Enquanto os frigoríficos engordam seus lucros, os cofres públicos secam — e a população fica com os ossos

Nos fóruns internacionais, o Brasil ergue a voz por mais financiamento climático do Norte Global. Nada que se conteste. A contradição aparece quando, por aqui, o país destina bilhões à atividade que mais ameaça o futuro que diz proteger. É da pecuária a maior contribuição às emissões nacionais — superando, sozinha, transporte, energia, indústria e o restante da agricultura somados. Ainda assim, é essa cadeia a principal beneficiada pela reforma tributária.
Sancionado pela presidência da República em 16 de janeiro, o primeiro projeto de regulamentação do novo arranjo fiscal sobre o consumo vai isentar as carnes bovinas, suínas, ovina, caprina, de aves e peixes.
Colocar a categoria na cesta básica com alíquota zero pode passar a impressão de vantagem ao consumidor. Mas os ganhos mais vultosos ficam com corporações como a JBS — maior processadora de carne do mundo — acusada de violar direitos humanos, empurrar a pecuária sobre a Amazônia e emitir mais gases do que países inteiros.
Nada disso acontece por acaso. Se a agropecuária industrial chegou onde está, é porque a torneira do dinheiro público nunca se fechou. No caso da bovinocultura de corte, os subsídios, anistias e renúncias fiscais somaram, em média, R$ 12,3 bilhões entre 2008 e 2017 — valor equivalente a 79% da arrecadação média do setor no período (R$ 15,4 bilhões por ano, segundo o estudo Do Pasto ao Prato, do Instituto Escolhas. Na prática, para cada real arrecadado, quase 80 centavos retornaram em incentivos, uma taxa quase quatro vezes superior à média da economia. Em 2015 e 2016, essa conta foi ainda mais desproporcional: os benefícios superaram a própria arrecadação do setor.
E não é só isso. No Brasil, como em muitos outros países, a indústria da carne transfere à sociedade a maior parte dos custos que gera. Desmatamento, emissões de gases de efeito estufa, uso intensivo de água e impactos à saúde pública não entram no balanço das empresas. Essa fatura recai sobre o orçamento público e populações já vulneráveis. “Isso não deixa de ser um incentivo econômico, invisível, mas pesado”, ressalta Sergio Leitão, fundador e diretor-executivo do Instituto Escolhas.
Pressão sobre a inflação
Com tamanho respaldo do Estado, seria razoável esperar algum alívio para o consumidor. Mas não há qualquer certeza nesse sentido. Mesmo quando há repasse, o efeito pode se diluir em outros fatores de mercado — como transporte, margens e dinâmica concorrencial — reduzindo o impacto real no bolso da população.
Sem esquecer que as carnes continuam entre os principais vetores de pressão inflacionária, medida pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo). Entre janeiro de 2020 e julho de 2025, cortes populares como o acém e o músculo tiveram aumentos de 47% e 56%, respectivamente — variações maiores até do que as registradas por cortes mais nobres, como o contrafilé (40,2%) e a picanha (37,8%).
Em 2024, o preço da carne no Brasil disparou 20,8% — a maior alta desde 2019, quando havia subido 32,4% — segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mercado internacional, o aumento foi bem menor. A explicação está, em parte, na valorização de 28% do dólar, que tornou as exportações brasileiras mais atraentes e, por consequência, encareceu a carne no mercado interno.
“Apesar do volume de incentivos, a carne sempre custou caro. Não é agora que a picanha vai caber no prato de quem vive com um salário mínimo”, afirma, em entrevista ao Joio, o historiador Luiz Marques, professor livre-docente aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp).
Se o objetivo fosse reduzir desigualdades, ampliar o Bolsa Família teria um impacto doze vezes maior do que zerar impostos sobre a cesta básica. Isso porque o dinheiro da transferência de renda chega direto aos mais pobres, sem desvios. “Esse, sim, seria uma caminho para fazer a comida chegar a quem mais precisa”, explica o historiador. A desoneração da carne, ao contrário, gera um efeito perverso: a carne moída de quem vive com um salário mínimo acaba subsidiando o filé-mignon na mesa de famílias que nunca dependeram do Estado.

Benefícios fiscais
A proteína animal divide espaço com outros itens no balcão de regalias. Os benefícios fiscais classificados como gastos tributários devem chegar a R$ 821 bilhões em 2025, alcançando o patamar recorde de 7,2% do PIB (Produto Interno Bruto), segundo estimativas de pesquisadores da FGV (Fundação Getulio Vargas).
