Como a indústria de alimentos ultraprocessados utiliza a pesquisa científica para minar políticas públicas, desviar o foco e promover hábitos de consumo
“Estávamos iludidos de que se poderia chegar a uma boa solução”, diz Simón Barquera. Algumas semanas antes, havíamos visto o nome dele associado ao Comitê Científico da Choices International Foundation, uma organização criada pela indústria de alimentos para evitar a adoção de rótulos com alertas sobre (altos) teores de sal, gordura e açúcar.
E ficamos surpresos: Simón, um dos diretores do Instituto Nacional de Saúde Pública do México, é um dos grandes nomes latino-americanos na área de obesidade e doenças crônicas, e editor associado da Public Health Nutrition, uma publicação de alta reputação na área de saúde. É, além disso, um dos principais porta-vozes dos grupos acadêmicos que pedem a adoção de medidas fortes para conter os efeitos das grandes empresas em nossas vidas.
Em fevereiro, o New York Times havia revelado que ele é alvo de espionagem no telefone e no meio digital justamente em meio a debates sobre políticas públicas nessa área.
“Como se pode imaginar, não houve acordo em nada. A indústria não apoiou nossas propostas de rotulagem, não apoiou nossas propostas de publicidade, não apoiou nossa proposta de tirar a comida tranqueira das escolas”, ele conta.
Na virada da década, o México estava preparando uma agenda regulatória forte na área de alimentação em resposta à entrada no seleto grupo de países com maiores índices de obesidade do planeta. Os esforços da indústria para evitar o avanço dessas propostas fazem com que Simón não tenha mais dúvida: não é possível sentar-se à mesa quando há interesses tão conflitantes. De um lado, as grandes empresas buscam o aumento incessante do lucro. De outro, os índices de obesidade e de doenças crônicas não param de crescer.
Por aqui, o sinal amarelo acendeu para valer na virada do século. A Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-03 do IBGE mostrou que 40,6% dos brasileiros apresentavam sobrepeso – desses, 11,1% estavam obesos, quase o triplo do número de pessoas com déficit de peso. Mas o grosso das políticas públicas seguia direcionado ao combate à miséria, tanto que o principal programa do governo eleito em 2002 se chamava Fome Zero.
Veio então a pesquisa de 2008-09 e a notícia de que 34,8% das crianças de 5 a 9 anos tinham sobrepeso – 16,6% de obesidade, quatro vezes mais que o índice de déficit de peso. Entre os adultos, o sobrepeso já atingia 49%, mais de oito pontos de crescimento em seis anos.
“A gente antigamente olhava o sistema alimentar muito induzido pelo diálogo com a indústria”, diz Patricia Jaime, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP. Quando ela chegou ao Ministério da Saúde como coordenadora geral de Alimentação e Nutrição, em 2011, a conversa já havia mudado de rumo. “Os determinantes sociais que nós costumávamos usar já não davam conta de explicar boa parte do problema.”
A epidemia de obesidade a nível global fez saltar aos olhos as contradições entre o financiamento privado da ciência e o exercício científico da dúvida, da crítica, da reflexão. Até há pouco tempo as indústrias de alimentos eram vistas como as responsáveis por matar a nossa fome. Então, tinham todo o direito de se sentar à mesa para discutir como chegaríamos a isso. Mas, nas últimas décadas, ficou difícil ignorar o papel que esses produtos todos desempenham no sobrepeso. É aí que entra a ciência: está muito claro que estudos foram manipulados para ocultar evidências ou desviar o foco.
O debate é recente no mundo todo, e ainda mais recente no Brasil. Se hoje Simón Barquera não hesita em marcar posição, sete ou oito anos atrás ele via a questão de maneira diferente. “No México, a indústria está envolvida em todas as tomadas de decisão sobre prevenção de obesidade. Então, é difícil aprovar qualquer coisa. Eles têm voz e voto.”
