É lobby?

Uma consultoria estratégica que presta serviço à indústria de alimentos vai até a Anvisa falar em nome de uma associação científica que não a contratou. E que desautoriza a atuação

Criada em 1986, a Patri Políticas Públicas é a maior empresa brasileira de public affairs, ou “assuntos públicos”. Fica estrategicamente situada onde os assuntos públicos importam: Brasília. Trata-se de uma consultoria estratégica que sacou antes de quase todo mundo o valor de um ativo subjetivo: a informação.

Os funcionários da Patri circulam a capital – mais São Paulo e Washington – colhendo e levando informações sobre políticas públicas. Qual a perspectiva de aprovação de determinado projeto de lei. Quem são os atores-chave na discussão de um programa entre ministérios. Quais organizações da sociedade civil podem afetar a aprovação de uma medida que quer beneficiar uma empresa. Que discursos é preciso neutralizar.

Os clientes são corporações ou associações empresariais das mais diferentes áreas, interessadas em contar com relatórios estratégicos sobre como se move o tabuleiro em Brasília. A Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas (Abir) é uma das entidades que contam com os serviços da Patri. Algumas das principais corporações alimentares do Brasil também têm conta lá.

A equipe de 70 funcionários reúne, no geral, algumas habilidades básicas: advogados, jornalistas, cientistas sociais, especialistas em relações internacionais. Pessoas que sabem observar o jogo político e colher informações.

A página da Patri é expressa: a empresa não “representa seus clientes perante tomadores de decisão, isto é, não fala em nome deles”, nem intermedeia “ou agencia negócios entre o setor privado e o setor público”. Tampouco “representa terceiros ou contrata em licitações públicas”. Embora defenda a regulamentação do lobby, a empresa diz não prestar esse tipo de serviço.

No dia 12 de junho, às 9h, porém, algo diferente ocorreu. O jornalista Rui Nogueira, sócio da Patri, entrou no edifício situado na Quadra Especial 57, lote 200, Bloco D, no Setor de Indústria e Abastecimento de Brasília. Lá, foi até o terceiro andar e entrou na Diretoria de Regulação Sanitária da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), comandada por Renato Porto.

Não seria nada diferente na rotina de Rui, que mora na capital há quase quatro décadas e encontra muitas portas abertas, habilidade muito importante desde que se somou à empresa, em 2011. Ele pauta jornalistas a respeito dos assuntos de interesse dos clientes. Conversa com servidores e políticos.

A pauta: “Tratar de sugestões de parceria para realização de workshop sobre rotulagem.” Em nome da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), uma entidade que vem acompanhando com atenção o debate na Anvisa sobre a definição de um sistema de rotulagem que informe sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras.

“O representante da empresa Patri consultou o Dr Renato sobre a possibilidade de realização de um workshop entre a Abran e a Anvisa sobre rotulagem nutricional. Caso positivo, a proposta será formalizada”, registra a ata, que dá a entender que o encontro foi breve. O diretor da Anvisa sugeriu que a iniciativa fosse apresentada a toda a diretoria, e manifestou que, dada a importância do tema, considerava oportuno o evento.

Rui Nogueira fez o que a Patri declara enfaticamente não fazer: “representa seus clientes perante tomadores de decisão”.

O documento ainda registra, em caneta, a sigla Abran sob o nome de Rui da Silva Nogueira. A associação de nutrologia informou não ter contratado os serviços da Patri, nem autorizado que o sócio da empresa falasse em nome de seus associados no contato com a Anvisa.

Rui Nogueira e a Patri optaram por não comentar o caso.

Alguns dos clientes da consultoria têm demonstrado grande interesse no debate sobre a definição de um modelo de rotulagem frontal. No geral, as corporações do setor fazem esforço máximo para evitar a adoção de alertas que exponham o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas em seus produtos. Em oposição, propõem um semáforo que mostra as cores verde, amarelo e vermelho para os nutrientes em excesso – um sistema desacreditado pelas evidências científicas.

Histórico

Antes de ingressar para a Patri, Nogueira trabalhou nos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, numa extensa e conhecida carreira que lhe permitiu conhecer as pessoas certas nos locais certos nas horas certas. O também veterano jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva é outro sócio da empresa, ao lado do fundador, Eduardo Ricardo da Patri.

É Eduardo Ricardo quem oferece, em poucas palavras, uma definição de public affairs: “É a arte de evitar crises”, ele expôs, num artigo de 2011, no qual demarcou a diferença entre a atividade que exerce e o lobby: “Public affairs representa o esforço organizacional para monitorar e gerenciar seu ambiente de negócios. Isso combina relações governamentais, comunicação, gerenciamento de temas e estratégias de cidadania corporativa – responsabilidade socioambiental – para influenciar políticas públicas, construir uma forte reputação e buscar um solo comum com os stakeholders.”

Ao mesmo tempo, ele define lobby como “audiências com membros do governo ou do Congresso Nacional com o objetivo de apresentar o ponto de vista de um indivíduo, uma empresa ou um grupo em relação a uma legislação ou política pública específica”.

De outro lado, a Abran entrou no debate sobre rotulagem aos 45 do segundo tempo. A associação não participou do grupo de trabalho criado pela agência reguladora em 2014, e que até 2016 discutiu os melhores modelos de rotulagem frontal para fazer frente aos índices alarmantes de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis. O debate seguiu em 2017, quando foram apresentados vários sistemas por entidades da sociedade civil, organizações de pesquisa e representantes da indústria.

Foi só depois de estourado o prazo que a Abran figurou com o NutriScore, um sistema adotado na França e que condensa as principais informações nutricionais numa nota que vai de A até E. Há empresas que torcem o nariz para esse modelo. E há empresas que adoram, porque é fácil de trocar um açúcar por um adoçante, colocar umas fibras e ganhar uma notinha boa.

Nos últimos meses, a entidade vem tentando fazer com que seu modelo seja adotado, o que a Gerência Geral de Alimentos da Anvisa desconsiderou, com base no entendimento de que não se mostrou como melhor possibilidade.

A Abran, assim como a Patri, tem relações com algumas empresas. A entidade emite selos positivos para produtos, sob encomenda. E realiza anualmente um congresso com amplo patrocínio de corporações do setor, como Nestlé, Danone, Herbalife, além de uma série de fabricantes de medicamentos.

Mas, se a Abran diz não ter contratado os serviços da consultoria, em nome de quem Rui Nogueira falou quando foi à Anvisa?

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