães de forma e o extrato de tomate foram acrescentados pela Câmara dos Deputados, em julho, aos alimentos contemplados com a alíquota reduzida. Em ambos os casos, não há sequer a descrição do NCM ou qualquer restrição à presença de aditivos, como conservantes. E, portanto, independentemente da composição, podem ser beneficiados.

Os caminhos para beneficiar ultraprocessados com a reforma tributária

1. Alíquota isenta ou reduzida
A cesta básica definida pelo Ministério da Fazenda listou categorias genéricas de produtos, o que dá margem a que os ultraprocessados tenham alíquota reduzida, de 60%. Além disso, a margarina ficou na lista de produtos com imposto zerado.

2. Inclusão de novas categorias
A Câmara dos Deputados ampliou o número de categorias que podem passar a contar com imposto reduzido. Na lista estão pães de forma e extrato de tomate.

3. Dribles na Receita
É comum que empresas listem seus produtos dentro de categorias de tributação mais baixas. É difícil a Receita conseguir coibir todas as vezes em que essa prática é utilizada.

Possíveis brechas para isenção total

A reforma tributária também prevê isenção total de imposto para produtos da cesta básica. Um dos produtos mais contestados é a margarina – já falamos, também, sobre as polêmicas em torno da isenção para a carne. 

Entre os itens totalmente isentos, estão também as massas enquadradas no NCM 1902.1. Segundo a tabela do governo, o número corresponde a “massas alimentícias não cozidas, nem recheadas, nem preparadas de outro modo: que contenham ovos ou ‘outras’”. No banco de dados consultado pela reportagem, há ao menos uma marca de macarrão instantâneo classificada neste NCM.

Outro produto também preocupa as fontes consultadas pelo Joio: o pão comum. Listado na alíquota zero, sob o código 1905.90.90, o texto do projeto é categórico ao afirmar que só se enquadram os pães “contendo apenas farinha de cereais, fermento biológico, água e sal”. 

“Se você olhar para o NCM de pão, entram vários produtos processados. Então o governo colocou um parênteses para definir os ingredientes do pão para ver se evita que sejam isentos. É uma espécie de puxadinho na regra”, diz Baird. “A Receita Federal terá condições de verificar se o pão do fabricante X, que recebeu isenção, realmente só tem água, farinha e fermento? Não me parece exequível, então gera uma incerteza”, questiona. Encontramos mais de 3 mil pães de forma registrados sob o NCM do “pão comum”.

As velhas manobras tributárias

Cabe à Receita Federal avaliar a composição dos produtos e questionar o enquadramento de cada um deles na categoria correta de NCM. Caso o órgão conteste a classificação definida pela empresa, o processo vai para avaliação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que julga a procedência da reclassificação fiscal. 

Diante da dificuldade de fiscalização e das margens de interpretação para as classificações, as empresas se aproveitam das brechas legais para pagarem menos impostos. “Acaba que as empresas se beneficiam disso, elas classificam suas mercadorias onde convém, onde cabe um 0% de alíquota”, diz Priscilla Diniz, assessora de advocacy da ACT. 

Existem até escritórios de advocacia tributária voltados para criar “estratégias inovadoras para reduzir tributos no Brasil”. E eles se baseiam em “cases de sucesso”, em que grandes empresas conseguiram reclassificar seus produtos com malabarismos permitidos pela lei.

É o caso do McDonald’s. Anos atrás, a rede de fast food tirou do cardápio seus sorvetes. Os produtos permanecem lá, mas com outro rótulo: sobremesa láctea. A troca no NCM deu duas vantagens à empresa. 

A primeira é tributária: o Imposto sobre produtos industrializados (IPI) caiu de 3,25% para 0%. E a segunda é em relação aos ingredientes. Pela legislação brasileira, para ser considerado sorvete, o doce precisa ter um percentual alto de ingredientes lácteos. Quando classificado como “sobremesa láctea”,  o produto se caracteriza pela presença de “soro de leite, mesmo concentrado ou adicionado de açúcar ou de outros edulcorantes”. 

Ou seja, a empresa ganhou liberdade para reduzir a qualidade dos ingredientes, colocando mais aditivos, sem penalização da lei. A assessoria de imprensa do McDonald’s informou que não houve mudanças na composição dos sorvetes.

A Lacta usou de estratégia parecida para reduzir a alíquota do Sonho de Valsa. A empresa passou a vendê-lo como “wafer”, e não mais “bombom”. Para isso, precisaram trocar a embalagem – as pontas torcidas deram espaço às pontas seladas. E, assim, desceram o IPI para 0%. A Garoto gostou da ideia e fez o mesmo que o concorrente: mudou a embalagem do Serenata de Amor e passou a chamá-lo de wafer. 

A Nestlé tentou a mesma manobra com suas barras de cereal. A empresa alegava que seus produtos eram “preparações feitas com flocos de cereais”, enquanto a Receita Federal queria enquadrá-los como produtos de confeitaria. A estratégia era clara: se o Carf atendesse ao pedido da Nestlé, o imposto passaria de 5% para 0%. 

Em 2017, o Conselho recusou o argumento e manteve as barrinhas de cereais no NCM referente a “produtos de confeitaria”, mantendo a cobrança de tributos.

Segundo o advogado tributarista Sérgio Bezerra, o Brasil não é o único país com um sistema de classificação fiscal complexo, com casos de manobras tributárias. 

“A partir dessas divergências, que acontecem também em outros países, como Portugal, as empresas adequam seus produtos à menor tributação. E, como existe um lobby muito grande, elas vencem os julgamentos no Carf”, diz. “Criaram ainda uma narrativa de que os ‘erros’ acontecem porque nosso sistema é tão complexo. Com isso, venderam a ideia dessa Reforma Tributária. E, pelo andar da carruagem, ela será muito benéfica à indústria”, finaliza.

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