Os motivos para uma empresa patrocinar uma pesquisa ou um evento na área de saúde se condensam em quatro vertentes: influenciar políticas públicas, profissionais de saúde, hábitos de consumo e imagem pública. Acima de todas elas está o desvio de foco. É apontar o dedo para o outro. Às vezes, um outro segmento industrial. No mais das vezes, uma outra causa para a obesidade. Há um sem-fim de pesquisas apontando que a explosão do problema é culpa da preguiça, da genética, do descontrole individual e até das bactérias que carregamos em nosso intestino.
Mudar por dentro
Vamos partir do caso da Choices Foundation, que no Brasil se chamava Instituto Minha Escolha. Em dezembro de 2015, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia) compareceu à reunião do grupo de trabalho da Anvisa sobre rotulagem armada de uma apresentação da Choices. O grupo foi criado na metade da década passada, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) difundiu a Estratégia Global em Alimentação, Atividade Física e Saúde, um documento-chave para as empresas de ultraprocessados porque começa a impor limites: propõe impostos como forma de desestimular consumo e a adoção dos rótulos como espaço de alerta sobre riscos à saúde.
É fácil entender que o Choices, criado pela Unilever, é uma tentativa de evitar a regulação. O que faz o instituto, presente em vários países, é conceder um selinho positivo para produtos que promovam uma reformulação para reduzir os níveis de calorias, açúcar, sal e gordura. Não importa se é um salgadinho, um refrigerante, um biscoito.
A exemplo do comitê latino-americano, o comitê científico brasileiro tem nomes conhecidos no meio: Franco Lajolo, Silvia Cozzolino, Sonia Tucunduva Philippi e Eliane Bistriche Giuntini. Além de serem professores das faculdades de Ciências Farmacêuticas e de Saúde Pública da USP, encabeçam organizações conhecidas pela proximidade com a indústria de alimentos.
Foram fundadores ou são integrantes da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban), que tem se envolvido em polêmicas ao defender certos produtos. Lajolo preside o Comitê Científico do International Life Sciences Institute (ILSI), uma organização criada pela Coca-Cola e que hoje tem a participação de dezenas de corporações voltadas à “produção de conhecimento” utilizado no debate sobre políticas públicas.
Cozzolino preside o Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul), que tem se oposto às medidas do conselho federal favoráveis a um maior distanciamento em relação ao setor privado. Recentemente, ela se fez alvo de críticas ao se posicionar publicamente contra um debate sobre conflito de interesses promovido pelo órgão federal.
A posição foi reforçada durante a entrevista que nos concedeu, rechaçando a possibilidade de regulação. “De todas as empresas que eu tenho contato e que de alguma forma tenho conversado sobre isso, estão preocupadas com o aumento da obesidade e estão de alguma forma procurando alternativas para os produtos que são produzidos no sentido de reduzir açúcar, reduzir quantidade de sal, reduzir gordura.”
A mudança por dentro é um motivo frequente para que cientistas aceitem participar de pesquisas e grupos financiados pelo setor privado. Embora o limite de cada um nessa relação varie bastante, o inegável é que há uma parcela crescente de pesquisadores incomodados.
Susan Prescott, professora de pediatria na Escola de Medicina da Universidade da Austrália Ocidental, esteve durante dez anos no Conselho Consultivo do Instituto de Nutrição da Nestlé na Oceania. Ela conta que sempre se questionou sobre os conflitos criados por essa relação porque, como pediatra, crescentemente notava os problemas criados pelos ultraprocessados.
Apesar de nas empresas haver encontrado pessoas muito dispostas a contribuir para a melhoria da saúde em escala global, também notou que as atividades essenciais dessas corporações, o marketing e o desenvolvimento de produtos, estavam voltados ao lado oposto. “Pesquisadores que se mantêm entrincheirados na defesa dos ultraprocessados estão se descobrindo no lado errado da história. Mesmo que por associação, eu estava de fato emprestando meu nome a algo que considero ser um sistema não saudável.”
As pesquisas de sequenciamento genético mostrando os efeitos negativos provocados pelos ultraprocessados em nossa flora intestinal deram mais força a essa posição. Susan Prescott, como integrante da inFLAME Global Network, uma rede de pesquisadores que justamente mapeia essas consequências, foi ficando muito incomodada com as descobertas.
