Enquanto redução de orçamento dos últimos anos já mostra resultados negativos, Bolsonaro faz propostas vagas e sinaliza agravamento do problema
Por Tory Oliveira, especial para o Joio
Em 2014, o Brasil comemorou pela primeira vez a saída do Mapa da Fome, mecanismo criado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) para apontar países onde a população ingere uma quantidade diária de calorias inferior ao recomendado. Há quatro anos, o índice brasileiro ficou abaixo dos 5% e, finalmente, o País foi excluído do Mapa. No entanto, alguns retrocessos já são visíveis e é possível que o cenário se agrave no quesito alimentação, a depender da visão do presidente eleito, Fernando Hadadd (PT) ou Jair Bolsonaro (PSL).
Generalizada, a crise econômica, incrementada pela cenário político tenso e carregada de cortes nas mais diversas áreas, já impacta a nutrição, a agricultura familiar, o acesso ao alimento de qualidade pelos mais pobres e o combate à fome. No médio e longo prazos, o efeito pode ser ainda pior, graças aos cortes em pesquisa e ciência. Isso porque o desenho das políticas públicas alimentares, em grande medida, é orientado por evidências científicas.
As pesquisas conduzidas principalmente pelas universidades públicas são base da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) desde a primeira edição, em 1999. Na última versão, de 2011, uma das diretrizes é justamente sobre pesquisa, inovação e conhecimento em alimentação e nutrição.
“O desenvolvimento do conhecimento e o apoio à pesquisa, à inovação e à tecnologia, no campo da alimentação e Nutrição em saúde coletiva, possibilitam a geração de evidências e instrumentos necessários para implementação da PNAN”, indica o documento de 2011.
Em agosto deste ano, durante uma audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Elisabetta Recine, alertou para o cenário de crise. Um dos exemplos citados foi a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em 2016, que reduziu ações que fortaleciam a agricultura familiar.
“Precisamos garantir orçamento e financiamento para o sistema. Sem esse financiamento, que transforma programas isolados em política, o plano de segurança alimentar e nutricional está ameaçado”, garante ela, sobre os cortes orçamentários.
A fala se deu poucos dias depois do alerta feito pelo presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes), Abílio Baeta Neves, de que ao menos 93 mil bolsas de pesquisadores e pós-graduandos e outras 105 mil de profissionais da Educação poderiam ser cortadas a partir de agosto de 2019. Após a repercussão negativa, que ecoou em hashtags nas redes sociais em defesa da pesquisa brasileira e também em reportagens de veículos especializados, como a Science, o governo federal recuou e afirmou que estava “trabalhando para buscar uma solução”.
“Não é o momento mais confortável para a ciência em geral no Brasil”, afirma a presidenta do Consea.
Segundo um estudo do Banco Mundial divulgado em setembro, os níveis de pobreza e extrema pobreza aumentam a passos largos desde o início da recessão econômica, em 2014, interrompendo uma década de avanços. Naquele ano, 2,8% dos brasileiros viviam com menos de 1,9 dólar por dia. Em 2015, já eram 3,4%, quase 7 milhões de pessoas. Já a população pobre – que vive com menos de 5,5 dólares por dia – cresceu de 17,9% para 20,6% entre 2014 e 2016.
“Há uma mudança na curva da pobreza. Essa é uma situação que precisa ser acompanhada e monitorada por pesquisas, bem como os programas ligados ao desenvolvimento social e à transferência de renda, para que a ação pública fique cada vez mais qualificada”, argumenta Elisabetta.
A redução dos investimentos em políticas sociais, a deterioração das condições de vida da população e a queda de recursos para pesquisa e ciência fazem com que o Brasil recue vários passos.
“O empobrecimento não é só econômico, mas também da produção de conhecimento e na definição das melhores alternativas para lidar com essa situação”, diz a pesquisadora.
Além do aperto do orçamento resultar em menos pesquisas, há, também, o risco da queda de qualidade das que forem produzidas.
“Temos um cenário de diminuição geral do fomento à pesquisa. Ou você não faz, ou restringe o que seria pesquisado”, afirma Daniela Canella, professora do Instituto de Nutrição da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Além da fome, a mudança rápida no perfil de alimentação no Brasil é outro desafio no horizonte, cujas ferramentas de enfrentamento dependem também de financiamento público. Nos últimos anos, os brasileiros aumentaram a presença de ultraprocessados na dieta, fazendo crescer doenças crônicas associadas aos hábitos alimentares, como a hipertensão e o diabetes. Esse aumento está relacionado com a baixa qualidade do acesso à informação para fazer melhores escolhas, somado a uma grande oferta, a preços baixos e a publicidade agressiva.
Para a nutricionista Patricia Jaime, professora associada da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), a austeridade fiscal atinge tanto a produção de conhecimento quanto os fenômenos estudados nessa área, como a desnutrição e a fome.
“O cenário é preocupante em termos de tendência dos problemas nutricionais no Brasil. Caminhávamos para resolver de maneira eficiente o problema da desnutrição. Ainda que houvesse um déficit histórico em alguns locais, havia uma resposta positiva, reconhecida no mundo todo”, explica.