Para o Programa Bolsa Família, foram reservados R$ 158,6 bilhões na Lei Orçamentária Anual (LOA), em 2025, enquanto os Benefícios de Prestação Continuada (BPC) e a Renda Mensal Vitalícia (RMV) contarão com R$ 113,6 bilhões. Somados, não chegam a um terço do que o governo deixará de arrecadar com benefícios fiscais.
Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), zerar o Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) de 25% sobre alimentos resultaria em uma renúncia de cerca de R$ 70 bilhões na arrecadação pública. E o efeito desse benefício seria desigual: apenas R$ 4,5 bilhões (6,4%) chegariam aos 10% mais pobres, enquanto os 10% mais ricos abocanhariam R$ 13,4 bilhões (19,1%).
Mesmo parecendo justo isentar todos os alimentos de imposto, o efeito real pode ser o oposto do esperado. Isso porque quem tem mais dinheiro compra mais comida — em maior quantidade e de marcas mais caras. Com isso, acaba se beneficiando muito mais da isenção.
Fato é que se optou por desonerar uma gama de produtos que já carrega privilégios de sobra. Em 2024, a categoria “carnes” recebeu R$ 27,58 bilhões em benefícios fiscais, de acordo com o Painel de Benefícios Fiscais da Receita Federal. Foram 134.902 declarações feitas por 13.319 empresas na Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades (Dirbi).
O setor da carne ficou com a medalha de prata entre os mais beneficiados, atrás apenas de adubos e fertilizantes, que lideraram com R$ 29,76 bilhões no mesmo período. Só as exportações de carne bovina, ovina e caprina concentraram R$ 2,61 bilhões em renúncias tributárias, distribuídos entre 1.190 declarações de 220 empresas.
No topo desse ranking está a maior processadora de carne do mundo. Só em 2024, a JBS recebeu R$ 3,75 bilhões em benefícios fiscais, ficando atrás apenas da Moto Honda e da Samsung — ambas instaladas na Zona Franca de Manaus. Desse total, R$ 2,44 bilhões foram destinados à categoria “carnes” e outros R$ 931 milhões às exportações de carne bovina, ovina e caprina.
Em 9 de julho, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a aplicação de uma tarifa de 50% sobre importações brasileiras, incluindo a carne bovina. A medida entrou em vigor em 6 de agosto. Na ocasião, a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) estimou um prejuízo de até US$ 1 bilhão para o país, já que os EUA são o segundo maior destino da carne brasileira. O episódio evidencia como a isenção de impostos a um setor sujeito às oscilações do comércio internacional tende a reforçar a dependência externa, sem assegurar bases estruturais ou sustentáveis de crescimento.
Histórico de isenções
Somando os CNPJs da JBS (Friboi), da Seara, de seu braço comercial e da marca Agrovêneto — adquirida pela JBS em 2012 por R$ 128 milhões — o valor total de incentivos chega a R$ 6,3 bilhões, distribuídos em 88 benefícios distintos.
Segundo dados divulgados pela própria JBS, o grupo registrou lucro líquido de R$ 9,6 bilhões em 2024. Ou seja: o valor dos benefícios fiscais concedidos no mesmo ano alcança 66% desse resultado. A comparação não significa que os incentivos “geraram” dois terços do lucro, mas dimensiona o peso do subsídio na engrenagem financeira da multinacional. O montante também ultrapassa o que, em média, é o orçamento efetivamente executado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima: R$ 3,5 bilhões por ano, segundo levantamento do Inesc.
Em 2025, ano em que Belém do Pará sedia a COP30, o orçamento aprovado para a pasta e seus órgãos gira em torno de R$ 4,5 bilhões. Também abaixo do que a JBS recebeu em isenções.
O Joio questionou a companhia sobre as informações prestadas por ela mesma na Dirbi. Também pediu sua posição sobre eventuais limitações da ferramenta de transparência da Receita. Não houve resposta até o fechamento deste texto.
Renúncias fiscais da JBS S/A
• Em 2024, recebeu R$ 3,75 bilhões em benefícios fiscais
• Desse valor, R$ 2,44 bilhões foram destinados à categoria “carnes”
• Outros R$ 931 milhões às exportações de carne bovina, ovina e caprina.
