As vidas de Heloísa Pompeu, estudante da Universidade de São Paulo, e Juciara Gomes, vendedora em uma loja de acessórios no Metrô, se conectam no subsolo da maior cidade brasileira. Nas estações, as duas, que não se conhecem e pouco têm em comum, comem mal. A primeira é vítima confessa de uma compulsão alimentar. A outra, da insalubridade.
Na volta para casa, Heloísa compra com frequência os mini pães de queijo vendidos aos montes dentro das estações – e que raramente têm queijo na composição. Mesmo quando tem uma fruta na bolsa, cai na tentação. “É ruim, mas é viciante”, reconhece.
A estudante desconta na comida a ansiedade causada pela rotina: ela acorda bem cedo todos os dias para ir de casa, na Vila Matilde, zona leste da capital, à USP, na zona oeste, onde faz graduação em letras. Para evitar a lotação dos trens, precisa sair antes das 6h.
Na volta, faz o caminho inverso pelas linhas 4-amarela e 3-vermelha do Metrô, onde não consegue desviar do cheiro intenso e artificial dos pães de queijo.
Juciara passa nove horas de seu dia dentro da estação São Bento, na linha 1-azul, onde vende colares, anéis e brincos em um pequeno quiosque –que parece cada dia menor conforme a barriga dela cresce. Ela está grávida do segundo filho, que deve nascer em setembro. De onde trabalha, a vendedora consegue ver a porta para o refeitório dos metroviários. Almoçou lá algumas vezes “de penetra”, até ser notada e proibida de entrar.
“Eles têm um refeitório maravilhoso, com uma televisão de plasma, mesa, geladeira, micro-ondas, água, café, leite e coisas para temperar salada”, descreve.
Sem nada disso, Juciara come a marmita dentro do quiosque: “Aqui ó, sentada nessa lixeira”, diz, apontando para o chão. Uma colega de trabalho explica que nem sempre a comida resiste à falta de refrigeração. “Tenho medo de abrir a marmita e ver que está estragada”, comenta. “Já aconteceu várias vezes.”
As condições degradantes de trabalho às quais Juciara e centenas de outras pessoas são submetidas passam despercebidas pelos 3,7 milhões de passageiros que transitam pelas estações todos os dias, segundo o relatório integrado de 2018 do Metrô de São Paulo.
Os dois lados da mesma história se encontram em meio a lojas, quiosques e máquinas de venda que têm de tudo: roupas, acessórios, chips de celular, remédios. E muita comida.
Uma reportagem da Folha de S. Paulo apontou que o metrô já é o quinto maior centro de compras da capital paulista, ficando à frente dos shoppings Eldorado e Iguatemi. No total, são 374 lojas espalhadas por estações e terminais de ônibus vinculados à Companhia do Metropolitano de São Paulo, administradora das linhas públicas, que arrecadou R$ 68 milhões com aluguéis em 2018.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, a reportagem foi informada de que, no mesmo período, o Metrô recebeu R$ 31,3 milhões alugando pontos comerciais para venda de alimentos, o que representa apenas 1,54% do arrecadado com a cobrança de tarifas de viagem (R$ 2,02 bilhões).
Apesar da grande oferta de comida nas estações, a qualidade dos alimentos vendidos é baixíssima.
Os ultraprocessados são maioria: hambúrgueres, cachorros-quentes, salgados, refrigerantes, salgadinhos, bolachas, balas e chocolates.
De forma geral, essas são as opções disponíveis para quem decide, ou precisa, se alimentar no metrô – ricas em sal, açúcar, gordura e aditivos, como corantes e aromatizantes. As alternativas saudáveis praticamente inexistem; e, quando existem, estão escondidas entre as embalagens coloridas e apelativas dos alimentos industrializados.
Pântanos alimentares
A predominância dos ultraprocessados foi constatada no ano passado pela nutricionista Jessica Vaz Franco, que analisou na pesquisa de mestrado a comercialização de alimentos nas estações do Metrô de São Paulo. Com base nas recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira e na classificação NOVA, Jessica auditou 66 estabelecimentos em 19 estações das linhas azul, verde e vermelha.
