Levantamento da Oxfam aponta problemas nas principais fornecedoras das multinacionais de alimentos ultraprocessados
“O sistema alimentar atual não está funcionando bem para todo mundo. Milhões de mulheres e pequenos produtores de alimentos carecem de direitos garantidos às terras das quais dependem, o que os deixa vulneráveis ao desmatamento e à apropriação de terras por governos e investidores do setor privado para a expansão da produção de commodities agrícolas. As emissões de gases do efeito estufa e a mudança climática causam impactos mais intensos sobre os pequenos produtores de alimentos. (…) As mulheres produtoras não costumam ter acesso a empregos formais, mercados, terras ou crédito.”
Assim começa o relatório da ONG Oxfam sobre a situação da cadeia produtiva das principais marcas de alimentos ultraprocessados. A organização, que reúne um conjunto de 20 entidades da sociedade civil trabalhando em mais de 90 países, publicou nesta quinta-feira (7) a avaliação que fez dos compromissos sociais e ambientais assumidos por megacorporações do naipe de The Coca-Cola Company, Nestlé, Pepsico e Unilever perante seus consumidores e a comunidade internacional. O resultado está longe de ser satisfatório.
O documento traz as conclusões do monitoramento da cadeia produtiva dessas empresas e joga luz sobre as fornecedoras delas, também chamadas de traders. É neste elo da produção que estão os principais problemas, segundo o relatório. A Oxfam foi atrás de saber quais ações as empresas que vendem para as grandes marcas tomam para resolver conflitos de ordem social e ambiental em cinco temas: 1. mulher, 2. terra, 3. clima, 4. pequenos produtores e 5. transparência e responsabilidade.
Isso é, a organização questionou o que as companhias fazem nos seus processos de produção para: 1. mitigar as desigualdades de gênero; 2. solucionar disputas relacionadas ao direito à posse de terras; 3. aderir aos protocolos contra as mudanças climáticas; 4. fortalecer economicamente os pequenos produtores de alimentos; e 5. fiscalizar e elaborar procedimentos para atacar os problemas elencados.
Ao todo, o relatório avaliou sete multinacionais do agronegócio: Archer Daniels Midland (ADM), Barry Callebaut, Bunge, Cargill, Louis Dreyfus Company, Olam International e Wilmar International. Elas, apesar de seu tamanho, estão longe de respeitar direitos sociais e humanos para garantir a sustentabilidade de suas atividades econômicas. Juntas, geram mais de 290 bilhões de dólares em receitas por ano.
A publicação (disponível na íntegra) é uma sequência da campanha da Oxfam “Por trás das marcas”, que investigou as políticas corporativas e práticas de fornecimento das dez maiores empresas de bebidas e alimentos ultraprocessados do mundo e suas marcas. O foco, neste novo documento, é tornar conhecida a outra parte da história: quem as traders são e como vendem suas mercadorias.
No documento, a Oxfam estabeleceu uma escala de 0 a 100% para avaliar quais medidas essas corporações tomam para garantir que sua atividade econômica não lesasse e pudesse melhorar os cinco temas avaliados.
“O veredito: há muita margem para melhorias. (…) Mais de 90% das pontuações dessas empresas estão abaixo de 50%. O agronegócio tem responsabilidade e oportunidade de melhorar. (…) As pontuações baixas nos vários temas apontam para lacunas importantes nos compromissos das traders com políticas e planos de implementação”, afirma o relatório.
Em geral, há um problema maior que as empresas não resolvem em cada uma das cinco matérias avaliadas. No quesito mulher, as empresas falharam em ter políticas corporativas para enfrentar as barreiras de gênero impostas às agricultoras e trabalhadoras do setor de alimentos. No tema terra, o relatório mostra que o avanço da atividade econômica das corporações lesa, sem a devida contrapartida, os territórios de comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas e outros, mundo afora.
Já o assunto clima foi o único em que as corporações obtiveram uma pontuação melhor, segundo os critérios de avaliação. “Mas”, afirma a Oxfam, “em média, os resultados das empresas ainda são modestos. Com exceção de Olam e Barry Callebaut, nenhuma dessas traders do agronegócio estabeleceu metas de redução de emissões baseadas na ciência.”