Desse modo, a agenda avançava para temas como a alimentação saudável e a prevenção da obesidade, inclusive pensando em medidas regulatórias. “Agora, muito possivelmente, voltaremos a lidar com dois problemas, aparentemente, contraditórios, que são a obesidade e a desnutrição”, observa Patricia.
A pesquisadora e nutricionista Ana Paula Bortoletto, à frente do programa de Alimentação Saudável do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), explica que há poucos incentivos e políticas públicas estruturantes.
“Há algumas que funcionam, mas são sub-financiadas. Esse impacto na saúde está sendo muito claro e o SUS não dá mais conta de arcar com a população que adoece como consequência de toda a cadeia de produção de alimento no Brasil. É preciso mudar totalmente o favorecimento da cadeia”, analisa Ana Paula.
Ela revela que a permanência das políticas públicas estruturantes era frágil, pois dependia muito do contexto político e econômico do país. Muitas políticas que tinham financiamento para Segurança Alimentar tiveram o orçamento cortado ou reduzido – caso das cisternas.
O corte previsto para 2019 nesse programa foi quase total: 95%, passando de R$ 248 milhões para R$ 20 milhões, de acordo com o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), enviado pelo governo federal ao Congresso. Trata-se de um dos programas mais reconhecidos contra a seca no semiárido das zonas rurais da região Nordeste e do norte de Minas. Atualmente, estima-se que haja uma demanda por 600 mil cisternas de “segunda água”, destinadas à pequena agricultura, além de uma fila de espera de 350 mil famílias por uma cisterna de “primeira água”, usada para o consumo doméstico. Nos últimos 15 anos, mais de um milhão de equipamentos foram construídos.
Para Inês Rugani, professora e pesquisadora da UERJ na área de Nutrição, os efeitos do desinvestimento geral em ciência, tecnologia e inovação são “um fenômeno gravíssimo”, que causa retração profunda em ciência e tecnologia e é sentido imediatamente, principalmente na área social.
“Há esforços de algumas áreas técnicas do Executivo em pautar a academia brasileira com perguntas que interessam à política pública. É uma trincheira. É como se estivéssemos no deserto e surgisse um oásis”, diz Inês.
Para a pesquisadora, à exceção desses esforços, o que temos é uma retração na saúde pública e na produção da pesquisas independentes dos interesses empresariais.
“O financiamento com dinheiro público permite produzir de forma independente nas universidades. É capaz de trazer elementos da realidade brasileira e sinalizar caminhos para melhorias”, analisa a professora.
Elisabetta Recine aponta que, além disso, o uso de evidências científicas é fundamental no momento de negociar, discutir e decidir qual será a política pública. “Quanto mais pudermos caminhar para decisões baseadas em evidências, melhor. Traz mais confiança para a decisão tomada”, pondera.
Outro ponto destacado pela presidenta do Consea é que, diante de um embate na sociedade, o poder de negociação aumenta quando a posição é sustentada por evidências científicos. “Na discussão da rotulagem, por exemplo, a grande força da proposta da sociedade civil em relação às advertências frontais derivou do grande conjunto de evidências coletadas nacional e internacionalmente por pesquisas”, ressalta.
Outro aspecto da crise é que áreas com pesquisadores historicamente mais próximos do setor privado, como a Tecnologia de Alimentos, podem se tornar mais vulneráveis. A pesquisa passa a ter mais potencial, por exemplo, de ser conduzida para favorecer o produto do patrocinador do estudo ou, caso não encontre resultados favoráveis para a empresa, de ser engavetada.
“São coisas que não são de agora, mas o que ouço dos colegas dessas áreas é que essa retração do dinheiro público, sem dúvidas, torna os pesquisadores que têm resistido a essa relação mais vulneráveis. As pesquisas são caras e é muito difícil fazer sem dinheiro público. Aqui na UERJ, por exemplo, há pesquisadores colocando dinheiro do próprio bolso para a pesquisa não parar e não jogar fora o que já foi feito”, enfatiza Inês.
Candidato, vai ter dinheiro para a pesquisa?
Em uma análise da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) sobre os planos de governo dos 13 candidatos a presidente registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no primeiro turno, vê-se que não são poucas as lacunas quanto ao tema.
Uma das reivindicações da comunidade científica feita aos postulantes é a revogação da Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o teto para os investimentos do governo pelos próximos 20 anos. Das duas candidaturas, apenas a de Haddad afirma a necessidade de revogação desse instrumento.
No que diz respeito à busca por mais recursos para pesquisa científica, Bolsonaro só faz uma leve menção a “parcerias com as empresas privadas para transformar ideias em produtos”, o que, na visão do candidato de extrema-direita, geraria riqueza e desenvolvimento.
Já o programa de Fernando Haddad defende a volta do patamar orçamentário das agências de fomento federais (Capes e CNPQ) aos praticados anteriormente, tendo como eixo o interesse público das pesquisas científicas. No que diz respeito ao volume de recursos do Produto Interno Bruto (PIB) que deve ser investido em ciência, o candidato defende que o patamar seja igual ou maior a 2%.
Foto em destaque: Fernando Frazão. Arquivo Agência Brasil.
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