Ao todo, os quatro principais CNPJs ligados à JBS (JBS S/A, Seara Alimentos Ltda, Seara Comércio de Alimentos Ltda e JBS Aves Ltda concentram:
• R$ 6,33 bilhões em renúncias tributárias
• 88 benefícios na plataforma da Receita Federal
Para comparação:
O valor equivale a 66% do lucro líquido da empresa em 2024 (R$ 9,6 bilhões) e quase o dobro do orçamento anual efetivamente executado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (R$ 3,5 bilhões, em média segundo o Inesc).
Não foi só o talento para os negócios que levou a multinacional ao topo do setor alimentício global. Como observa a pesquisadora Raisa Pina, autora do estudo Alimentando a desigualdade: os custos ocultos do monopólio industrial da carne, publicado em abril de 2024, a ascensão da JBS foi impulsionada por um casamento duradouro entre interesses públicos e privados — um processo que reforça a máxima de que, quando o assunto é carne, nada é por acaso.
A indústria já contava com incentivos nos anos 1990, mas foi na década seguinte que o apoio estatal ganhou corpo e proporção. Símbolo dessa virada foi a controversa criação das chamadas “campeãs nacionais”. A política consistia em oferecer crédito subsidiado a empresas consideradas estratégicas em certos segmentos, para que liderassem o avanço da indústria nacional. A JBS foi uma das principais beneficiárias, com empréstimos a juros muito abaixo do mercado — cerca de 8,5% ao ano, enquanto outras instituições cobravam entre 14% e 22%.
Com esse fôlego, a empresa comprou concorrentes dentro e fora do Brasil, como a Swift Argentina, em 2005. Durante a crise de 2008, aproveitou o câmbio favorável e a desvalorização de ativos para incorporar gigantes nos Estados Unidos.
Entre 2013 e 2023, a JBS fez cerca de 40 aquisições globais, ampliando em 303% sua receita líquida anual. Nos últimos 20 anos, a empresa obteve quase 25 bilhões de dólares de financiamentos a partir de um consórcio de instituições financeiras, incluindo o Banco da China, o Royal Bank of Canada e o próprio BNDES (que ainda detém 20,8% das ações, atrás apenas da família Batista). No entanto, o sucesso da companhia não se refletiu nos municípios onde mantém suas atividades.
Ao analisar 12 municípios com frigoríficos da JBS, Pina mostrou que o avanço da companhia não trouxe melhorias sociais. Em Lins (SP), sede do maior frigorífico do grupo, os cadastros no Bolsa Família cresceram 51%. Em Goiânia, o salto foi de 162%. O relatório não atribui esses aumentos diretamente à presença da JBS nem estabelece relação de causalidade entre a atuação da empresa e os indicadores sociais dos municípios — até porque não dispõe de dados para medir esse impacto. O que a pesquisa faz é evidenciar o contraste entre o crescimento da companhia e a persistência da pobreza nas regiões onde ela opera.
Para a autora do estudo, o paradoxo é evidente: “O Brasil tem a maior empresa de alimentos do mundo, mas segue vendo a fome aumentar. Esse modelo não pode ser naturalizado, sobretudo diante da presença do Estado na governança da empresa”.
Agora, a estreia da JBS na bolsa de Nova York marca um novo capítulo para a financeirização da cadeia da carne. E inaugura, também, um novo patamar de desigualdade. Hoje, 11% dos acionistas da empresa já são estrangeiros — e esse número tende a crescer. Segundo Pina, trata-se de um processo em que o Brasil exporta capital e concentra trabalho precarizado.

“Os investidores estrangeiros não têm qualquer compromisso com o desenvolvimento social e econômico do país. E os brasileiros, ao que tudo indica, também não demonstram interesse”, dispara. Em sua avaliação, o fenômeno não é novo: nos anos 1990, o objetivo era maximizar exportações; agora, é enviar dinheiro para fora, mantendo os custos — e os trabalhadores — aqui dentro.
De fato, mais da metade da força de trabalho da JBS ainda está no Brasil — mas as condições estão longe de ser favoráveis. Em 2019, os empregados da indústria da carne no Brasil sofreram quatro vezes mais acidentes de trabalho e tiveram dez vezes mais doenças profissionais do que o trabalhador brasileiro médio, como mostra investigação da Repórter Brasil. “A morte está em cada etapa da linha. É um trabalho que esgota o corpo e arruína o psicológico”, resume Raisa.
Para coroar o desastre, o setor é o que mais contribui para o desmatamento — e o Brasil, por sua vez, lidera o ranking mundial de destruição de florestas.
Quem paga por essa isenção?
Agora, os sulcos deixados pela indústria da carne se aprofundam com mais uma regalia. E há uma razão técnica que torna isso preocupante.
