Tim Noakes, médico e cientista da nutrição sul-africano, foi ameaçado de cassação da licença por um esquema regido pela indústria do açúcar
As acusações contra Tim Noakes feitas ao Comitê de Conduta Profissional do Conselho de Profissionais de Saúde da África do Sul (HPCSA, na sigla em inglês) pareciam infundadas – e manipuladas – desde o início.
Um dos pesquisadores mais conhecidos do Continente Africano nas áreas de ciência do esporte e nutrição, ele foi denunciado por “colocar em perigo o público” e por “conduta não profissional” ao dar conselhos “não convencionais”, via Twitter, a Pipa Styling, uma jovem mãe que amamentava o filho de seis meses e queria conhecer possibilidades de complementação alimentar.
O conselho do cientista era “complementar a alimentação do bebê com vegetais e sem uma dieta rica em carboidratos e açúcares”. O tuíte único foi postado em 5 de fevereiro de 2014 e provocou quatro anos de audiências, com Noakes se defendendo às próprias custas e sob a ameaça de perder a licença médica.
A história por trás da audiência de Tim Noakes, que foi contada em reportagem do Joio, traz ensinamentos para pesquisadores e médicos que enfrentam a indústria de alimentos ultraprocessados.
A Associação de Nutricionistas Africanos, professores universitários e autoridades médicas, regidos pela Associação do Açúcar Sul-Africano, juntaram-se para silenciar uma voz dissonante, apesar do respeito internacional que o cientista da nutrição já possuía.
O que Noakes crítica é, essencialmente, o que os pesquisadores independentes de vários países também apontam: que as diretrizes dietéticas alimentares internacionais balizadas por pesquisas financiadas pela indústria alimentar não são baseadas em evidências rigorosas.
Até recentemente, o professor tinha se concentrado na ciência do exercício, na Universidade da Cidade do Cabo. Nos anos 80, tornou-se chefe da Unidade de Pesquisa para Ciências do Exercício e Medicina Esportiva e depois se uniu ao ex-jogador sul-africano de rugby Morne du Plessis para lançar o Instituto de Ciências do Esporte da África do Sul.
Poucos cientistas gostaram do destaque que ele ganhava na África, já que Noakes é autor ou co-autor de mais de 500 publicações científicas em periódicos revisados por pares, além de ter diversos livros lançados.
Nos últimos anos, Tim Noakes se interessou por nutrição, depois de descobrir que, apesar de ser um maratonista de sucesso por décadas, desenvolveu diabetes tipo 2. Pesquisas levaram-no a entender que apostas nas dietas ricas somente em carboidratos para atletas poderiam não ser a melhor solução a todos os praticantes de esportes.
A mudança de opinião do médico sobre nutrição, no entanto, incomodou colegas que há muito apoiavam a dieta com baixo teor de gordura e alto teor de carboidratos, consagrada nas diretrizes alimentares da maioria dos países. O aconselhamento pelo Twitter foi o estopim e Noakes foi afastado da universidade. Ex-colegas chegaram a escrever uma carta aberta o acusando de “fazer afirmações ultrajantes e não comprovadas“.
Para a primeira audiência do caso, em 2016, referências internacionais em nutrição, como a pesquisadora Zoe Harcombe, a jornalista investigativa Nina Teicholz, ambas dos Estados Unidos, e o nutricionista neozelandês Caryn Zinn voaram até a África do Sul para testemunhar a favor de Noakes, que foi absolvido de todas as acusações.
Porém, meses depois, as autoridades da HPCSA recorreram da própria decisão e entraram com um pedido de apelação em 2017. O absurdo da situação mobilizou uma rede internacional de médicos, que lançou uma petição em defesa do professor, assinada por 43 mil profissionais de saúde e ativistas pela alimentação saudável de várias partes do planeta. O documento foi entregue às autoridades sul-africanas em fevereiro deste ano.
A indústria por trás
Dos pesquisadores, médicos e nutricionistas das três universidades sul-africanas que atacaram Noakes na segunda parte do julgamento, este ano, em audiência realizada em fevereiro, não é coincidência que a maioria tenha ligações com a indústria de alimentos e medicamentos.
