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Margarina: isenta de impostos e pronta para sentar à mesa

Incluída na alíquota zero da reforma tributária, ela segue reinando nas mesas brasileiras apesar de conter uma nova substância – a gordura interesterificada –, cuja falta de regulação não deixa claro seus efeitos para a saúde

A versão atual do Guia Alimentar para a População Brasileira completou uma década como diretriz oficial do Ministério da Saúde. O documento tem uma orientação que não deixa margem a dúvidas: evite ultraprocessados. Este ano, o Ministério da Fazenda editou a nova cesta básica nacional tomando como base o Guia. Mas há uma ruidosa exceção na lista de itens que têm direito a não pagar impostos: a margarina.

Assim como boa parte dos ultraprocessados, a margarina é mais barata do que alimentos processados, como a manteiga. O preço baixo foi o critério usado pela Fazenda para a inclusão do produto na alíquota zero, sob a justificativa de que se trata de um item consumido por famílias de baixa renda.

A decisão acende um dilema. Zerar o imposto da margarina é um problema para a saúde do consumidor e mantém benefícios fiscais à indústria de ultraprocessados. Por outro lado, tributar o produto criaria um impasse, já que há uma diferença expressiva no custo alimentar de escolher margarina ou manteiga para o pão nosso de cada dia.

Ao passear pelos corredores de três redes de supermercados em São Paulo, em setembro de 2024, esta reportagem identificou uma discrepância nos preços. As manteigas nacionais custam ao menos R$ 12,49 a cada 200 gramas. Mas, por R$ 4,39, é possível levar uma embalagem de 250 gramas de margarina para casa.

Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018) do IBGE, a principal fonte de calorias da população brasileira acima de dez anos de idade, no quesito gorduras, são os óleos vegetais, responsáveis por 7,7% do consumo alimentar pessoal. O que não significa que o consumo de manteiga e margarina seja baixo no Brasil. A margarina corresponde a 2,8% das calorias ingeridas e a manteiga, a 1%. 

Os dados apontam que as famílias mais ricas, com rendimento superior a R$ 14 mil, consumiram oito vezes mais manteiga do que aquelas com renda total de R$ 1,9 mil. De modo geral, a alimentação custa mais caro aos pobres. De acordo com a POF, as famílias de baixa renda gastam 22% do orçamento para se alimentar. Já aquelas com rendimentos superiores a 25 salários mínimos comprometem apenas 7,6% da renda com alimentação – embora consumam oito vezes mais manteiga.

Esse é um indicativo sobre quem o Ministério da Fazenda identifica como o público-alvo das margarinas: brasileiros em vulnerabilidade econômica. Só que o desamparo alimentar e nutricional evolui para um patamar de comprometimento da saúde, com obesidade, diabetes e outras doenças crônicas não transmissíveis, que sobrecarregam o SUS e, claro, impactam o orçamento público. Uma conta que não fecha.

“É claro que o excesso é ruim, se for passar o dia comendo só manteiga. A gente precisa comer gordura saturada, desde que não em excesso. Mas não temos qualquer tipo de recomendação de consumo seguro de ultraprocessados. E a margarina entra aí também”, afirma Ana Carolina Fernandes, uma das líderes do Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições (Nuppre) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 

A nova cesta básica, proposta pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) em março, prevê o fechamento de portas para ultraprocessados em espaços protegidos institucionalmente, como as escolas. No entanto, as exceções estabelecidas na cesta da reforma tributária – margarinas e fórmulas infantis – quebram o arco da construção de uma política focada na distribuição de alimentos saudáveis e adequados à toda a população.

A margarina é uma exceção já conhecida da alimentação escolar e, diante da alíquota zero, deve continuar. Há relatos de sua presença como recheio para o pão no lanche. A base é uma resolução de 2020 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que ainda permite a inclusão de margarina ou creme vegetal no cardápio das escolas, no máximo uma vez por semana. O produto aparece até no cardápio indígena e quilombola da Secretaria de Educação de Mato Grosso. Uma aposta alta de que a exposição regular a esse ultraprocessado não prejudicará a saúde das crianças e adolescentes.

Custo por quilo

Manteiga

R$ 62

margarina

R$ 17

Fonte: Coleta em supermercados de São Paulo (Setembro de 2024)

Que comam margarina!

