Subgrupo voltado a facilitar negócios pressiona por uma convergência que pode prejudicar consumidores na Argentina e no Uruguai
A rotulagem nutricional de alimentos entrou novamente na pauta do Mercosul, em um movimento que pode enfraquecer regras já aprovadas na Argentina e no Uruguai. As negociações, conduzidas no Grupo Mercado Comum (GMC) – instância responsável por temas econômicos –, sinalizam uma aproximação ao modelo brasileiro de alertas, considerado o mais permissivo entre os países do bloco.
Travada desde 2021, a disputa voltou à baila entre os dias 23 e 24 de abril, durante a Presidência Pro Tempore (PPT) da Argentina no bloco, assumida por Javier Milei, que já chegou a ameaçar abandonar o tratado coletivo.
Reunido em Buenos Aires, o GMC instruiu a Comissão de Alimentos (CA) do Subgrupo de Trabalho n. 3 (SGT n. 3) a prosseguir com as tratativas sobre a consonância dos rótulos.
Na ata do encontro, o órgão aponta a falta de “regulamentos harmonizados sobre o assunto”. Em seguida, justifica a nova investida como uma resposta “ao interesse constante de um setor produtivo altamente dinâmico no comércio regional”.
A palavra “saúde” não aparece no registro. Ocorre que o Mercado Comum do Sul foi criado com o propósito de integrar as economias dos parceiros regionais ao mercado internacional – e não a saúde pública – e continua fiel à sua vocação.
O processo que pode levar à mudança na rotulagem do bloco é lento e cheio de camadas. Primeiro, o tema foi discutido por grupos setoriais formados por representantes do Brasil e dos países platinos. Depois, seguiu para o SGT n. 3, instância que transforma debates técnicos em normas capazes de moldar o que circula nas prateleiras do Mercosul.
A palavra final é do GMC, formado por quatro membros titulares e quatro suplentes de cada país – escolhidos pelos respectivos governos entre representantes das Relações Exteriores, da Economia (ou equivalentes) e dos Bancos Centrais.
O poder do bloco
Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai respondem por 73% do território da América do Sul (12,98 milhões de km²); 64,8% da população sul-americana (284,9 milhões de habitantes) e 70,2% do PIB da região (US$ 2,97 trilhões).
Obs.: em agosto de 2024, a Bolívia aderiu oficialmente ao Mercosul. O país andino tem o prazo de quatro anos para a total incorporação do arcabouço normativo.
Viés comercial
O Brasil conduz o SGT n. 3 por meio da Coordenação-Geral de Assuntos Econômicos da América do Sul (Caint), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic). Faz sentido, já que o órgão está habituado a conduzir as costuras econômicas do bloco.
Esse perfil, entretanto, atravessa todo o fórum. Basta observar quem ocupa as cadeiras mais influentes. No primeiro eixo, estão os órgãos com maior peso: o próprio Mdic, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). São eles que puxam as pautas de redução de barreiras comerciais, facilitação do comércio e alinhamento regulatório.
O segundo eixo reúne instituições ligadas à infraestrutura e ao transporte: a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) e o Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF). Embora pareçam periféricos à discussão sobre rotulagem nutricional, esses órgãos integram o comitê por tratarem de normas de circulação, logística e segurança no transporte de mercadorias – temas considerados estratégicos para a competitividade e o comércio intra e extrabloco.
Por fim, entram os órgãos de perfil sanitário e técnico. São apenas dois: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). A eles cabe zelar pela fiscalização de itens essenciais, pela segurança do consumidor e pela qualidade dos produtos – valores que costumam perder espaço frente a outras agendas.
Diante da influência limitada, os Ministérios da Saúde dos Estados-parte – e também o do Chile – articularam um acordo que reafirma a rotulagem frontal como medida estratégica para a saúde pública. Entre os pontos consensuais está a compreensão de que o sistema amplia o acesso à informação e contribui para decisões de consumo mais conscientes.
Como uma regra do Mercosul ganha força de lei
O Subgrupo de Trabalho n. 3 (SGT n. 3) é o ponto de partida para a proposta de harmonização. A instância elabora propostas de regulamentos que depois sobem para o Grupo Mercado Comum (GMC), onde estão os representantes políticos dos quatro países. O fórum técnico, portanto, não cria normas obrigatórias. Apenas recomenda.
