Crônica | Cozinhar e escrever: dois saberes e prazeres em comunhão

Cozinhar é como escrever. O prazer de comer uma boa comida só é superado pelo de ser o cozinheiro que vê os outros se empanturrando com o seu trabalho

Cozinhar é como escrever. Ninguém nasce sabendo. Em ambos os casos, é necessário, primeiro, aprender. A partir dessa constatação óbvia, no entanto, vou além: quanto mais se faz qualquer uma das duas ações melhor se torna nelas. Há, claro, quem diga que não: que há quem nasça vocacionado para a culinária ou para as letras, enquanto os outros são inaptos desde o berço. Mas será mesmo?

Parece-me que é impossível cozinhar com excelência sem uma sucessão de tentativas e erros. Que se pode dizer, então, de escrever um texto? Quem tem a escrita como tarefa diária sabe: aquela frase de abertura nunca aparece de primeira; aquela ideia que parecia genial nos rascunhos é uma porcaria quando executada; aquela construção sintática, síntese de uma fina ironia que só a união do papel com a mente genial de quem escreve poderia proporcionar, não passa de um clichê bem mais ou menos.

No entanto, quanto mais se repassa as palavras no papel, quanto mais se lê, quanto mais se relê, é possível transformar um amontoado caótico de ideias em frases, parágrafos e textos, que, investidos com uma dedicação digna dos melhores chefs, mais afiados ficam. Não seria o mesmo sobre cozinhar?

Ninguém acerta o feijão de saída — ele vai ficar aguado. E o arroz, das primeiras vezes, certamente será papa. Mas é assim, entre erros e acertos, que se percebe o que se faz para engrossar o caldo, para pegar o ponto certo do cozimento, para acertar a mão no tempero.

Há receitas para cozinhar e há para escrever. Existe uma fórmula secreta (não é tão secreta, mas enfim…) no jornalismo que pede que o primeiro parágrafo diga quem fez o quê, quando, onde, como e por quê… É sem graça, pior do que uma batata cozida sem sal —ou alguma porcaria ultraprocessada—, mas funciona. E é quando se entende que o que, como, quando, onde e por que funciona que a brincadeira começa a ficar mais legal, já que, aí, quem sente que pode extrapolar a fórmula no seu próprio texto.

Da mesma forma, quem nunca tentou “adaptar” uma receita? Ora pela falta de algum dos ingredientes indicados, ora para dar um toque mais pessoal ao prato em questão. Não raro, as adaptações agradam mais do que as versões originais.

A comida e as palavras também têm algo singularmente em comum. São frutos da necessidade e produtos dos nossos desejos, em busca dos mais variados fins, constituindo-se de N elaborações possíveis da mente humana. Harmoniza-se ingredientes como se escolhe cuidadosamente os léxicos de uma reportagem, de uma poesia, de uma crônica.

Quantos textos já não foram escritos por inspiração amorosa, por escapismo da realidade ou pela vontade de resistir às mazelas do mundo? Igualmente: quantas pessoas não nos legaram suas melhores receitas, quanto não recorremos à comida para sanar as angústias ou o quanto o que está no nosso prato não diz respeito a um planeta inteiro?

Cozinhar é como escrever, repito. O prazer de comer uma boa comida só é superado pelo de ser o cozinheiro que vê os outros se empanturrando com o seu trabalho. A leitura também traz suas satisfações, mas não supera o deleite de saber que leram —e gostaram— do que você escreveu.

Se o desejo nasce e se revigora com as palavras, com os cheiros e os sabores, há de morrer na forma de um texto ou da fome que é saciada. A morte que a vida sucede após o momento em comunhão com alguém querido.

Por Guilherme Zocchio

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