O objetivo da pesquisadora era classificar o ambiente alimentar das estações e compreender tudo aquilo que de alguma forma influencia o quê, como, quanto, onde e por que se come. Segundo Jessica, as estações podem ser classificadas como “pântanos alimentares”, ou seja, espaços nos quais há uma grande oferta de alimentos, mas predominam os de baixa qualidade nutricional. Com isso, o ambiente se torna “obesogênico”, porque incentiva os usuários a consumirem alimentos calóricos em grandes quantidades.
Estudos sobre como o ambiente influencia a alimentação recebem cada vez mais atenção da comunidade científica, que tenta entender por que a obesidade se transformou num dos maiores problemas de saúde pública do mundo – e como é possível colocar um freio na tendência de aumento.
Juntos, o Metrô e as concessionárias ViaQuatro e ViaMobilidade —responsáveis pelas linhas 4-amarela e 5-lilás, respectivamente— são responsáveis por aproximadamente 12% das viagens de transporte público na região metropolitana de São Paulo, segundo a Pesquisa Origem e Destino de 2017.
Camila Duarte é uma das milhões de pessoas que usam o metrô diariamente. Ela é vendedora, usa o transporte para visitar clientes e, sem tempo para deixar a estação e comer, comprava cachorro-quente e coxinha com frequência nas estações. O corpo e o bolso arcaram com as consequências.
“Acabei indo a uma nutricionista. Agora, trago minhas marmitas de casa, com coisas mais saudáveis”, explica. No dia em que conversou com a reportagem, Camila estava comendo sentada no chão da estação Luz, na linha azul. O metrô, apesar da oferta de alimentos, continua a ser um lugar de passagem. Por isso, não há espaços pensados para quem, por diferentes motivos, precisa parar.
Ruim para quem passa, pior para quem fica
Assim como Juciara, milhares de pessoas fazem dos trens que cruzam a cidade o ganha-pão. Os impactos do ambiente alimentar do metrô ficam ainda mais evidentes para esse grupo do que para os usuários. Relatos coletados de mais de 70 trabalhadores —entre metroviários, funcionários de lojas e de quiosques, empregados terceirizados da limpeza, seguranças e jovens aprendizes— mostram como eles se relacionam com o ambiente e o que pensam sobre ele.
O grupo não é homogêneo. Os funcionários diretos e terceirizados do Metrô e das concessionárias têm acesso, em todas as estações, a pelo menos um refeitório, banheiro exclusivo e água potável. Empregados de lojas e quiosques ficam excluídos. São proibidos de entrar nos refeitórios e só podem usar banheiros e bebedouros públicos, quando existem.
Os relatos são muito parecidos, quase repetitivos: a maioria dos trabalhadores leva uma marmita de casa, mas não tem geladeira para conservar nem micro-ondas para aquecer; comem dentro do quiosque, do lado de fora ou em outro canto da estação; sentados em um banco, no chão ou em pé mesmo. Alguns pedem para colegas de quiosques que têm micro-ondas para aquecer a comida, outros comem fria.
Por estar grávida, Juciara às vezes é autorizada a usar o bebedouro dos funcionários do metrô. “Quando os rapazes estão de bom humor, eles me deixam encher uma garrafinha ali dentro”, conta. “Mas só eu, porque tô grávida. As outras meninas não.” Com um sorriso amarelo, uma das colegas completa: “Acho que eles ficam com dó.” Quando o pedido não é atendido pelos funcionários da estação, Juciara é obrigada a subir um lance de escadas e a passar por duas catracas antes de chegar ao bebedouro público.
Thaís*, funcionária de uma loja de acessórios da linha amarela, sofre ainda mais. Ela costuma levar de casa uma garrafinha de água e, quando precisa, compra outra na estação em que trabalha. Mais de uma vez, entretanto, a vendedora se viu sem dinheiro.
Pedir para os seguranças da ViaQuatro, segundo ela, é perda de tempo: dizem que não podem ajudá-la. Sem dinheiro e opção, Thaís conta que já encheu diversas vezes a garrafinha na pia do banheiro público da estação.