O GMC é o órgão executivo do Mercosul. Quando aprova um regulamento técnico, o texto se transforma em uma Resolução – e aí, sim, passa a ser obrigatória para os membros, conforme estabelece o artigo 42 do Protocolo de Ouro Preto (1994).
Para que a norma tenha efeito prático, cada país precisa incorporá-la ao próprio ordenamento jurídico. Só então ela sai do papel.
Sociedade ausente
O nutricionista Ignacio Porras, diretor-executivo da Fundación Sanar (Sociedad Argentina de Nutrición y Alimentos Reales), acompanha o caso, embora mais de longe do que de perto. A organização que dirige não tem acesso direto às discussões do subgrupo. E, desta vez, nem quis ter.
“Se a participação não for ativa e com possibilidade de diálogo, trata-se apenas de uma simulação de participação da sociedade civil – o que ajuda a construir a ideia de que se trata de um espaço plural e representativo, quando na realidade não é.”
Em novembro de 2019, a Fundación InterAmericana del Corazón (FIC) Argentina e o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) lançaram o relatório Promoção de Políticas de Rotulagem Nutricional Frontal de Alimentos no Brasil e na Argentina, resultado de uma parceria para comparar e fortalecer as políticas dos países.

O estudo ressalta que a Organização Mundial do Comércio (OMC) reconhece o direito dos Estados de legislar e tomar as medidas que considerarem necessárias para proteger a saúde e a vida de seus cidadãos, mesmo que essas regras possam representar algum tipo de barreira ao comércio internacional.
Ainda lembra que Brasil e Argentina já mantiveram regulações próprias fora do padrão regional – como o símbolo de transgênicos no Brasil e a advertência “sem TACC” (trigo, aveia, cevada e centeio) na Argentina. Ambos os precedentes demonstram que não há obrigação de seguir resoluções do bloco quando estão em jogo temas de saúde e segurança alimentar.
Ainda assim, o governo argentino tem sinalizado disposição para abrir mão de seu sistema gráfico e de seu perfil de nutrientes para aprofundar a interação entre os países-membros. A legislação do país vizinho foi aprovada durante o governo do peronista Alberto Fernández, opositor de Javier Milei. O texto adotou todas as recomendações da Organização Panamericana de Saúde (Opas): o formato de alerta, um perfil de nutrientes rigoroso para definir o que é “alto em”, um aviso para a presença de adoçantes e uma recomendação de que determinados produtos não sejam consumidos por crianças.
Para Luciana Castronuovo, diretora de projetos da FIC Argentina, o resultado pode ser desastroso. “Adotar padrões mais baixos significa dar um passo atrás na proteção dos direitos à saúde, à alimentação e à informação no nosso país.”
Embora a rotulagem cumpra também funções comerciais e de comunicação entre marcas e consumidores, sua razão de existir, no campo regulatório, é proteger e promover a saúde da população. Por isso, “a participação ativa do setor sanitário, somada à atuação do Estado e de organizações da sociedade civil, é essencial para que essas políticas mantenham seu propósito”.
A reportagem solicitou à Anvisa autorização para acompanhar a reunião ordinária do Sugrupo de Trabalho n. 3, realizada nos dias 22 e 24 de outubro, no Rio de Janeiro. O pedido não foi respondido.
Segundo a equipe técnica do Idec, que participa das deliberações na figura da coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável, Laís Amaral, não há um protocolo formal que permita o acompanhamento por interessados externos. A presença de observadores depende de convite direto das delegações nacionais.
Ao consultar o site do Mercosul, o Joio encontrou inicialmente vazia a seção onde deveriam constar os arquivos de ata. O documento foi disponibilizado com várias semanas de atraso, sem trazer informações substantivas sobre o conteúdo das discussões.
Essa teria sido a reunião na qual o GMC instruiu a Comissão de Alimentos a elaborar o regulamento técnico sobre rotulagem nutricional frontal, conforme citado na sessão remota de 26 e 29 de agosto.
“O resultado das discussões fica restrito ao que depois se reporta na ata da reunião, que em geral é um resumo”, atesta o assessor regional de Nutrição e Atividade Física da Opas, Fabio Gomes. Há reuniões fechadas e outras abertas a convidados. Cada país define quem pode participar como observador. Em alguns casos, nem as autoridades de saúde têm voz ativa no processo.