E a gota d’água veio com um artigo assinado por um integrante do Comitê Científico da Nestlé que contesta a classificação dos alimentos entre in natura ou minimamente, processados e ultraprocessados, conhecida no meio científico como NOVA. O assunto já foi abordado por O joio e o trigo, mostrando como os ataques ao pesquisador brasileiro Carlos Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, partiram de cientistas com ligações com a Nestlé.
“Um criticismo equilibrado é um fator importante para o progresso científico. No entanto, quando vejo tentativas de desacreditar o sistema NOVA por pessoas financiadas pela indústria, eu só posso concluir que esses esforços são característicos de escapismo intelectual”, diz Susan.
Motivações
Uma razão crucial para o financiamento privado da ciência é influenciar, formular ou retardar políticas públicas. Os agentes públicos precisam embasar posições e, se surge algo bem feito, bem apresentado, cresce a chance de que a visão contida nesse material prospere. E que aquele cientista que não fez um trabalho ativo para se fazer ver acabe desconsiderado no debate. Já vimos como isso se dá na Anvisa.
Outra razão frequente diz respeito à influência que pesquisas exercem sobre profissionais de saúde. Um suplemento, um alimento ou um medicamento amplamente acolhido pela comunidade médica significa bilhões a mais no caixa.
Ditar hábitos de consumo de forma mais ampla é um desdobramento natural, e a internet e os modismos abriram todo um novo horizonte. Um especialista que vai a um programa de TV ou que tem milhares de seguidores numa rede social pode ser a chave do sucesso de um produto. Em nossos hábitos cotidianos há fartura de exemplos: adoçantes, vinhos, azeites, produtos integrais etc etc etc.
E, por fim, essas pesquisas servem para atestar boas práticas – ou encobrir as más. Uma recomendação de uma associação médica ou da área de nutrição para certo produto ou certa empresa vale bastante – tanto mais quanto melhor reputada for a organização. Há entidades no Brasil que oferecem um selinho que acompanha produtos no supermercado. Algumas são honestas, mas nem todas.
Como em outras áreas, as empresas sabem que não precisam financiar pesquisa em tudo quanto é canto. Basta contar com um número pequeno de colaboradores de peso, capazes de emprestar credibilidade à mensagem que se quer irradiar. Há uma premissa fundamental na discussão. Quem considera que as grandes empresas estão nos trazendo progresso e bem-estar tende a não ver problemas na relação delas com a ciência e a acreditar naquilo que é apresentado.
No fundo, o debate poderia se resumir a: o mundo é assim e vamos como der; o mundo pode ser de outro jeito e vamos fazer por onde para mudar. Os interesses das corporações podem convergir com os da sociedade? Ao promover determinado assunto para o qual há fundos de pesquisa, estamos deixando de lado outros temas igualmente importantes? A ciência deve ser um campo salvaguardado da influência privada?
A premissa para entender a discussão é saber que o setor privado tem pavor da palavra regulação. Quando sente que está a caminho, lança mão da autorregulação, ou seja, da ideia de que as empresas podem se autofiscalizar. O raciocínio é de que, se essas corporações estão demonstrando boa vontade, a imposição de normas mais rígidas é autoritária e desnecessária. Foi assim com o consumo excessivo de sal e com a publicidade de refrigerantes e ultraprocessados voltada a crianças, só para citar dois exemplos desta década.
É assim no caso da Choices, que tenta evitar a imposição de alertas frontais nas embalagens. No México, funcionou: o país adotou o GDA, mostrado na figura abaixo, em detrimento do modelo chileno, de advertências. Você pode olhar os dois sistemas e dizer qual te passa a informação mais clara.
A Anvisa está debatendo a adoção de um padrão de rotulagem frontal. Nos próximos meses, não faltarão pesquisas científicas voltadas a desmerecer propostas mais rígidas, como o rótulo chileno. E a enaltecer a autorregulação e padrões que possam ser usados pela indústria como publicidade, em lugar de restrição.
Os slides apresentados na reunião da Anvisa dizem que o Minha Escolha enfrentou “barreiras regulatórias” no Brasil: não podia colocar selinho positivo em produtos de péssimo teor nutricional. A apresentação também enfatizava que o Choices é ancorado em forte trabalho científico.