Como o imposto é cobrado da mesma forma para todos na hora da compra, quem ganha mais e consome mais acaba poupando mais. Já quem tem pouca renda — e gasta quase tudo que recebe em consumo — compromete uma fatia maior do que ganha com impostos. No fim, quanto maior a renda, maior o alívio tributário.
O IVA não resolve a desigualdade na origem, mas tenta, ao menos, impedir que ela se aprofunde nas prateleiras. Ao zerar a alíquota de carnes, queijos e peixes, o Congresso fez o contrário: abriu mão de receita para beneficiar um setor concentrado, empurrando a conta para o restante da população, sobretudo os que já gastam quase tudo com o básico.
Há uma afronta direta à Constituição Federal. De acordo com o artigo 145, parágrafo 1º, os tributos devem ser “graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”. Ignorar esse princípio transforma a promessa de justiça fiscal em letra morta.
Embora a nova legislação inclua mecanismos como o cashback para reduzir o impacto tributário sobre os mais pobres, a proliferação de regimes favorecidos — muitos deles longe de serem indispensáveis — mantém de pé a regressividade do sistema.
Nota-se ainda que o texto aprovado não impõe condicionantes. O setor da carne — líder em casos de trabalho análogo à escravidão — receberá isenção fiscal mesmo que continue desmatando, violando leis ambientais ou grilando terras.
Na ponta do lápis
A isenção da carne pode elevar a alíquota geral do Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) em 0,53 ponto percentual, de 26,5% para 27,03%, conforme estimativas da Receita Federal. Ao passo que, em 2024, a arrecadação total de tributos sobre o consumo no Brasil girou em torno de R$ 1,63 trilhão, o equivalente a 13,91% do PIB, segundo boletim do Tesouro.
Um aumento de 0,53 ponto percentual na alíquota geral representa aproximadamente R$ 32 bilhões adicionais a serem compensados por outros setores da economia. Esta é uma estimativa aproximada, porque o impacto real vai depender da base de incidência do novo sistema e do comportamento da economia após a reforma.
O que daria para fazer com R$ 32 bilhões?
• Reforçar a merenda escolar
Aumentar de R$ 0,69 para R$ 4,69 o valor por refeição no PNAE — alimentação de qualidade para 40 milhões de alunos da rede pública durante um ano.
• Construir milhares de UBSs
Equivale a mais de 16 mil Unidades Básicas de Saúde tipo I, ampliando a atenção primária e reforçando o SUS em todo o país.
• Garantir o piso da enfermagem
Valor suficiente para pagar o piso nacional da categoria por quase três anos, com base no orçamento federal de 2025.
• Multiplicar a agroecologia
Financiaria o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) mais de 3,5 vezes, com impacto direto na segurança alimentar e na conservação ambiental.
• Sustentar a Funai por 30 anos
Equivale a três décadas de orçamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
O princípio da neutralidade
Cálculos preliminares do Ministério da Fazenda mostram que, com as exceções previstas — como a inclusão da carne na cesta básica nacional — a alíquota do IVA pode chegar a 28%. Isso está acima do mecanismo que limita o IVA a 26,5%, também obrigando o governo a cortar isenções a fim de evitar que o sistema fique caro demais.
Isso significa que a isenção da carne vai ser compensada? Não exatamente. A norma não determina quais exceções serão revistas. Ou seja, outros bens e serviços podem acabar mais onerados para fechar a conta. Em bom português: o benefício concedido à carne é real, tem custo fiscal e será bancado por toda a sociedade.
Ainda assim, há quem relativize esse impacto. Na análise de Rodrigo Orair, diretor da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda (Sert/MF), a inclusão da carne com alíquota zero não compromete o equilíbrio do sistema. Segundo ele, a reforma mantém o nível geral de arrecadação. “Eventuais distorções poderão ser corrigidas na revisão quinquenal prevista em lei”, ressalta.
Já o diretor do Instituto Escolhas, Sergio Leitão, vê com desconfiança essa aposta no futuro. Para ele, uma vez concedido, o benefício tende a se cristalizar politicamente, mesmo que se prove injusto ou ineficaz: “O Brasil tem um histórico de subsídios que não voltam mais. A revisão é uma promessa frágil quando o lobby é forte.”
