Publicação de número especial marca novo avanço simbólico da teoria cunhada no Brasil. Pesquisadores propõem plano de ação para conter o poder das corporações
Um caminho longo e complexo, mas necessário e urgente: esse é um dos resumos possíveis da série especial da revista Lancet sobre ultraprocessados, publicada hoje (18). Os pesquisadores responsáveis pelos três artigos que compõem a coleção propõem uma agenda completa de medidas aos governos nacionais e aos organismos multilaterais.
O segundo texto se concentra na construção de uma estratégica para “frear e reverter” o crescimento do consumo de ultraprocessados em nível global. Algo que nenhum país tem conseguido fazer – em alguns casos, o mais correto seria dizer que os governos não têm querido fazer.
“Até o momento, as políticas têm se concentrado em reduzir o consumo de alimentos com excesso de gorduras, açúcar e sal, muitos dos quais são ultraprocessados. No entanto, propomos que esses esforços sejam fortalecidos e expandidos para endereçar um conjunto mais amplo de fatores do sistema alimentar que influenciam a produção, o marketing e o consumo de ultraprocessados”, escrevem os autores.
O autor principal do artigo é Gyorgy Scrinis, professor da Escola de Agricultura, Alimentação e Ciências Ecossistêmicas da Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele é autor de Nutricionismo, livro originado da crítica dele ao reducionismo nutricional e que integra a coleção do Joio. Essa crítica também guia a redação do artigo, cobrando que os nutrientes críticos em excesso sejam levados em conta, mas de forma casada à observação sobre os ultraprocessados.
Na verdade, o texto chama atenção por ir bastante além do mundo específico dos ultraprocessados, cobrando mudanças nos sistemas alimentares, e, indo ainda mais longe, na própria estrutura do capitalismo e da produção de desigualdades. O raciocínio é simples, ainda que a agenda seja complexa: a construção do cenário que levou à expansão global dos ultraprocessados foi feita de forma estrutural, mexendo na maneira como estão organizados os modos de vida e a alimentação. Logo, a transição também precisa ser encarada de maneira estrutural.
“A Classificação NOVA foi desenvolvida porque não estávamos satisfeitos com a abordagem sobre o excesso de nutrientes”, disse Carlos Monteiro, professor emérito da Faculdade de Saúde Pública da USP, durante entrevista coletiva realizada esta semana em Londres. Ele é o autor principal do artigo que deu origem à NOVA, que divide os alimentos pelo grau e pelo propósito de processamento.
Durante a entrevista, muitos repórteres perguntaram sobre a existência de ultraprocessados menos piores, e se faz sentido agrupar em uma categoria tão ampla produtos que, no papel, são tão diferentes. “Os nutrientes críticos são apenas uma parte do problema. Esses nutrientes podem ser evitados ao trocar açúcar por adoçantes, gorduras por amidos modificados. É por isso que desenvolvemos um conceito mais amplo, o de ultraprocessados. É muito claro que a definição de ultraprocessados são formulações criadas para substituir os outros grupos, os alimentos de fato.”
Por isso, os pesquisadores presentes ao encontro sugeriram olhar para os padrões alimentares, de forma mais ampla, e não para produtos específicos.
Um caso emblemático
A série em si é uma novidade: um número especial de uma das revistas científicas mais conceituadas do mundo representa um fato político e uma etapa adicional na aceitação mundial da Classificação NOVA, cunhada em 2009 e 2010 por integrantes do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens-USP). Nos últimos anos, a produção científica sobre os danos associados a esses produtos se avolumou, bem como a divulgação de informações para a população em geral.
“A mudança na forma como as pessoas se alimentam é impulsionada por grandes corporações globais, que obtêm lucros extraordinários priorizando produtos ultraprocessados, apoiadas por fortes estratégias de marketing e lobby político que bloqueiam políticas públicas de promoção da alimentação adequada e saudável”, declarou Monteiro, em material divulgado previamente à imprensa.
E esse é um dos aspectos pelos quais a série vale a pena. Alguns tópicos podem soar repetidos para quem tem acompanhado os desdobramentos do assunto, mas, ainda assim, é importante que sejam enunciados numa coletânea que busca sistematizar o conhecimento a respeito. Um ganho expressivo, porém, vem da amplitude de ideias que permeia os três artigos: os autores tomaram em conta o cenário político, econômico e social que permitiu a expansão desses produtos e prejudicou as dietas em boa parte dos países do mundo.
“Esta série põe foco no ambiente alimentar e em intervenções de políticas alimentares sistêmicas, nas quais tanto a necessidade como o potencial de mudança são os maiores, especialmente para endereçar amplas desigualdades de saúde”, escrevem os autores do segundo artigo.