Gênese
Não necessariamente toda ciência produzida com recursos privados é ruim ou deve ser desacreditada. Vamos lembrar que nada na vida é neutro e que as várias correntes da ciência refletem uma série de pressupostos básicos. Então, há cientistas cuja visão ideológica favorece chegar a essa ou àquela conclusão. Isso é do jogo. O que não é do jogo científico é desconsiderar elementos relevantes simplesmente porque não atendem a seus pressupostos ou aos pressupostos de seus patrocinadores.
“O estudo não tem a influência da indústria. E na hora de escrever o artigo a ser publicado também nunca tive”, diz Felix Reyes, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp e fundador do ILSI. “Independente se o resultado interessa ou não à empresa, é um resultado científico. O dado científico deve ser publicado. A nossa função não é proteger ou não uma empresa. Vamos ajudar a empresa. Se o resultado é negativo para a empresa, vamos buscar uma forma de evitar esse efeito negativo.”
Porém, os estudos que passam a limpo essas relações têm mostrado outra realidade. Em 2007, um grupo de pesquisadores dos Estados Unidos analisou 222 artigos publicados entre 1999 e 2003, dos quais 22% haviam sido financiados exclusivamente por capital de empresas de alimentos. As conclusões de cada pesquisa foram avaliadas por pessoas que desconheciam a origem do financiamento. A proporção de conclusões desfavoráveis à indústria nos artigos que receberam dinheiro dela foi de 0%, e a diferença foi de 7,6 vezes mais resultados favoráveis nos trabalhos com recursos privados.
O próprio Felix Reyes enfatiza que a indústria busca financiar assuntos que lhe sejam benéficos ou que sirvam para a contenção de danos, dando como exemplo o interesse de Coca e Pepsi por trabalhos sobre adoçantes. “Pesquisas mostravam que a sacarina induzia tumores na bexiga de ratos. Isso foi um rebuliço. Como deixaram usar a sacarina nos refrigerantes diet? Isso acabaria com esse nicho de mercado. Então se começaram as pesquisas com o apoio da indústria. A indústria financiou muitas pesquisas.”
Em 2013, um grupo de cientistas espanhóis analisou 18 artigos de revisão sobre bebidas açucaradas. Os artigos de revisão são importantes porque condensam conclusões e, portanto, servem tanto para decisões de formuladores de políticas públicas como para recomendações de profissionais de saúde.
De seis trabalhos financiados pela indústria, cinco desconsideravam a associação entre a obesidade e o consumo dessas bebidas, ou adotavam uma postura inconclusiva. Trabalhos de comprovada relevância eram ignorados por esses autores. “Os interesses da indústria de alimentos (vendas aumentadas de seus produtos) são muito diferentes dos interesses da maioria dos pesquisadores (a honesta busca pelo conhecimento) (…) Essas descobertas chamam atenção para possíveis descuidos em evidência científica de pesquisas financiadas pela indústria de alimentos e bebidas”, assinala a conclusão.
Este ano, um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia passou a limpo a maneira como a indústria do açúcar apontou o dedo para as gorduras durante décadas. O caso foi tratado também pela revista Piauí na reportagem Conspiração Amarga, de junho de 2016.
O que esse grupo de pesquisadores mostrou foi que já na década de 1950 havia evidências da associação entre açúcar e doenças cardíacas. O que se fez, então, foi criar uma fundação que desenvolveu pesquisas que jogaram toda a culpa na gordura, o que levou a que as recomendações oficiais de saúde advogassem por dietas baixas em gordura, o que por sua vez pode ter provocado muitas mortes (nunca saberemos quantas). Essa fundação procurou alguns figurões da ciência médica e ofereceu a eles um dinheiro que hoje seria trocado para pinga, mas que foi o suficiente para manipular evidências.