Quem se aventura na busca por receitas na internet pode até nunca ter feito essa pergunta, mas com certeza já se deparou com ela: “Posso substituir a manteiga por margarina?”. O curioso é que a margarina foi criada com a missão de ser uma alternativa barata à manteiga, para alimentar tropas de soldados franceses no século 19. O químico Hippolyte Mège-Mouriès foi a mente por trás da invenção, em 1869, mas a produção da margarina era bem diferente do que se tornou a partir dos anos 1960.

No livro Nutricionismo, o pesquisador australiano Gyorgy Scrinis conta que o protótipo da margarina foi produzido usando sebo de vaca, sobra da produção de carne, misturado a leite desnatado. Era, portanto, uma invenção de origem animal. 

A mudança para a gordura vegetal veio em 1902, quando o cientista alemão Wilhelm Normann desenvolveu o processo de hidrogenação para solidificar óleos vegetais líquidos. A técnica começou a ser utilizada pelos fabricantes por volta de 1910. Mas só na segunda metade do século 20 é que o uso de gorduras animais foi eliminado pela indústria dos Estados Unidos.

Apesar de alterar a gordura-base da formulação, a indústria seguiu firme no propósito de imitar a manteiga. Aromatizantes e corantes foram motivo de embates legais entre fabricantes de manteigas e de margarinas. Para tentar distanciar um produto do outro aos olhos do consumidor, até 1960, havia leis que obrigavam que a margarina fosse cor-de-rosa.

Mas a indústria venceu a barreira dos corantes e do abismo nutricional, replicando a quantidade de nutrientes da manteiga a preços bem mais acessíveis às populações em vulnerabilidade econômica. Em um tempo em que ainda não se sabia o que a gordura trans industrial poderia causar, a margarina sentou à mesa dos pobres do mundo todo.

No Brasil, ela também ganhou mais e mais espaço no consumo familiar frente à manteiga. A primeira menção ao produto tem quase 50 anos, em dados do anuário de 1975 do IBGE. No Rio de Janeiro, consumia-se mais de três vezes mais margarina: 5,1 gramas por dia por habitante, frente a 1,6 grama de manteiga. Em São Paulo, eram 3,37 gramas contra 0,86. E, no Distrito Federal, o consumo diário era de 4,2 gramas de margarina e 1,6 grama de manteiga.


Depois da gordura trans, um novo mundo? 

O ano era 1996. Depois de uma cirurgia cardiovascular, meu avô voltou para casa com algumas recomendações médicas e muitas caixas de medicamentos. Impresso em um receituário estava o cardápio que deveríamos seguir para que ele tivesse uma plena recuperação longe de gorduras indesejadas que pudessem bloquear novamente suas artérias. Lá, nada escondida, estava a margarina, que deveria substituir a manteiga e o óleo sempre que necessário nas preparações.

Naquela época, a gordura trans ainda era presente na formulação das margarinas. O Brasil só começou a banir essas gorduras dos produtos alimentícios em 2021, a partir de uma resolução da Anvisa

O período de adequação da indústria durou até 2023, quase 30 anos depois daquele plano médico um pouco violento de recuperação cardiovascular. A violência está justamente no fato de que a margarina era um grande vetor de gorduras trans que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e mais pesquisas apontaram, pode aumentar o risco de complicações coronarianas e outras doenças crônicas – calcula-se que, no Brasil, 330 mil pessoas morreram em decorrência disso.

O estudo mais famoso sobre os efeitos nocivos dessas gorduras foi publicado no início dos anos 1990 pelos holandeses Ronald Mensink e Martijn Katan. Os dados mostraram que a gordura trans tem um efeito mais prejudicial sobre os níveis de colesterol no sangue do que as gorduras saturadas, presentes em alimentos de origem animal, como carnes e laticínios.

A manteiga é feita a partir do processamento simples do creme de leite, com a possibilidade de adição de sal. Apesar de alimentos de origem animal conterem gorduras saturadas e trans natural, a quantidade ingerida é, de modo geral, muito inferior às gorduras trans presentes nos ultraprocessados.

