Metas frágeis, ausência dos produtos mais vendidos, enfraquecimento do poder público e risco de troca massiva por adoçantes despontam como consequências da iniciativa
Assinado ontem (26) em Brasília, o acordo para a redução de açúcar em alimentos ultraprocessados é ineficaz do ponto de vista da saúde pública. Perigoso para o poder público. E providencial para a indústria de comida-porcaria.
O ato de assinatura, na sede do Ministério da Saúde, expôs as enormes fragilidades da iniciativa, que parece mais que nada voltada a tirar da reta as corporações do setor, pressionadas pelos elevados índices de obesidade e doenças crônicas.
A ação se dá no momento em que a Anvisa debate a possibilidade de colocar alertas nos rótulos sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas. Não poderia ser mais simbólica a presença do atual diretor-presidente da agência, William Dib. O ex-deputado mais uma vez alinhou-se ao discurso das empresas de que não é preciso promover regulação.
Ou seja, de novo realiza-se aquilo que está previsto na história da atuação corporativa: a autorregulação surge em momentos delicados com o objetivo de evitar, retardar ou deslegitimar a ação do Estado. O acordo para redução do uso de sódio também surgiu na cartola em um contexto complicado. Na época, a Anvisa avaliava impor restrições à publicidade de ultraprocessados.
Transparente, em meio a tergiversações, foi a fala do presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), Wilson Mello: “A indústria de alimentos está em festa hoje porque conseguimos avançar e assinar um acordo que será benéfico para a população brasileira.”
1. Castelo de açúcar
Anunciado com pompa, o número de 144 mil toneladas de açúcar a ser retirado dos industrializados até 2022 não sobrevive a uma regra de três. Mostramos em nosso texto de estreia no portal UOL que isso corresponde a menos de 2% do açúcar utilizado nesses produtos.
Os homens presentes à mesa, representando o poder público e as empresas, não souberam ou não quiseram explicar quão pequeno era esse número, em uma de muitas lacunas.
2. Metas frágeis
O esforço do Ministério da Saúde em não expor as metas reais durante o lançamento tampouco passou despercebido. O material de divulgação apresentava números proporcionais que pareciam grandiosos, com redução de até 64% no açúcar utilizado em algumas categorias de produtos.
Mas o acordo em si, divulgado horas depois, deixa claro que a maior parte dos produtos líderes de mercado escapa da régua fixada pelas próprias empresas. Nescau, Coca-Cola, Bono. Alguns biscoitos do tipo maisena, bolos, misturas para bolos, bebidas lácteas: quase todas as metas são frágeis.
Nos cálculos do ministério, menos de metade dos produtos terá de passar por uma readequação. Ao longo dos próximos quatro anos. E sem possibilidade de punição.
3. Quem ficou de fora
Cereais matinais ficaram de fora da lista, bem como balas e chicletes, chocolates, gelatinas. Tudo que faz parte da dieta nada saudável de crianças. O Sucrilhos, por exemplo, tem mais de 30% de açúcar. Algumas gelatinas são 90% açúcar.
O ministério diz que os cinco grupos incluídos no acordo representam 87% do mercado. Ou seja, já de cara temos 13% que escaparam. A esses se somam os produtos beneficiados pelas metas frouxas.
4. Quem mais ficou de fora
Assim como se deu no acordo para redução do uso do sódio, a iniciativa do açúcar beneficia as grandes empresas. Como as metas são calculadas a partir de médias, tendem a ser puxadas para cima por produtos horríveis, muitas vezes fabricados pela pequena indústria. E acabam por isentar produtos ruins (pouco menos que horríveis). Além disso, as maiores do setor têm recursos suficientes para investir em engenharia de alimentos voltada a reformular produtos com um pé nas costas.
5. Emenda sai pior que o soneto
O Ministério da Saúde garante haver um combinado com a indústria para que não se troque açúcar por adoçante. O problema é que o acordo é voluntário e não há sinais de que o fio do bigode tenha algum significado para as corporações. A tendência é seguir o que tem sido feito no mundo todo, inclusive aqui, e promover uma troca massiva pelos edulcorantes.
Isso representa um risco para a saúde: as evidências acumuladas até aqui não permitem garantir a segurança no uso de adoçantes, muito menos em grandes quantidades.
6. Acompanhamento impossível
A sociedade terá em mãos poucos instrumentos para acompanhar o cumprimento das metas. Hoje, a declaração de açúcares no rótulo não é obrigatória. Em alguns casos, você pode se virar fazendo cálculos a partir da declaração de carboidratos. Mas dá trabalho e está sujeito a erros. O mais seguro é comer comida de verdade.
7. Sinais trocados
O Ministério da Saúde corre o risco de se lambuzar nesse mel. O Guia Alimentar para a População Brasileira recomenda fazer de alimentos frescos a base da nossa comida diária. E evitar ultraprocessados. Assim como se deu no caso do sódio, esse tipo de acordo pode transmitir a ideia de que esses produtos são saudáveis, quando não são.
Questionados, durante entrevista coletiva, se daqui a quatro anos esses produtos poderão ser considerados saudáveis, os representantes do governo e das empresas não quiseram segurar a batata quente. Coube à coordenadora geral de Alimentação e Nutrição do ministério, Michele Lessa, reafirmar a mensagem do Guia.
8. Reformulação
O acordo comprova também a limitação da estratégia de reformulação de produtos. Fica claro que as empresas não têm como avançar até pontos verdadeiramente saudáveis de uso de sal, açúcar e gorduras. Não enquanto ficarem presas aos ultraprocessados. As melhores pesquisas mostram que é inerente a esses produtos o uso de ingredientes que podem causar danos à saúde.
Isso reforça a ideia de que um verdadeiro freio à epidemia de obesidade só se dará fora do reino dos ultraprocessados, cumprindo as recomendações do Guia.
9. Besta é tu
O tom usado por indústria e ministro da Saúde, Gilberto Occhi, deixa clara a ideia de “comigo não morreu”. A ideia foi enfatizar que “apenas” 36% do açúcar consumido vem de produtos industrializados. Você é que é burro de colocar açúcar no café, no suco, na fruta.
Só que não. De novo, vale olhar para as evidências científicas produzidas de maneira independente. O que mostram é que a obesidade se dá a partir de pequenos acréscimos calóricos diários que, ao final de um longo período, produzem um grande aumento de peso.
Aquilo que mudou nas últimas décadas – e isso também está demonstrado por pesquisas científicas – foi o pequeno acréscimo diário a partir de ultraprocessados. É o refrigerante que se tornou de uso cotidiano. O biscoito que ficou baratíssimo. O chocolate que está disponível a cada esquina.