Quatro especialistas entendem que fechamento do Consea coloca em risco conquistas históricas e expressam preocupação com pobres, crianças e indígenas
Relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) alertaram o Brasil de que as medidas adotadas no primeiro dia do governo de Jair Bolsonaro colocam em risco conquistas históricas no combate à fome e à pobreza. Em documento enviado à representação brasileira na ONU, eles criticam especialmente a Medida Provisória 870, que levou ao fechamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
“Expressamos preocupação ainda mais profunda com o impacto desproporcional que o fechamento do Consea ou a revisão [do funcionamento] poderia ter na situação de pessoas vivendo na pobreza, incluindo escolas infantis, povos indígenas, bem como pequenos agricultores e trabalhadores rurais”, dizem.
A carta, datada de 22 de fevereiro, é assinada por David Boyd, relator especial para os Direitos Humanos e o Meio Ambiente; Hilal Elver, relator especial para o Direito à Alimentação; Victoria Lucia Tauli-Corpuz, relatora especial para os Direitos dos Povos Indígenas; e Léo Heller, relator especial para o Direito à Água e ao Saneamento.
Os relatores lembram que o Consea teve um papel fundamental na elaboração de políticas públicas que levaram o Brasil a deixar, em 2014, o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Entre outras coisas, trabalhou na elaboração da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), de 2006, que define a estrutura pública voltada a essa temática.
Também o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos foram fundamentais para garantir a segurança alimentar de crianças de baixa renda e uma melhoria na situação dos agricultores familiares.
Na visão dos relatores, o fechamento do colegiado coloca em risco todo esse conjunto de políticas públicas. E fere o princípio constitucional de não retroagir em direitos conquistados – visão compartilhada pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, que pediu à Procuradoria Geral da República acionar o Supremo Tribunal Federal contra a medida de Bolsonaro.
Como quase tudo no governo Bolsonaro, a MP 870 é confusa e não deixa claro se o Consea acabou ou foi esvaziado de funções. O Ministério Público Federal questionou o Ministério da Cidadania sobre o que seria feito com as funções que cabem ao conselho, mas esse decidiu repassar o caso à Presidência da República.
Os relatores da ONU também cobram uma resposta. “Expressamos nossa preocupação de que o fechamento do Consea poderia ter um impacto negativo na obrigação de seu governo em respeitar, proteger e atender à realização do direito à alimentação adequada e a um abastecimento de água potável e saneamento, especialmente para pessoas vivendo na pobreza ou em situações vulneráveis, incluindo povos indígenas”, avaliam. “Os impressionantes resultados e avanços obtidos pelo Brasil na luta contra a fome, a extrema pobreza e elevada desigualdade social nas últimas décadas foram vastamente reconhecidos e saudados mundialmente, e vistos como um modelo inspirador por outros países.”
Para eles, o Consea foi um “ator-chave” desse sucesso ao permitir “a organizações da sociedade civil apresentar propostas baseadas diretamente no conhecimento da realidade da situação”. O conselho, criado por Itamar Franco e reinstalado no governo Lula, tinha minoria de integrantes do governo e era obrigatoriamente presidido por um membro da sociedade.
“O conselho consultivo criou uma oportunidade sem paralelos para o diálogo entre a sociedade civil e a Presidência, assegurando que políticas públicas estavam equilibradas e equitativamente refletiam os interesses dos grupos afetados.”
É, novamente, a visão que tem a procuradora Deborah Duprat. “A fome e a miséria têm pressa, não podem esperar que alguma mente engenhosa, por capricho, proponha algo em substituição àquilo que funcionava, mas que tem o selo político adversário.”
Organizações da sociedade civil depositam também no Congresso a esperança de conseguir recriar o Consea. Alguns parlamentares apresentaram emendas à MP 870 sugerindo a reinstalação do conselho. Na quarta-feira (27.2) foram realizados banquetaços em várias cidades cobrando a reversão da medida de Bolsonaro.