Se conseguir água é um desafio para esses trabalhadores, comer é uma luta diária. Proibidos pelo regulamento interno de fazer as refeições dentro da própria loja, eles deveriam comer fora das estações.
Como a maioria recebe salários baixos e não dispõe de benefícios como vale-alimentação e vale-refeição, essa opção é inviável. Thaís só pode entrar e sair da estação em que trabalha: se quiser embarcar no trem e procurar opções mais baratas em outras regiões, tem de pagar a passagem.
“É o mínimo do mínimo”, disse uma vendedora da linha vermelha sobre o acesso ao refeitório da estação. “Se eles [metroviários] trabalham aqui dentro e têm esse direito, por que nós não temos?”
Longe dali, na zona oeste da capital, uma vendedora da linha amarela sucumbiu à ausência de condições e deixou de levar marmita. “Eu gosto de comida quente”, explicou. A solução, para ela, é gastar uma fatia maior do salário para comer um lanche na estação ou pedir um marmitex em um dos restaurantes da região.
Ainda que levem marmita, os funcionários das lojas continuam expostos aos alimentos vendidos nas estações. Poucos conseguem passar o dia todo sem consumir algo além do que levam de casa. “Antigamente aqui só tinha coxinha, coxinha e coxinha… A gente passou mal de tanto comer coxinha”, protesta uma funcionária da linha amarela.
Na estação Tatuapé, da Linha Vermelha, encontramos uma situação representativa. Ligados às estações do Metrô e do trem existem dois shoppings. Como de praxe, os funcionários de lojas e quiosques não podem acessar os recursos exclusivos dos metroviários, mas neste caso específico sob a justificativa de que têm como usar os banheiros e bebedouros dos shoppings. Mas tem um detalhe: o primeiro turno de trabalho no Metrô começa às 6h da manhã; os shoppings só abrem as portas às 10h. Nesse hiato, nada de água ou banheiro para os funcionários.
No regulamento interno, o Metrô deixa claro que é responsabilidade das empresas autorizadas “cumprir legislações e requisitos de segurança e saúde do trabalho de seus empregados”, o que inclui as normas regulamentadoras (NRs) criadas em 1978 pelo então Ministério do Trabalho e Emprego para garantir condições dignas aos trabalhadores.
As regras sobre condições sanitárias e de conforto estão descritas na NR 24. De acordo com o documento, aos funcionários deve ser oferecido um local para refeições que atenda “aos requisitos de limpeza, arejamento, iluminação e fornecimento de água potável”. Caso o trabalhador decida trazer de casa sua própria comida, “a empresa deve garantir condições de conservação e higiene adequadas e os meios para o aquecimento em local próximo ao destinado às refeições”.
A NR 24 também descreve as responsabilidades das empresas em relação à disponibilidade de água para os empregados: “Em todos os locais de trabalho deverá ser fornecida aos trabalhadores água potável, em condições higiênicas, sendo proibido o uso de recipientes coletivos”. A norma indica que devem ser oferecidos pelo menos 250 ml de água por hora de trabalho para cada funcionário, ou seja, pelo menos dois litros de água para o turno usual de oito horas.
Para a advogada trabalhista Mariana Serrano, a indicação de que as empresas autorizadas são obrigadas a cumprir a legislação trabalhista não isenta de responsabilidade o Metrô e as concessionárias. Ela entende que as organizações podem ser culpabilizadas “à medida que não fiscalizam as condições, permitindo trabalho em situações desumanas, e também por terem escolhido empresas despreparadas para a prestação do serviço”.
A advogada ressalta ainda que o fato de alguns trabalhadores não terem acesso aos refeitórios das estações é um atentado à dignidade. “É uma conduta discriminatória”, explica. “Eles trabalham no mesmo local, o refeitório está ali, não existe motivo razoável para que uns possam usar e outros não.”
A reportagem enviou questionamentos ao Metrô e à ViaQuatro sobre a ausência de bebedouros públicos em diversas estações e a proibição do uso das instalações pelos funcionários de lojas e quiosques. O Metrô decidiu não se manifestar. A ViaQuatro informou que “aplica normas e regulamentos específicos para viabilizar sua estratégia de comercialização e segue as práticas de mercado”.