“Até a estrutura da molécula da gordura trans que é gerada por biohidrogenação, natural nos animais ruminantes, é diferente da gordura trans que é gerada pela hidrogenação industrial. Não há indícios de que o consumo somente de trans natural possa trazer malefícios à nossa saúde. E a quantidade que a gente vai comer de gordura trans de origem animal é muito menor do que de uma gordura trans industrial”, explica Ana Carolina Fernandes.

Soma-se a isso o fato de que o banimento da gordura trans não excluiu outros componentes industriais da formulação das margarinas. Sua composição atual gira em torno da gordura interesterificada, uma invenção da indústria alimentícia para substituir o processo de hidrogenação parcial dos óleos vegetais, que era a principal fonte de gordura trans. Conservantes, aromatizantes e acidulantes completam a lista de ingredientes.

“A gordura interesterificada é uma solução que a indústria encontrou para ter um tipo de lipídio de baixo custo e alta durabilidade. E que vai possibilitar manter as características sensoriais do produto, como a textura”, afirma Laís Amaral, coordenadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec).

Não há regulação que proíba o uso dessas gorduras na linha de produção da indústria alimentícia. Mas uma coisa é saber o efeito que elas causam na textura final do produto, outra bem diferente é gerar análises de seus efeitos para a saúde. Por ter uma utilização recente, não existem evidências de como a gordura interesterificada é processada pelo corpo humano e o que ela pode desencadear a longo prazo.

O que é hidrogenação?

As gorduras contêm ácidos graxos, compostos por carbono e hidrogênio. Esses ácidos podem ser saturados (sólidos e normalmente de origem animal) ou insaturados (líquidos, geralmente de origem vegetal).

A hidrogenação é um processo industrial para saturar os ácidos graxos insaturados por meio da adição de hidrogênio aos óleos vegetais. Isso transforma as características físicas do óleo, que passa do estado líquido para o sólido. 

É possível fazer a hidrogenação total ou parcial de óleos vegetais.

Os óleos parcialmente hidrogenados geram gordura trans industrial. Isso ocorre porque o hidrogênio se liga às moléculas de carbono durante o processo de catalisação a alta velocidade e temperatura, formando uma espécie de torção nas moléculas, que passam da forma cis para a forma trans. Essa modificação molecular torna a gordura moldável e mais estável para uso na indústria.

Os óleos totalmente hidrogenados se tornam muito sólidos, de forma que, sozinhos, não serviriam aos fabricantes de margarina por não permitirem chegar na textura cremosa e fácil de espalhar do produto. Não há formação de gordura trans na hidrogenação total.

E a interesterificação?

A interesterificação é feita a partir de uma mistura de óleos e gorduras, em que os ácidos graxos não sofreriam alterações em sua estrutura, sendo apenas redistribuídos entre as três posições que ocupam em uma molécula de triglicerídeos. O principal problema é que podem formar triglicerídeos incomuns na natureza e ainda não há análises sobre como essas novas ligações de ácidos graxos são recebidas e processadas pelo corpo humano.


Um estudo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sugere que toda cautela é pouco quando o assunto são as gorduras interesterificadas. Os pesquisadores investigaram os efeitos de diferentes gorduras modificadas sobre o peso corporal e as funções hepáticas de camundongos. 

Os animais foram divididos em grupos e alimentados por 75 dias com dieta contendo um tipo de gordura, sendo um dos grupos com uma gordura interesterificada comercial (IFG). Os camundongos alimentados com essa gordura apresentaram níveis de colesterol e glicose mais altos do que os grupos com outras dietas, além de sinais de estresse hepático. 

Ainda é preciso aguardar estudos clínicos em humanos, mas os resultados dessa pesquisa e similares feitas em outros países sugerem que a substituição de gorduras hidrogenadas por gorduras interesterificadas pode não ser uma solução tão simples para reduzir ou eliminar as gorduras prejudiciais à saúde dos produtos alimentícios.

“O que parece é que as gorduras interesterificadas podem ter algum mecanismo relacionado ao pâncreas e ao fígado, piorando alguns desfechos relacionados ao metabolismo de glicose. Talvez possa não fazer tão mal para quem não tem nenhuma questão, mas, para quem já tem uma síndrome metabólica ou obesidade, esse mecanismo pode agravar os efeitos”, pontua Ana Carolina.