Desvio de foco
Durante um evento recente em São Paulo, o médico Mário Cícero Falcão, do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da USP, com trabalhos patrocinados pela Johnson e pela Aché, apresentou um slide de 2000 que associava fórmulas infantis a uma flora intestinal mais rica que a de crianças alimentadas com leite materno. E admitiu: hoje se sabe que isso não é verdade. Erros acontecem. Descobertas científicas fazem com que os consensos estejam em constante transformação.
Mas não é disso que estamos falando: estamos falando de como a ciência foi usada para induzir gerações de mães ao erro de pensar que o leite materno é fraco, é escasso, é incompleto. Isso ainda é comum.
Tampouco estamos dizendo que a ciência foi e é usada para vender algumas balinhas a mais, ou promover uma troca eventual da comida caseira por uma refeição pronta. Pesquisas financiadas para enaltecer o alimento artificial fizeram com que muitos médicos – é de supor que na maioria das vezes sem más intenções – receitassem uma prática errada às pacientes. Isso pode ter custado caro à saúde de muitas pessoas: de bebês.
A despeito de tudo isso, muitos profissionais da saúde batem na mesa e garantem que agora estamos diante de descobertas definitivas, irrefutáveis. Quando surge alguma evidência contrária ao setor privado, pregam cautela e dizem que são necessários novos estudos para chegar a uma conclusão. Mas não demonstram a mesma precaução em relação àquilo que é bom para o lucro das empresas — e deles.
Hoje, no Brasil, o Ministério da Saúde calcula que três em cada quatro mortes sejam causadas por doenças crônicas não transmissíveis. Nem todas estão relacionadas a alimentos, mas diabetes e hipertensão, que ocupam espaço privilegiado, podem estar. No começo de agosto, o Instituto Nacional do Câncer emitiu um posicionamento no qual afirma haver correlação entre obesidade e 13 tipos de câncer. O órgão público diz que o aumento do consumo de ultraprocessados é um grande problema, e que é possível dizer que 13 em cada cem casos de câncer no país podem ser atribuídos ao excesso de peso. O documento cobra a imposição de limites a esses produtos, com aumento de impostos, restrição de publicidade e mudanças na rotulagem, e demonstra preocupação com os resultados de pesquisas financiadas pela indústria.
Vamos pegar um exemplo de agora. As tecnologias de sequenciamento genético avançaram de modo a promover um mapeamento inédito do nosso microbioma intestinal, que é o conjunto de microrganismos que vivem no trato digestivo. Há bichinhos aliados na digestão. Um dos grandes achados é de que a composição digestiva de obesos é diferente da de magros. Os cientistas ainda não têm certeza se isso é resultado de uma alimentação mais pobre ou se a alimentação mais pobre é que é o resultado dessa composição – Susan Prescott, como vimos, não tem dúvida.
De todo modo, deveríamos chegar a uma conclusão óbvia: basta mudar a alimentação para que o microbioma se regenere. Verduras, legumes, frutas, cereais naturais, alguma carne (se quiser). A grande maioria de nós, humanos, só precisa disso para sobreviver. Mas, então, um evento da área de nutrição se resumiria a uma frase: “Comam alimentos de verdade”. Em suma, seria desnecessário, e com isso iria por água abaixo o patrocínio da indústria a pomposos encontros. Por consequência, a necessidade de bancar certas pesquisas. A capacidade de provocar uma enorme confusão na cabeça das pessoas sobre o que e o que não comer. Bilhões em publicidade. A fabricação de suplementos, alimentos fortificados, funcionais, probióticos, prebióticos e simbióticos. Bilhões em “soluções” para a obesidade.
Não conseguimos ouvir nenhuma solução simples saída da boca de pesquisadores empolgados com as descobertas sobre a microbiota, em uma dezena de debates a que assistimos entre maio e novembro. O caminho inevitável parece ser a receita de novos remédios e alimentos com probióticos – dois exemplos para entender do que estamos falando: Yakult e Activia. Essas descobertas todas sobre a vida agitada de nossa barriga abriram uma nova janela de oportunidades para a indústria que quer negar a correlação com a obesidade. E uma nova janela de oportunidades para a mesma indústria, que quer lucrar com a obesidade.