Entre eles está a professora de nutrição Marjane Senekal. Ela foi colega de Noakes na Universidade do Cabo. Depois, tornou-se consultora da HPCSA. Durante o julgamento, evidências sugiram de que Senekal produziu pesquisas questionáveis, que favoreciam a indústria do açúcar e de refrigerantes. Foi o caso da “Naude Review”, que classifica as dietas de baixo carboidrato (glicídios e açúcares) num patamar de consumo de 45% diários desses nutrientes. E descreve como “equilibrada” uma dieta com base de até 65% ao dia.
Quando essa revisão foi publicada, em julho de 2016, as organizações de saúde financiadas pela indústria de junk food da África do Sul entraram em ação, usando a análise para tentar desacreditar Noakes.
Outra das situações enfáticas que evidenciam uma teia de relações é uma mensagem da nutricionista Claire Strydom, da Associação de Dietistas da África do Sul, patrocinada por corporações de alimentos ultraprocessados. Primeira a acusar Noakes publicamente após a tuitada de 2014, ela apelava, por e-mail, a membros da HPCSA para que ajudassem com “o problema Tim Noakes”.
Um dos membros do comitê, Wentzel-Viljoen respondeu a Strydom que “a HPCSA tem um plano para Noakes”. Note: a troca de e-mails, conseguida pelos advogados do cientista, era de antes da conversa pelo Twitter entre Tim e a mãe que lhe consultou.
E Claire Strydom se mostrou çapenas a parte mais visível da investida contra o pesquisador. Havia peças muito mais poderosas atrás das cortinas. Quando apresentou a denúncia, além de presidente da associação de dietética, ela exercia a função de consultora nutricional da Kellogg’s.
Importante recordar que, na África do Sul, as principais organizações de “financiamento” dos conselhos dietéticos são a Associação do Açúcar Sul-Africano e empresas de comercialização de cereais, grãos processados e óleos vegetais. Nessa conjuntura, o International Life Sciences Institute (ILSI) compõe a linha de frente. Contamos sobre a atuação do ILSI no Brasil em várias reportagens.
Noakes já havia incomodado a indústria há muito tempo e o establishment médico-científico financiado pelas fabricantes de bebidas açucaradas acumulava ressentimentos, já que o fisiologista havia demolido dogmas em temas que interessavam ao setor. Objetos de estudo como hidratação, algo que contamos aqui, motivação e fadiga nas competições esportivas profissionais e amadoras tiveram os parâmetros revistos no continente depois das descobertas do professor.
Recebendo cobranças nacionais e internacionais de instituições e ativistas pela alimentação adequada e saudável, seguidas recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e pressionado pelas pesquisas de Tim, o governo da África do Sul começou a debater, em 2014, o ano em que a perseguição começou, a criação de um imposto sobre bebidas açucaradas (hoje, o imposto está em vigor).
Vitória
Tim Noakes tem festejado desde o dia 8 de junho, dia em que, finalmente, recebeu a notícia da sentença final favorável. O cientista foi absolvido de todas as acusações.
A celebração não é para menos: ele chegou a enfrentar uma profunda depressão nos primeiros meses do processo.
“Estou grato simplesmente pela minha carreira acadêmica, reputação e legado científico. E, principalmente, pela minha saúde e da minha família. Passamos momentos muito duros”, disse à reportagem do Joio.
Ainda assim, olhando em retrospectiva, ele afirma que faria tudo de novo. Tim e a esposa, Marilyn, mesmo com as dificuldades, não vacilaram em nenhum momento da decisão de lutar contra as acusações até o fim. “Sabíamos que tínhamos razão e verdade do nosso lado”, comenta o professor. “Pode levar tempo, mas a verdade sempre vence”, conclui.
Foto em destaque: The Noakes Foundation
Foto 1: Divulgação HPCSA
Aos empresários do açúcar, candidatos à Presidência não falam sobre obesidade
.
9