O quesito pequenos produtores recebeu as piores notas. “Nenhuma das empresas avaliadas se comprometeu a melhorar a capacidade dos pequenos produtores de ter uma renda digna em suas cadeias de fornecimento de commodities agrícolas como um todo”, diz o relatório. Por fim, no tema transparência e responsabilidade “as traders avaliadas não demonstraram publicamente ter um forte compromisso com transparência, responsabilização e respeito pelos direitos humanos”.
Gustavo Ferroni, assessor de políticas e incidência da Oxfam, diz, em entrevista ao Joio, que a avaliação concentra esforços sobre as fornecedoras porque estas são, na maioria, empresas tão grandes quanto as marcas, mas muito menos conhecidas. “Elas não têm venda direta de produtos. Não são companhias que demandem marketing forte ou que o consumidor tenha algum tipo de relação afetiva com os seus produtos. Reagem muito menos às demandas dos consumidores.”
Trazer à tona os problemas relacionados a essas empresas pode ajudar, portanto, a influenciá-las a tomar mais medidas de responsabilidade social e ambiental. “Por não investirem na relação com o consumidor, as traders são mais impermeáveis. Algumas têm capital aberto, o que as torna mais sensíveis, mas outras não. O quanto você consegue fazer às vezes é limitado”, afirma Gustavo.
Para ele, é importante que as marcas monitorem a situação de suas fornecedoras e também cobrem por melhorias. “Você tem uma relação econômica de poder. É difícil de influenciar as traders, mesmo as marcas. Existe uma dificuldade. Mas o que a gente vê, e o relatório fala, é que as marcas precisam estar mais ativas com o papel de monitoramento das cadeias produtivas”, acrescenta o assessor da Oxfam.
A Organização das Nações Unidas (ONU) possui um documento que fixa quais compromissos as empresas devem ter para garantir o respeito aos direitos humanos. E muitas das companhias avaliadas são signatárias. Trata-se dos Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos (UNGPs, na sigla em inglês), que deixam clara qual a responsabilidade das corporações, incluídas aquelas do agronegócio. O monitoramento, com fiscalização ativa das marcas sobre o fornecimento, é um deles.
“Não há como uma grande empresa falar que não tem como monitorar a sua cadeia, isso é inaceitável. Não existe um mecanismo internacional que omita isso, todos os acordos falam nessa responsabilidade. Se você está numa cadeia, tem obrigação de fazer a diligência. Você tem que conhecer a sua cadeia e divulgar as suas informações”, declara Gustavo.
Questão sistêmica
No relatório, a Oxfam também observa que os problemas existentes na cadeia produtiva das marcas estão relacionados à concentração dos mercados. Vale lembrar: estamos falando de poucas marcas e fornecedoras, ou seja, apenas um punhado de empresas que controla uma gorda fatia da produção mundial de alimentos. “Cadeias de fornecimento curtas são uma alternativa complementar ao modelo de negócios agroalimentar”, diz a organização.
Essa modelo de produção elimina intermediários. Isso aumenta a fatia do produtor e reduz custos ao consumidor. Isso ainda torna a produção mais diversificada, com mais tipos alimentos, e ajuda a desenvolver comunidades agrícolas, criando empregos e desenvolvendo o local de produção.
“Quando a gente tem uma concentração muito grande de mercado, a gente tem um desequilíbrio dos atores. Quando tem concentração, quem controla uma parte vai esmagando as outras partes da cadeia. Você acaba levando a ponta da cadeia a situações complicadas. Tem um problema sistêmico. Quanto mais concentrado, mais você tem atores que se impõe sobre os outros. Isso não é desejável”, afirma Gustavo.
Mas, além de apontar os problemas, a Oxfam faz recomendações para que as fornecedoras e marcas possam melhorar os problemas que o relatório detectou. Situar o empoderamento das mulheres no centro das operações econômicas, respeitar os direitos à terra de povos tradicionais, reduzir os impactos climáticos das atividades econômicas, oferecer uma remuneração digna para agricultores e trabalhadores rurais e melhorar a transparência e o monitoramento da cadeia de fornecimento são algumas delas.