Em um documento de perguntas e respostas elaborado pela Assessoria Especial de Comunicação Social do Ministério da Fazenda, a pasta explica que a reforma tributária parte do princípio da neutralidade arrecadatória: a carga total de impostos sobre o consumo deve ser mantida. Por isso, qualquer redução nas alíquotas da CBS e do IBS para bens ou serviços específicos precisa ser compensada com um aumento na alíquota-padrão aplicada aos demais produtos.
Segundo nota técnica citada no material, os regimes favorecidos aprovados pela Câmara fizeram a alíquota-padrão, que originalmente ficaria entre 20,73% e 22,02%, subir de 4,72 a 4,98 pontos percentuais. Ainda que a tributação sobre o consumo caia em relação aos atuais 34,4%, o novo intervalo projetado, entre 25,45% e 27%, ficou aquém das expectativas iniciais. A Fazenda recomenda cautela ao definir quais itens terão tratamento diferenciado.
Frente aos interesses políticos, porém, essa pudica prudência costuma ser a primeira a deixar a sala. “A definição de quem é favorecido passa muito pela capacidade que certos setores têm de se mobilizar e influenciar as decisões”, explica Francisco Tavares, coordenador do Observatório Brasileiro do Sistema Tributário e professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário na Universidade Federal de Goiás (UFG).
Convenientemente, a bancada ruralista elevou a carne ao status de alimento “essencial” para justificar sua inclusão na lista de isenção. O foco no preço ofuscou a discussão sobre os impactos fiscais, distributivos e socioambientais da medida.
A própria campanha da Presidência reforçou esse discurso, criando a tempestade perfeita para a desoneração. De certo modo, essa convergência improvável demonstra como a neutralidade arrecadatória, ainda que concebida como terreno firme, pode se mostrar movediça diante das forças que incidem sobre o processo legislativo.
O custo para todos nós
Carne sem imposto tem custos escondidos para o país. Veja quem paga a conta e quais setores saem ganhando
• Fiscais:
a desoneração reduz a arrecadação porque retira uma fonte de receita significativa do sistema tributário. Como o IVA tem neutralidade arrecadatória, a renúncia em um setor pressiona a alíquota aplicada aos demais bens e serviços. Isso pode, sim, comprometer a capacidade do Estado de financiar saúde, educação e infraestrutura, a menos que outras fontes de receita sejam mobilizadas (o que não está garantido).
• Ambientais:
a medida tende a reforçar a expansão da pecuária, o principal vetor de desmatamento na Amazônia. Dados do MapBiomas indicam que a atividade responde por cerca de 70% da área desmatada na região. Além disso, a produção de carne bovina é uma das maiores emissoras de metano (CH4), gás com potencial de aquecimento 25 vezes superior ao dióxido de carbono (CO2).
• Sociais:
a desoneração favorece grandes corporações que dominam o processamento e a exportação de carne, aplicando desigualdades na cadeia produtiva. Pequenos pecuaristas seguem reféns das condições impostas pelos frigoríficos. Ao priorizar o barateamento das proteínas animais, o modelo ainda negligencia políticas de segurança alimentar e o fortalecimento de sistemas mais justos e diversificados.
Uma verdade indigesta
A obrigatoriedade da avaliação quinquenal dos benefícios fiscais, introduzida pela Emenda Constitucional n.º 132/2023 e regulamentada pelo PLP 68/2024, representa um marco na governança tributária brasileira. Disso, ninguém discorda. Ao instituir a revisão periódica desses incentivos, a reforma pretende trazer mais eficiência ao uso de recursos públicos, preenchendo uma lacuna histórica na medição dos impactos econômico, social e ambiental das renúncias fiscais. Mas, como sempre, o diabo mora nos detalhes.
Em nota publicada em seu site oficial, a Oxfam Brasil argumenta que, para garantir que o sistema tributário se mantenha justo e eficiente, a revisão periódica, a cada cinco anos, das alíquotas e das bases de cálculo dos tributos, “deve incluir indicadores multidimensionais de desigualdades, disponibilizados pelos diferentes órgãos públicos competentes para realizar o monitoramento e avaliação de políticas”. Até agora, no entanto, o desenho da avaliação não está definido, segundo Rodrigo Orair, diretor da Sert/MF.
Caberá ao governo mobilizar órgãos como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a Receita Federal para analisar se os benefícios “não estão funcionando bem” e encaminhar ao Congresso um projeto propondo ajustes capazes de devolver a alíquota ao patamar fixado. “Os congressistas irão aprovar? Não necessariamente. Eles podem até intensificar [os benefícios]”, afirma Orair.