Segundo Elisa Mendonça, diretora-executiva da Comunidade de Prática América Latina e Caribe Nutrição e Saúde (Colansa), o hub de Rotulagem da rede tem articulado reuniões com organizações como Idec, Organización Multidisciplinaria para la Integración Social (Omis), do Uruguai, e FIC Argentina para discutir como reagir à proposta de nivelamento.
Uma das estratégias foi a elaboração de um posicionamento, publicado em 16 de dezembro. O texto defende a suspensão das negociações caso o Mercosul não adote o padrão mais protetivo. Nesse caso, caberia a cada país fortalecer suas próprias normas e preservar políticas já em vigor.
As organizações assinantes dizem estar prontas para contribuir tecnicamente e pedem que os governos coloquem saúde pública, evidências independentes, transparência e participação social acima dos interesses comerciais.
Também está em construção um fórum regional, previsto para o primeiro semestre de 2026, com o objetivo de envolver órgãos de governo e estimular uma discussão pública sobre o tema.
“O desafio é manter a rotulagem firme como estratégia de saúde pública, mesmo em um ambiente pouco disposto a apoiá-la”, afirma Elisa. Ela relata que a Anvisa não sinaliza qualquer disposição para rever o modelo da lupa. “A única brecha possível seria revisar o perfil de nutrientes, o que seria algum avanço. Mas, se o Brasil mantém a lupa, os outros acabam perdendo o octógono. O saldo é negativo.”
Perfil conciliador
A Anvisa é o único órgão de saúde do governo brasileiro dentro da delegação no SGT n. 3. Ela participa por meio da Gerência de Padrões e Regulação de Alimentos da Gerência-Geral de Alimentos (Gepar/Ggali).
A assessoria da reguladora federal descartou a possibilidade de entrevista por vídeo com Rodrigo Martins Vargas, assessor da Gepar, “devido à impossibilidade da fonte”. Após um mês de tentativas, o órgão respondeu por escrito às perguntas da reportagem.
Em nota, citou sua “experiência acumulada” para justificar a proposição de “uma série de elementos” para o aprimoramento do regulamento sobre rotulagem nutricional no Mercosul, citando os “requisitos de legibilidade da tabela nutricional” como único exemplo.
O comentário se refere a aspectos como tamanho mínimo da fonte, contraste entre letras e fundo, espaçamento entre linhas e a posição da tabela nas embalagens, medidas destinadas a facilitar a leitura e a compreensão das informações.
O problema é que a Anvisa ainda não entregou uma avaliação sobre o impacto do modelo de lupas desde que ele foi adotado. A agência alega que os prazos de adequação previstos na norma impedem um monitoramento mais robusto. Também afirma que a equipe está sobrecarregada com outras ações da Agenda Regulatória 2024–2025.
Sem dados, não há como atestar a eficácia do sistema brasileiro. Soma-se a isso o fato de o Brasil ter sido um dos últimos países do continente a implementar a rotulagem frontal, o que torna ainda mais frágil sua recomendação para os demais.
Manobras perigosas
Entenda como a indústria de alimentos se aproveita das brechas na lei brasileira para driblar a regulação
Muitos ultraprocessados não recebem a lupa de “alto em”. Um exemplo é o macarrão instantâneo, que sozinho concentra quase três quartos (74%) do limite diário de sódio.
O motivo está no critério adotado pela Anvisa. Os cálculos consideram o alimento pronto para consumo, do jeito que o fabricante indica na embalagem. Quando o produto precisa ser diluído ou cozido, a adição de água diminui a concentração de nutrientes críticos.
O problema é que a maioria das pessoas mistura o tempero direto na massa. Como esse modo de preparo não entra na conta, o item parece menos nocivo do que realmente é – e deixa o consumidor sem o alerta que deveria receber.
Na resposta enviada ao Joio, a agência evita detalhar como administra a pressão do setor regulado. Afirma que o protocolo é o mesmo “independente de quem seja o interessado no tema”. O mérito técnico seria o principal critério considerando, sem importar as táticas de influência.
Permanece indefinido se a agência reconhece e de que modo corrige a assimetria de poder entre um setor com orçamento de lobby, acesso privilegiado e capacidade de litigar – e uma sociedade civil rarefeita, com recursos limitados e participação intermitente.