Outro estudo, feito por pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), apontou alterações em camundongos que foram alimentados com gordura de palma interesterificada. Os animais apresentaram um aumento do pâncreas e do acúmulo de gordura no fígado em relação aos que foram alimentados com outras gorduras. A conclusão é de que a gordura de palma interesterificada altera os perfis inflamatório e de glicose. 

“Estudos pré-clínicos são importantes para dialogar e subsidiar estudos clínicos e estruturar políticas públicas. Passamos anos consumindo gordura trans, e os estudos pré-clínicos foram os primeiros a mostrar a associação com doenças cardiovasculares. Foram quase 20 anos para banir essa gordura das prateleiras. Agora estamos diante de uma gordura usada pela indústria que não possui nenhuma regularização”, avalia Julio Beltrame Daleprane, professor do Instituto de Nutrição da Uerj e um dos autores da pesquisa.

Dados divulgados pela Associação Brasileira de Produtores de Óleo de Palma (Abrapalma) relatam que o principal uso do óleo de palma é para fins alimentícios. “No Brasil o uso alimentício é de 97%, enquanto no mundo essa proporção estava em mais de 70% em 2013, e 76% em 2003”, diz a associação.

“Como é uma gordura que tem sido utilizada há pouco tempo em comparação com a gordura trans, que a gente já tinha evidências muito robustas de zero benefícios e todos os prejuízos cardiovasculares, a gente fica com um pé atrás”, diz Laís, do Idec. 

“Precisamos de mais estudos. Até pelo direito do consumidor. Se tem um ingrediente que se desconfia que traga prejuízos, que normalmente vão ser a médio e longo prazo, como foi a própria gordura trans, temos que pensar no princípio da precaução. Na dúvida, é melhor não estar naquele alimento.”

A margarina é uma exceção na alimentação escolar. Um ultraprocessado no meio dos alimentos saudáveis, e que deve seguir assim por muito tempo. Foto: Reprodução/Doriana

Indústria se beneficia de falhas na regulação

A regulação da margarina é feita pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), como se fosse um alimento de origem vegetal ou animal, e não uma formulação industrial. Isso impediu que ela fosse incluída em uma resolução da Anvisa sobre óleos e gorduras vegetais. 

Uma das coisas que a RDC481/2021 estabelece é a obrigatoriedade de indicar na embalagem quais são as espécies vegetais de origem (soja, palma, milho, etc.) e os processos de modificação empregados, o que não se vê nos rótulos das margarinas. Ao Joio, fontes ligadas à Sociedade Brasileira de Óleos e Gorduras (SBOG) relataram que as principais matérias-primas da gordura interesterificada no Brasil são soja e palma.

Segundo um relatório da consultoria Future Market Insights, o setor das gorduras interesterificadas deve sair de um patamar de valorização de US$ 4,4 bilhões em 2023 para quase US$ 7,5 bilhões em 2033. Ou seja, é uma indústria com um potencial de crescimento expressivo.

Combater o lobby do setor, que sustenta a margarina há décadas e, agora, a levou ao seleto grupo da isenção fiscal no Brasil, não é simples como espalhar o produto num pedaço de pão. E essa confusão, que coloca a margarina no lugar de ingrediente para preparações culinárias ao lado da manteiga e dos óleos vegetais, e não como ultraprocessado, só beneficia seus fabricantes. 

Sem que lhes seja apresentada uma alternativa viável, as famílias de baixa renda continuam dependentes da margarina e suscetíveis ao que vem com ela. Especialistas apontam que o oleogel, um material gelatinoso composto por 90% a 95% de óleo vegetal líquido junto a outros 5% a 10% de um agente estruturante, pode se tornar uma alternativa mais saudável às gorduras interesterificadas.

A indústria ainda reluta porque os oleogeis diminuiriam o tempo de prateleira dos ultraprocessados e não teriam sabor neutro, já que os agentes estruturantes, em geral, são as ceras vegetais. O fator mais promissor dessa tecnologia é que pode-se ter uma textura de gordura sólida sem prejudicar as propriedades nutricionais do óleo vegetal.

Enquanto a ciência busca alternativas, ela deixa também o alerta para o que a gordura interesterificada, junto aos demais compostos industriais da margarina, pode guardar para a saúde humana no médio prazo. E até que pesquisas em humanos comprovem o cenário que está se desenhando, vale usar a máxima: na dúvida, melhor evitar.

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