Promotor responsabiliza mães e pais e arquiva investigação contra a Danone

Decisão do MP do Distrito Federal vai na contramão de julgamentos recentes e de recomendação para que promotores atuem contra publicidade no ambiente escolar

O Ministério Público do Distrito Federal arquivou inquérito contra a Danone por publicidade promovida dentro de escolas. O promotor Paulo Roberto Binicheski diz não ter encontrado sinais de comunicação mercadológica abusiva direcionada a crianças ao analisar o material do projeto 1, 2, 3 Saúde!, que a empresa promoveu entre 2013 e 2017. A representação inicial foi movida pelo projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana.

Ao tomar a decisão, firmada em 20 de fevereiro e à qual o Joio teve acesso, o promotor adota a máxima de que cabe a mães e pais cuidar dos filhos – mesmo dentro da escola, quando mães e pais estão ausentes. Ele também mistura as linhas entre publicidade e informação.

“Ciente de que cabe aos pais ou ao responsável legal, notadamente, o mister de gerenciar a alimentação de seus filhos. Nada mais coerente que tenham a seu dispor o máximo de informação para que escolham aquilo que entendem mais saudável ao consumo, considerando o bem-estar social, físico e mental das crianças. Assim, não deve o Estado, de modo paternalista, sobrepor-se às obrigações primárias do núcleo familiar.”

O 1, 2, 3 Saúde! chegou a 300 mil crianças com materiais e apresentações de teatro. Em todos os momentos havia um reforço à importância de consumir lácteos, justamente o carro-chefe da Danone. O projeto prescrevia de maneira categórica o consumo de três porções desses produtos por dia, uma recomendação que não tem respaldo científico.

Para o promotor, o que há é uma preocupação em promover o consumo de cálcio pelas crianças. O cálcio está presente em vários e vários vegetais, mas os materiais do 1, 2, 3 Saúde! falavam sobre os lácteos.

“O fato de as crianças nas escolas fazerem redações utilizando a expressão ‘danone’ ou ‘danoninho’ não pode ser interpretada como uma decorrência de mensagens publicitárias feitas pela Requerida que induzem as crianças ao consumo de produtos da marca DANONE”, escreve o promotor.

“Explicando. É muito comum, as pessoas utilizarem a expressão danone em substituição ao produto iogurte, assim como ocorre com a lâmina de barbear e a marca Gilete, isso configura a metonímia e acontece em razão de estreita afinidade ou relação de sentido que, muitas vezes, existe entre a palavra e a marca.”

A decisão não apresenta, porém, fundamentos de que exista de fato essa confusão entre Danone e iogurte, como se fossem a mesma coisa. Nas prateleiras dos supermercados, há várias marcas e tipos diferentes de iogurte.

“A empresa informou que não havia referência aos produtos nas campanhas realizadas nas escolas, que à época utilizou benefícios da Lei Rouanet e que a referência dos lácteos visava ressaltar a importância do cálcio às pessoas”, ele prossegue.

A decisão cita expressamente reportagem de O Joio e O Trigo anexada aos autos. O texto, publicado por nós em 4 de abril de 2018, apresenta fotos e vídeos que comprovam como as crianças associavam o projeto à Danone, fazendo consumo dos produtos da empresa. Em particular, ficava em evidência o Danoninho, que, além da promessa de cálcio, ferro, fósforo e vitamina A, carrega seis gramas de açúcar por potinho.

Um material de balanço do próprio projeto registrava um aumento expressivo do consumo de iogurte entre crianças e famílias participantes.

Eis o que nos disse uma das responsáveis pelo material pedagógico: “No segundo ano de vida do projeto, a Danone fez uma alteração das ilustrações. Colocaram ilustrações de potinhos de Danone. A Danone nos chamou e pediu que fizéssemos atividades que significassem em algum momento a distribuição de iogurtes na escola. Foi então que eu saí do projeto e pedi que meu nome fosse retirado dos materiais, inclusive. Não concordo em absoluto.”

Na decisão, Binicheski cita que também o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) definiu pelo arquivamento da denúncia. O Conar, mantido pelas próprias empresas, é famoso por raramente puni-las e por adotar o conceito de que a regulação da publicidade seria um cerceamento à liberdade de expressão.

O documento do Ministério Público menciona especificamente o trecho em que o Conar advoga que o 1, 2,3 Saúde! promoveu o “reaproveitamento dos potinhos e garrafinhas de Danoninho, estimulando, inclusive, a criatividade da criança. Voltada para pais e filhos, a campanha estimula a harmonia familiar e a convivência entre amigos, não havendo em sua extensão qualquer apelo imperativo às crianças, estimulando o consumo excessivo”.

O julgamento do Conar, porém, ateve-se às peças publicitárias veiculadas pela Danone, sem qualquer menção ao ambiente escolar. O entendimento do conselho é de que escolas não estão em sua alçada.

Na contramão

A decisão de Binicheski vai na contramão de manifestações recentes de colegas e de juízes. Em outubro do ano passado, o Conselho Nacional do Ministério Público aprovou resolução na qual pede aos promotores que atuem no combate à publicidade direcionada a crianças.

A Recomendação 67 trata de obesidade infantil, com especial atenção à comunicação mercadológica, dizendo que é papel do Ministério Público “evitar” a publicidade abusiva “inclusive, mas não exclusivamente, em ambientes escolares”. Além disso, deve ser preocupação do órgão a promoção de ambientes escolares saudáveis, “desenvolvendo ações que envolvam a proibição da publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis, desestímulo ou proibição de vendas ou ofertas de produtos industrializados ou ultraprocessados em cantinas escolares”.

O arquivamento vai também no caminho contrário de decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça, que começou a assentar a ideia de que qualquer publicidade voltada a crianças é abusiva, visto que elas não têm discernimento quanto à motivação dessas estratégias.

Crianças menores simplesmente não diferem comunicação mercadológica de informação. E crianças mais velhas fazem essa diferenciação, mas não captam as razões para a existência de uma peça publicitária, motivo pelo qual a recomendação é de que não existam ações de propaganda voltadas a menores de doze anos.

Também há cada vez mais decisões favoráveis à proteção do ambiente escolar. No ano passado, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça aplicou multa de R$ 6 milhões contra o McDonald’s pelos shows do palhaço Ronald McDonald realizados em colégios. Pelo mesmo motivo, a Justiça de São Paulo condenou a rede de lanchonetes em outubro de 2018.

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