Assim que a Anvisa deixar: neste momento, as corporações e alguns grupos de pesquisadores trabalham para mudar as normas vigentes de maneira a “destravar”, para ficar no jargão comercial, a inovação no Brasil. Não resta dúvida de que alguns grupos da população com problemas específicos podem se beneficiar desses achados, porém, diante de resultados reconhecidamente preliminares, os profissionais de saúde deveriam recomendar esses produtos a torto e a direito?
Durante um debate realizado em novembro do ano passado pelo ILSI, Marcos Pupin, diretor de Assuntos Regulatórios e Científicos da Nestlé, informou que o Brasil dispunha de apenas um estudo clínico sobre probióticos, contra 833 nos Estados Unidos.
No Congresso da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban), em agosto, Franco Lajolo, do ILSI, avisou aos presentes que a Anvisa precisará de estudos nessa área, ecoando o que havia sido dito semanas antes, em outro evento, por Dan Waitzberg, da Faculdade de Medicina da USP e do ILSI.
O PubMed, uma das principais bases de trabalhos científicos, registra este ano quase cinco mil artigos sobre o tema, somados a outros 6.000 em 2016 e 5.350 em 2015. Uma década atrás, eram menos de quinhentos ao ano e, voltando um pouco mais, na virada do século não chegavam a uma centena.
“O que me preocupa é que essa agenda veio muito da indústria, que promove uma série de produtos, sobretudo lácteos, que têm efeitos para a microbiota. E querem promover esse vínculo com a obesidade. Me preocupa porque a atenção sobre coisas básicas, como o consumo de açúcar, não tem esse mesmo apoio por detrás”, lamenta o mexicano Simón Barquera.
Quando se trata da correlação entre açúcar e obesidade, temos menos de mil artigos este ano, 2.000 no ano passado e 2.500 em 2015. É mais fácil imaginar que um bilhão de pessoas mundo afora emagrecerão à base de probióticos ou conhecendo a influência do açúcar sobre a dieta?
Vamos pegar mais um exemplo dessa distorção. Felix Reyes, fundador do ILSI, é professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp desde a década de 1970. “Na área de segurança alimentar e toxicologia, temos tido reticência por parte da indústria porque ninguém quer que fale que o alimento está com determinado resíduo. A indústria tem procurado mais na área de alimentos funcionais. Se você desenvolve um ingrediente com propriedades funcionais, a indústria se interessa.”
Os motivos
Alguns desses pesquisadores são selecionados porque têm alta capacidade técnica. Mas nós temos o direito de saber que, naquela condição, Fulano de Tal é o consultor de uma corporação, e não o professor de uma faculdade. Porém, tomar emprestada a credibilidade da instituição é um ponto central da história.
“O que a indústria de alimentos quer muitas vezes não é cooptá-lo no sentido de falar bem da indústria e de seus produtos. É não criticar, apenas isso”, diz Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ele é um dos nomes mais críticos à relação entre indústria e ciência, e também um dos mais criticados pelas grandes empresas.
Embora tenha participado da fundação da Sban, decidiu se afastar. “Investimento em professores de universidades é muito ‘produtivo’ para a indústria. O professor tem contato com centenas de jovens, pode alcançar muita gente. Isso faz parte da estratégia de cooptação. A solução para isso é ter um código de ética, de conflito de interesse. É importante ser explicitado.”
Quem também decidiu se afastar (parcialmente) foi o chileno Ricardo Uauy, da London School of Hygiene and Tropical Medicine. Ele foi fundador do ILSI em seu país, mas nos contou recentemente que decidiu não exercer altos cargos dentro da organização porque tinha receio dos rumos que poderia tomar. Uauy, que segue como consultor de algumas empresas, foi menos enfático ao comentar o assunto. “Hoje, está claro que a saúde pública não era o principal propósito do ILSI.”
Recentemente, durante um evento em São Paulo, o presidente da Cargill disse contar com 500 PhDs somente na área de nutrição animal. Se ele dispõe de tanta gente capacitada a fazer pesquisa em tempo integral, por que precisa pinçar professores nas maiores universidades do país? Porque nós tendemos a acreditar no professor, e a desconfiar do representante de uma empresa. O primeiro está compartilhando saber. É um nobre. O segundo, fazendo propaganda. Um mundano. Somos gratos ao primeiro e estamos dispostos a reproduzir em nossas vidas o que ele diz ser correto.