O órgão diz que busca aprimorar continuamente seus processos de trabalho. Como exemplo, cita a realização de diálogos setoriais virtuais e públicos para discutir temas regulatórios, que, segundo ele próprio, ampliam a participação dos interessados. Nos quatro encontros realizados entre setembro e outubro de 2025, a agência registrou a presença de quatro mil pessoas.
Destacam ainda que “uma única contribuição, tecnicamente coerente, pautada em dados e evidências científicas, é capaz de direcionar uma decisão, ainda que muitas outras contribuições sejam de opinião”. Na visão da agência, o que importa não é quantas pessoas participam, mas a “qualificação das contribuições”.
A própria Anvisa, contudo, já usou o argumento oposto. Durante as Consultas Públicas (CP) n. 707 e 708/2019, também sobre rotulagem de alimentos, fez questão de divulgar que recebeu 23 mil manifestações – 74% de consumidores e 19% de profissionais de saúde. À época, esses números foram divulgados para demonstrar apoio social à medida.
O que é o Mercosul
Criado em 1991 pelo Tratado de Assunção, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) é um bloco econômico que busca integrar os países da América do Sul, promovendo a “livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos”.
Os membros plenos são Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela (atualmente suspensa). O bloco também mantém membros associados – entre eles Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname – que participam de acordos comerciais, mas sem direito a voto nas decisões.
Contexto brasileiro
A rotulagem nutricional frontal passou a valer no país após oito anos de idas e vindas na regulação. A Anvisa aprovou as novas regras em outubro de 2020, mas elas só começaram a valer dois anos depois. Além disso, o prazo para a troca das embalagens já produzidas foi prorrogado até outubro de 2024, estendendo a adaptação da indústria. O último degrau da implementação é o das embalagens retornáveis, que tiveram até outubro deste ano para estampar o selo “alto em”.
O processo foi marcado por disputas e concessões, que acabaram diluindo a proposta original. A primeira controvérsia incluiu o próprio símbolo escolhido para representar o alerta. A lupa foi inspirada no modelo canadense, um sistema sobre o qual não havia um bom nível de evidências científicas, nem comprovação prática, já que o país do Norte ainda estava no princípio da implementação.
No Brasil, ela passou a indicar excesso de três nutrientes críticos – açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio – por meio de um único ícone. Ou seja, tanto faz se o produto tem um, dois ou três em excesso: o selo é sempre o mesmo.
A comunicação visual também é um aspecto criticado. O ícone é pequeno em relação ao rótulo, o que compromete a legibilidade. Pesquisadores e profissionais de saúde no Canadá já criticaram o formato. O principal argumento é o de que exige leitura e interpretação, em vez de comunicar o alerta de forma imediata.
Outro problema está nos pontos de corte – os limites que definem o que é ou não considerado prejudicial. Eles foram estabelecidos em níveis altos, o que faz a maior parte dos industrializados aparecerem nas gôndolas sem selo.
Vale lembrar que a Anvisa descartou o uso de octógonos sob a alegação de que poderiam causar “medo” no consumidor, embora estudos usados pela própria agência não sustentem essa interpretação.
Um documento obtido por Joio e The Intercept Brasil também mostra como corporações como Nestlé, Danone, Bauducco e PepsiCo atuam para enfraquecer e desfigurar políticas públicas. A norma brasileira de rotulagem é mais um capítulo dessa história.
Por que isso importa?
Entre novembro de 2020 e novembro de 2024, o Brasil colocou no mercado 39 mil novos alimentos e bebidas embalados. Desses, 62% são classificados como ultraprocessados, enquanto apenas 18,4% se enquadram como in natura ou minimamente processados.
Os dados constam do primeiro relatório do projeto Monitoramento da Rotulagem de Alimentos no Brasil, conduzido pelo Ministério da Saúde em parceria com a Anvisa, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.
Experiência pregressa
Inspirada no modelo chileno (2016), replicado em quase toda a América Latina, a Lei de Promoção da Alimentação Saudável da Argentina é considerada a mais avançada do Mercosul.
No mês passado, instituições de âmbito regional da Argentina, do Brasil e do Uruguai divulgaram um posicionamento que aponta o sistema argentino como exemplo a ser seguido.