Eles propõem quatro dimensões para a atuação rumo ao desestímulo ao consumo de ultraprocessados:
- produtos
- ambientes alimentares
- fabricantes e corporações de fast-food
- corporações do varejo e cadeias de abastecimento
Muito além do rótulo
Os pesquisadores partem de uma premissa que enfrenta uma questão importante: a reformulação de produtos não apenas pode ser ineficaz, como pode ser contraprodutiva. Enfrentar o problema dos ultraprocessados “sem observar seu processo de produção (a degradação da matriz alimentar) é tecnicamente inviável, já que com frequência passa por substituir nutrientes preocupantes por outros ingredientes de ultraprocessados (por exemplo, trocar açúcar por adoçante ou gordura por amido modificado e emulsificantes)”.
É o que tem se dado nos países da América Latina que adotaram selos para o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas, mas sem fechar as portas para uma substituição fácil por adoçantes e amido modificado. Nessa hora, vale a pena lembrar um outro artigo científico, publicado em 2023, que mostrou que levar em conta a presença de aditivos cosméticos permitiria rotular praticamente todos os ultraprocessados.
“Propomos incluir ingredientes que caracterizam os ultraprocessados – como corantes, aromatizantes e adoçantes – nos rótulos frontais das embalagens, junto aos marcadores de excesso de gordura saturada, açúcar e sal. Essa medida evitaria substituições de ingredientes igualmente prejudiciais e permitiria uma regulação mais eficaz”, afirmou Barry Popkin, professor da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos.
Ultraprocessados reformulados, além de seguirem sendo um problema nutricional, mantêm as características que fazem deles algo nocivo, como a hiperpalatabilidade, que estimula o consumo excessivo, e a falta de ingredientes integrais.
“Melhorar as dietas globalmente exige políticas adaptadas à realidade de cada país e ao grau de penetração dos ultraprocessados nos hábitos alimentares”, declarou Marion Nestle, professora emérita da Universidade de Nova York e participante do segundo artigo da série. Ela é autora de Uma verdade indigesta, livro que sistematiza os conhecimentos existentes sobre conflito de interesses na pesquisa científica em alimentação e nutrição. “Embora as prioridades variem, é urgente agir em todos os lugares para regular os ultraprocessados, em conjunto com os esforços já existentes de redução de gordura, sal e açúcar.”
As medidas têm abrangências bastante variadas. Os pesquisadores estimulam a que mais países adotem alertas na parte frontal dos rótulos, ou promovam mudanças que lembram os maços de cigarros. Em paralelo, falam em leis e ofensivas mais amplas, como regular empresas, limitar o percentual de vendas de ultraprocessados em supermercados e adotar uma convenção global sobre sistemas alimentares.
Do desestímulo ao estímulo
Todos os artigos da série Lancet tecem uma comparação que até há poucos anos era tabu: cigarro e ultraprocessados. Uma das propostas é a criação de um acordo global de caráter obrigatório, nos moldes da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, impulsionada há duas décadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Ao mesmo tempo, o paralelo tem limites. O cigarro não faz parte da cesta diária de consumo de uma imensa parcela da população. Os ultraprocessados, sim. Eles justamente têm deslocado a ingestão de frutas, grãos, verduras e legumes. Por isso, desestimular o consumo de produtos nocivos não basta: é preciso criar uma agenda de promoção da alimentação adequada e saudável.
Nesse sentido, o Brasil é um dos destaques ao longo da série. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) desestimula a aquisição de ultraprocessados pelas prefeituras. Algumas cidades e o estado do Ceará criaram leis para vetar a presença desses produtos em escolas.
Mas falta um longo caminho a percorrer. Para os autores do segundo artigo da série, é preciso reverter a ênfase em commodities para exportação (como soja e milho) em direção à produção de alimentos locais e em pequena escala. Também é necessário estimular pequenos comércios, que hoje não conseguem competir com as grandes redes de supermercados e têm dificuldade em oferecer alimentos frescos.
Outra ideia à mesa é utilizar a legislação ambiental para minar o poder da indústria de ultraprocessados devido ao uso insustentável de recursos naturais, como a água, e à poluição, como no caso das embalagens plásticas.
Ao mesmo tempo, cozinhar não pode ser um fator agravante de desigualdades de gênero, de renda e de raça. “A preparação culinária deveria ser reimaginada como uma atividade comunitária e coletiva, através de modelos como cozinhas comunitárias e fornecimento compartilhado”, sugerem os autores. “Uma lacuna digna de nota se mantém na disponibilidade de refeições prontas saudáveis e que economizem tempo – uma área na qual a inovação e o apoio político são urgentes e necessários.”
Riscos à saúde
O primeiro artigo da série se concentra em sistematizar o conhecimento acumulado em termos de danos à saúde humana. Os autores, liderados por Carlos Monteiro, partem de três hipóteses que vão sendo comprovadas.