Apesar disso, ele vê valor no processo como instrumento de pressão social: “Ao menos existe um mecanismo previsto: avalia, revê, propõe e debate com a sociedade.” Essa engenharia, acredita, representa um avanço em relação ao modelo atual, em que “exceção virou regra” e os impactos distributivos de políticas tributárias raramente passam por escrutínio público.
De fato, a avaliação quinquenal tenta sanar uma das principais disfunções do sistema tributário brasileiro: o acúmulo de isenções e regimes especiais que se perpetuam sem qualquer monitoramento. A proposta acerta ao prever revisões periódicas, mas carrega travas que o tempo não soltou. “Poderíamos ter ido além? Sim. Mas não adianta buscar a perfeição técnica se ela é politicamente inviável”, reconhece Orair.
A previsão normativa ainda esconde outra fragilidade. Em 2031, quando a revisão prevista pela reforma tributária chegar — após cinco anos de isenções, entre 2026 e 2030 —, o país só poderá olhar adiante. O período de teste servirá para decidir o que manter ou corrigir, mas os efeitos acumulados serão irreversíveis.
Se os benefícios fiscais não se traduzirem em retorno social ou no combate à fome, dificilmente será possível recuperar o tempo perdido. E vale lembrar: no início da tramitação, os cálculos técnicos para definir a alíquota ideal foram ignorados. Por que seria diferente na revisão? No Brasil, as decisões sobre o sistema tributário costumam seguir prioridades bem definidas — e quem as define conhece de perto o funcionamento de suas engrenagens.

• Quais forças garantiram o imposto zero para os frigoríficos? Descubra os interesses e os personagens que atuaram nos bastidores da reforma tributária.
O detentor da chave do cofre
É o caso do Conselho Superior do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CG-IBS), que dá as coordenadas e decide como repartir o novo bolo tributário entre União, estados e municípios. Instalado em 16 de maio deste ano, cumpriu o prazo limite da Lei Complementar 214/2025. Na ocasião, tomaram posse os membros estaduais titulares e suplentes, conforme lista publicada no Diário Oficial da União.
No Comitê Gestor, os entes federados não exercem diretamente suas competências tributárias. Essa tarefa cabe a representantes — secretários de Fazenda, Finanças e cargos equivalentes — que compõem o colegiado. À primeira vista, parece um arranjo técnico para garantir a gestão uniforme do IBS. Mas é justamente nessa arquitetura representativa que se insinuam as primeiras fissuras.
Em estruturas assim, a política se infiltra por natureza. Representantes tendem a formar blocos de afinidade, articular interesses regionais ou setoriais, além de disputar poder dentro do colegiado. O risco, portanto, é este comitê deixar de ser um espaço de decisões técnicas para se tornar um campo de batalha, onde cada ente federado defende a própria fatia do bolo — enquanto setores organizados, como o agronegócio, encontram solo fértil para expandir sua influência.
No caso da carne, o tema é ainda mais delicado. Primeiro, porque os estados do Centro-Oeste e Norte, onde a pecuária é dominante, terão peso decisivo nas deliberações. Segundo, porque o lobby do agronegócio tende a atuar para preservar o benefício na revisão quinquenal — mesmo que análises técnicas demonstrem a apropriação desproporcional dos ganhos pelos mais ricos e a intensificação dos danos ambientais.
Trocando em miúdos: o futuro da desoneração das proteínas animais não se decide na base da evidência. Ele é gestado nas decisões internas do Conselho, ganhando contornos definitivos no crivo do Congresso Nacional — instância que terá a palavra final sobre qualquer mudança.
Lembrando que a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), principal representação política das elites agrárias e agroindustriais no Congresso, atua de forma sistemática para converter interesses privados em diretrizes de Estado. Seu poder se expressa no controle de comissões estratégicas, na apresentação de emendas e na capacidade de travar pautas contrárias ao setor.
Nesse embate, quem mais sai prejudicado são as classes populares, em especial os povos originários e as comunidades tradicionais.
O Joio pediu à FPA que explicasse como avalia sua influência na formulação de políticas agrícolas, fiscais e ambientais. Também indagou qual seria o papel da frente no equilíbrio entre os interesses do agronegócio e o interesse público. Já o CG-IBS foi questionado sobre como pretende assegurar transparência, isonomia e foco no interesse público em suas deliberações. Tanto a assessoria da FPA quanto a do Conselho preferiram não enviar nota
O Lobby da Carne é um projeto da Fiquem Sabendo, em parceria com O Joio e O Trigo e com apoio da Proteção Animal Mundial.