A indústria reagiu. A Coordinadora de las Industrias de Productos Alimenticios (Copal), influenciada por gigantes como Coca-Cola e Arcor, atuou contra a Ley de etiquetado frontal do início ao fim. À época, chegou a enviar ao então presidente da República uma versão alterada do projeto, na expectativa de que ele repassasse ao parlamento as mudanças desejadas pelo setor.
Daniel Funes de Rioja, presidente da Copal e também da União Industrial Argentina (UIA), não escondeu sua irritação com a proposta: “Da forma como está redigido, o projeto atenta contra o desenvolvimento e a produtividade do setor.” A Copal temia que a nova lei criasse barreiras às exportações de alimentos e defendia que o texto fosse “harmonizado” com as autoridades do Mercosul.
Entre as 14,5 mil empresas representadas pela Copal, apenas 1,2 mil exportam. Segundo a entidade, o dado evidencia a necessidade de reduzir barreiras logísticas, responsáveis por elevar os custos em 15% a 30%.
A Cámara de Comercio de Estados Unidos en Argentina (AmCham Argentina), por sua vez, afirma apoiar a promoção de estilos de vida saudáveis e a melhora da educação e da comunicação sobre os alimentos. Ao mesmo tempo, também advertiu que a lei criaria “obstáculos” ao comércio e à produção, impondo um modelo “punitivo, confuso, parcial e injusto”.
A entidade alegou que “92% dos alimentos vendidos na Argentina seriam discriminados de forma negativa, sem levar em conta atributos positivos, como fibras e outras propriedades destacadas nas atuais guias alimentares”.
De fato, toda informação nutricional molda, em alguma medida, a percepção do consumidor sobre um alimento. Pesquisa do Ministerio de Salud de la Nación mostra que nove em cada dez pessoas consideram que os selos de advertência e as legendas de precaução ajudam a tomar decisões mais informadas.
Dois levantamentos, da Unicef e da FIC Argentina, também registraram alta aceitação: entre 70% e 72% dos entrevistados disseram estar “muito de acordo” com a presença dos alertas na parte frontal das embalagens.
Em dezembro de 2024, a Administración Nacional de Medicamentos, Alimentos y Tecnología Médica (Anmat) alterou o manual de aplicação da lei. As mudanças reduziram a proteção à publicidade infantil, limitaram frases complementares, abriram exceções para produtos com edulcorantes e alteraram prazos de adequação.

Esse movimento prévio alimenta a percepção, compartilhada por fontes que acompanham o SGT n. 3, de que a harmonização caminha para ter as lupas brasileiras como referência. “Este governo parece mais permeável às demandas da indústria, cenário que se complica quando a gestão enxerga a presença do Estado como um problema”, interpreta Porras.
Em reação a esse processo, organizações da sociedade civil e associações médicas, acadêmicas e profissionais de saúde uniram-se em defesa da lei. Em novembro de 2024, mais de 700 pessoas, incluindo médicos, cozinheiros, jornalistas e nutricionistas acompanharam essa reivindicação por meio de suas assinaturas.
Uma política em aberto
No Paraguai, o debate sobre rotulagem frontal começou em 2019, a partir de um projeto de lei que listava parâmetros técnicos, mas não deixava claro qual seria o modelo gráfico adotado. Embora o texto usasse octógonos como exemplo, isso não configurava uma decisão expressa.
Dois anos depois, o Instituto Nacional de Alimentación y Nutrición (Inan) e o Ministerio de Salud Publica y Bienestar Social realizaram uma pesquisa com 841 consumidores para comparar o octógono e a lupa. Uma maioria de 71% preferiu a primeira opção.

Apesar disso, a Lei n. 7.092, publicada em 1º de junho de 2023, determinou a lupa como símbolo de advertência. E aqui aparece uma nova fragilidade: o desenho brasileiro é citado como referência – não há obrigação de adotá-lo. Sem regulamento, a lei nunca saiu do papel.
Cautela celeste
O Uruguai desponta como uma possível força de resistência. A coordenadora do Programa Nacional de Nutrição do Ministério da Saúde Pública, Ximena Moratorio, afirma que “qualquer mudança na norma uruguaia deve significar um avanço na proteção da saúde pública e se apoiar em evidências científicas sólidas e livres de conflitos de interesse”.