- Dieta baseada em ultraprocessados está deslocando dietas centradas em alimentos integrais e em preparações culinárias
- Dieta baseada em ultraprocessados resulta em deterioração da qualidade, especialmente em relação à prevenção de doenças crônicas
- Esse padrão aumenta o risco de doenças crônicas por meio de vários mecanismos
Os autores apontam que “a totalidade da evidência [científica] embasa a tese de que o deslocamento de padrões alimentares estabelecidos de longa data é um fator-chave para a escalada global da carta de doenças crônicas associadas à alimentação”. Nesse sentido, a série não traz uma grande novidade, já que outros estudos têm dado respaldo a essa afirmação.
Mas os autores também cruzaram dados inéditos da Euromonitor, que é uma consultoria de mercado. Os números mostram que o crescimento do consumo de ultraprocessados tem sido mais acelerado nos países de baixa renda – de novo, repetindo algo que se deu com o cigarro, que se deslocou das classes altas para as baixas e das nações ricas para as pobres. Entre 2007 e 2022, as vendas per capita avançaram 40% nos países de renda média-baixa, contra 20% nos países de renda média-alta. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde os ultraprocessados respondem pela maior parte da energia consumida diariamente, encontra-se uma quase-estagnação.
Como conter o poder
Os autores do terceiro artigo da série também reuniram dados inéditos sobre o acúmulo de poder da indústria de ultraprocessados, traçando caminhos para tentar reverter essa situação. O texto se concentra em provar que os fabricantes de ultraprocessados são o aspecto central do problema, e suas estratégias corporativas são a principal barreira para avançar na proteção da saúde e na promoção de sistemas alimentares saudáveis.
Um dos dados mais interessantes busca contrapor a ideia arraigada de que as corporações seriam capazes de solucionar os próprios problemas. Por um raciocínio simples: no arranjo capitalista atual, é preciso sempre construir lucros maiores, e os lucros serão tanto maiores quanto menores forem os custos.
“Entre 1962 e 2021, dos US$ 2,9 trilhões de dividendos pagos a acionistas por corporações que operam ao longo da produção de alimentos, do processamento, da fabricação, das redes de fast-food e dos varejistas, mais da metade (US$ 1,5 trilhão) foi distribuída por fabricantes de ultraprocessados. Tal lucratividade cria um looping que se reforça, incentivando o modelo de negócios dos ultraprocessados, em detrimento de alternativas, e gerando um excedente de recursos para uma expansão corporativa contínua.”
Os autores também buscaram mostrar como a teia de relações das corporações de ultraprocessados é global, e como tem avançado ao longo do tempo. Eles mapearam 207 grupos que atuam em nome das empresas do setor em todo o mundo. Neles, apenas oito corporações exercem uma grande influência: Nestlé (integrante de 137 grupos), Coca-Cola (114), Unilever (106), PepsiCo (105), Danone (91), Mars (74), Mondelez (72) e Ferrero (69).
Durante a entrevista coletiva em Londres, Philip Baker, professor da Escola de Medicina e Saúde da Universidade de Sidney, na Austrália, foi questionado sobre por que a ênfase em corporações, já que empresas menores também são fabricantes de ultraprocessados. “É verdade que empresas de médio e pequeno porte também produzem ultraprocessados. Mas isso nos faz perder o ponto de que as corporações é que têm os maiores orçamentos. Elas gastam bilhões promovendo produtos. Elas influenciam os governos.”

Além disso, a pesquisa mostra como essas mesmas corporações se envolvem em iniciativas de gestão da própria imagem em relação a temas sensíveis, como nutrição, direitos humanos, mudanças climáticas, biodiversidade e lixo plástico. Foram identificadas 45 iniciativas globais envolvendo também outros atores, como governos, organizações não governamentais e cientistas.
Nesse último aspecto, o trabalho compilou 3.800 artigos científicos entre 2008 e 2023 que declararam financiamento ou alguma conexão com os fabricantes de ultraprocessados. Essa produção envolveu, no total, 14 mil pessoas. De longe, o tema mais tratado (33% do total) foi a teoria do balanço energético ou a promoção de atividade física. O volume da produção de evidências nessa área jogou luzes sobre a indústria de refrigerantes pela tentativa de distorcer a percepção pública em relação aos danos causados por seus produtos.
Esses são, também com folga, os maiores responsáveis pela disponibilidade calórica a partir de ultraprocessados fora dos países do Norte. Na América Latina, refrigerantes e outras bebidas adoçadas representam a maior fatia do consumo.

Para os autores do terceiro artigo, os ultraprocessados são um problema de saúde global “negligenciado”. Eles propõem uma agenda conjunta para conter o poder das corporações do setor. É preciso realizar uma transição dentro dos sistemas alimentares, retirando subsídios dos ultraprocessados e minando as estruturas que dão força excessiva às grandes empresas. Mas, de novo, é necessário ir além, olhando para como a própria arquitetura do capitalismo tem favorecido esse desequilíbrio, com excesso de poder político e econômico.