Em resumo, um comentário certo para o público certo economiza milhões de reais (e alguns anos) em publicidade. O profissional de saúde em geral, o médico em particular, é uma figura envolta em sacralidade desde tempos imemoriais – quase 300 deles foram eleitos prefeitos em 2016.
A Yakult mantém desde 1955 no Japão um centro com 300 cientistas que buscam exclusivamente descobrir benefícios de seus produtos. A Coca-Cola criou em 1978 o ILSI para tentar provar que a cafeína adicionada ao refrigerante não era apenas um item a mais na tarefa de viciar pequenos fregueses, nem causava hiperatividade.
Mas há uma série de mudanças nas últimas décadas em relação ao grau e à evidência sobre os problemas dessa “parceria”. O primeiro diz respeito à redução do papel do Estado e ao fortalecimento do paradigma de que o setor público é canalha e o setor privado é generoso: quanto mais agentes privados tivermos no setor público, mais o depuramos. No âmbito acadêmico, sucessivas reduções orçamentárias fazem com que o dinheiro de grandes empresas seja a tábua de salvação para cada vez mais gente – alguns estudos custam caro e podem demorar anos a se viabilizar com recursos públicos.
Se as universidades dos estados mais ricos estão sofrendo severas restrições, a situação é ainda mais grave em outras partes. “O conflito de interesses é invisível para quem não tem um olhar treinado. Porque vem muito embutido como uma boa ação”, conta Nádia Aline Fernandes Correa, conselheira da região Norte no Conselho Federal de Nutricionistas. “Existe um aliciamento dos profissionais pelo aspecto econômico. A pessoa precisa que as coisas aconteçam, então, é comum ver esse tipo de ação.”
Ilton Azevedo, diretor da Coca-Cola e vice-presidente do ILSI, afirmou em entrevista publicada no ano passado que há “resistência de grupos específicos” que advogam pelo financiamento exclusivamente público da ciência, mas que é preciso reconhecer que a indústria conta com recursos grandes, diante de um cenário difícil para o setor público, e “pode aportar know-how sobre produtos, materiais e tecnologias de produção”.
Rogério Bezerra da Silva, do Grupo de Análise de Políticas de Inovação da Unicamp, estuda a apropriação do conhecimento produzido pelos pesquisadores públicos. Ele integra o Movimento pela Ciência e Tecnologia Pública, e demonstra desalento com a criação de cada vez mais instrumentos voltados à privatização do conhecimento e à transformação do acadêmico em empreendedor. “No caso da política de ciência e tecnologia, é a própria comunidade de pesquisa quem vê um caráter positivo nesse sentido de privatização porque é o ator que mais se beneficia com isso.”
O encolhimento estatal afeta até mesmo a OMS, que depende crescentemente de fontes privadas para manter iniciativas importantes. A Fundação Bill e Melinda Gates já é a segunda maior doadora, atrás apenas dos Estados Unidos. Quem doa quer opinar e acaba direcionando as prioridades e a agenda global de saúde, inclusive sentando-se à mesa para debater políticas que poderiam afetar os próprios interesses. “Já não se trata apenas das grandes corporações do tabaco. A saúde pública também deve travar uma luta com as grandes de comida, refrigerantes e álcool. Todas essas indústrias temem a regulação e se protegem usando as mesmas táticas”, afirmou a então diretora-geral da OMS, Margaret Chan, ao abrir uma conferência de saúde em 2013.
Ela afirmou não ter dúvidas de que o temor dos Estados frente às corporações é o principal freio à regulação dos fatores que causam a obesidade. “[As táticas] incluem grupos de fachada, lobbies, promessas de autorregulação, ações judiciais e pesquisas financiadas pela indústria que confundem as evidências e mantêm o público em dúvida.” Na dúvida, as pessoas têm optado por permanecer onde estão: cada vez mais obesas e doentes.