Ela conta que o Ministério da Saúde Pública (MSP) do Uruguai participa ativamente das negociações como parte da delegação oficial. Diz também que o país marca presença em todas as reuniões da Comissão de Alimentos.
Desde o início do ano, com a posse do presidente Yamandú Orsi, eleito pelo Movimento de Participação Popular (MPP) – grupo fundado pelo ex-presidente José “Pepe” Mujica –, o governo conduz uma avaliação interna sobre o marco legal da rotulagem nutricional frontal e, dentro desse contexto, sobre a posição uruguaia no processo de harmonização do Mercosul. Segundo ela, a revisão busca atualizar a política à luz de novas evidências científicas e das lições aprendidas desde a entrada em vigor da norma, em fevereiro de 2021.
A preocupação, explica, é que a formulação das regras no Mercosul avance em um momento de transição. “Teria sido mais oportuno iniciar a discussão após a conclusão do processo de avaliação interna e já com uma posição previamente acordada. Estão sendo feitos todos os esforços possíveis para acompanhar o ritmo do bloco, mas, na prática, o tema exige uma análise detalhada e cuidadosa, considerando as possíveis implicações de qualquer posição adotada.”
A fala ganha peso diante do histórico recente. O Uruguai vinha de quatro anos sob a administração de Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, período marcado pela forte influência da indústria sobre decisões sanitárias. Foi nesse contexto que, em 2019, teve início a primeira tentativa de criar um Regulamento Técnico do Mercosul (RTM) sobre rotulagem, pouco depois de o país aprovar sua norma nacional.
Pioneiro no bloco, o Uruguai passou a enfrentar questionamentos judiciais, sobretudo por parte de importadores, que chegaram a pedir a anulação do Decreto 272/2018. O recurso foi rejeitado pelo Tribunal de Contencioso Administrativo.
Embora mantenha selos em formato de octógonos, a gestão anterior afrouxou duas vezes os limites de nutrientes críticos, afastando-se das recomendações da Opas.
Para Ximena, a tendência é que se repitam tentativas de influenciar os rumos da discussão. “Trata-se de uma política de saúde pública, cujo objetivo é alertar os consumidores sobre o excesso de nutrientes associados a doenças crônicas. Os parâmetros precisam se basear em evidências. Caso contrário, esse objetivo não será alcançado”, ressalta.
Ela destaca ainda que o atual governo já sinalizou compromisso com o princípio da não regressão em saúde. Um exemplo foi a política de controle do tabaco: medidas flexibilizadas pela gestão anterior foram revogadas por Orsi.
Cabe ressaltar que o princípio da progressividade e não regressão aparece na própria Resolução n. 36/19, do GMC. O texto reconhece a vulnerabilidade estrutural dos consumidores em relação ao mercado. Também determina que nenhum país pode retroceder em níveis de proteção já alcançados. Organizações da sociedade civil e pesquisadores esperam que essa regra sirva como uma trava de segurança nas negociações.
O futuro da rotulagem frontal no bloco regional ainda é incerto. Se houver consenso nas próximas reuniões da Comissão de Alimentos ou do SGT n. 3, o texto segue para consulta pública por 60 dias e, depois, para o GMC, que dá a palavra final. Caso não haja acordo, o tema sai da pauta – uma possibilidade que, diante da falta de consenso nas evidências, hoje é vista como o melhor desfecho.
“Quando se mexe no desenho dos selos, não se altera só a estética, mas a forma como as pessoas leem o risco. Mesmo pequenos ajustes podem enfraquecer a advertência e reduzir seu efeito na hora da escolha”, elucida Fabio Gomes, da Opas.
No dia 3 de novembro, a Diretoria Colegiada da Anvisa publicou no Diário Oficial da União as Consultas Públicas n. 1.357 e 1.358, que colocam em debate as novas regras de rotulagem geral e rotulagem nutricional. O prazo de contribuição é de 120 dias: começou em 10 de novembro e vai até 9 de março de 2026. Até lá, qualquer pessoa ou instituição pode enviar comentários e sugestões sobre as propostas, mas não há garantia de que serão efetivamente refletidas na norma final.
Como cada país chega à mesa do Mercosul
A região avança em ritmos distintos e chega às negociações com vulnerabilidades que podem definir o resultado