Melhor, mas nem tanto
Apesar de sujeitos a melhores condições de trabalho, os empregados diretos e terceirizados do Metrô enfrentam as próprias dificuldades. Uma funcionária da limpeza da linha amarela disse que leva marmita sempre que pode, mas, quando não consegue, se vê obrigada a comer nas lojas de dentro da estação. Ela até gosta da comida, mas sabe que não é saudável: “No começo eu comia bastante, mas as outras meninas começaram a falar pra eu diminuir porque a saúde da gente fica bem debilitada, né?”.
Um segurança da mesma linha contou que tem o hábito de levar uma marmita de casa. Quando o tempo está apertando, substitui o almoço por uma “bobagem” dos quiosques. A realidade é semelhante para os seguranças das linhas públicas.
Luiz*, metroviário com mais de três décadas de casa, revelou que também não consome nada nos quiosques. “É um quebra-galho, não uma alimentação saudável.”
A questão mais sensível para os metroviários, contudo, não é a comida, mas o tempo necessário para fazer as refeições de forma decente. “Aqui a gente não tem horário de almoço, precisamos estar sempre à disposição”, conta Luiz. “Quem tem uma hora é um pessoal que entrou com um processo [contra o metrô]. A empresa mesmo não dá, isso é só via judicial.”
A reportagem identificou três regimes distintos de pausa para refeições nos relatos dos funcionários diretos do Metrô. Alguns não têm tempo fixo para alimentação, mas se organizam informalmente para assumir os postos de trabalho dos colegas que se ausentam para comer. Outro grupo relatou ter 30 minutos para fazer as refeições em decorrência de um acordo firmado entre o sindicato e o Metrô. Por fim, alguns contaram que têm direito a um intervalo de uma hora graças a uma ação judicial e, por esse motivo, cumprem uma jornada diária de nove horas.
Procurado pela reportagem, Rodrigo Kobori, secretário de Assuntos Jurídicos do Sindicato dos Metroviários, disse que existem somente dois grupos de metroviários: um que cumpre 30 minutos de intervalo para refeição e outro que cumpre uma hora, por determinação judicial.
A Companhia do Metropolitano de São Paulo não tem um bom histórico na Justiça do Trabalho. Em junho deste ano, a autarquia passou a ocupar a 65ª posição no “Ranking das Partes” do Tribunal Superior do Trabalho, somando 559 processos. O índice registra as organizações com mais ações na última instância. Se forem consideradas somente as empresas de transporte, o Metrô sobe para a quarta posição.
Por meio da assessoria de imprensa, o Ministério Público do Trabalho em São Paulo informou que não recebeu até o momento nenhuma denúncia sobre os problemas apontados pela reportagem. O órgão reiterou ainda que apura todas as questões relacionadas ao meio ambiente de trabalho e ao cumprimento das normas regulamentadoras.
Comer direito é um direito
Para Paulo César Castro, professor do Instituto de Nutrição da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a disponibilidade de alimentos não saudáveis em um equipamento público, como o Metrô, revela uma omissão do Estado em relação ao direito humano à alimentação adequada. “Permitir uma ação da iniciativa privada no setor da alimentação que não converge com políticas públicas mostra o quanto o estado de São Paulo desconhece o que é alimentação adequada e saudável e está levando em consideração apenas o ganho financeiro, desconsiderando todo o custo em saúde que essas iniciativas acabam provocando para a população”.
O direito à alimentação adequada está garantido no artigo 6º da Constituição Federal desde 2010. Antes disso, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), sancionada em 2006, tornou a alimentação adequada uma política de Estado. Paulo César aponta que o metrô, como um equipamento gerido pelo governo paulista, deveria cumprir o que é dito na Losan: o poder público é obrigado a adotar políticas para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
Procurado pela reportagem, o Metrô afirmou que “respeita todas as leis e normas que regem a atividade de comércio nas estações, tanto no que se refere à alimentação como aos demais produtos oferecidos nas lojas e observa os princípios aplicáveis da Losan”. Questionada, a Companhia não detalhou quais são os “princípios aplicáveis” que observa. Por meio da assessoria de imprensa, o Metrô disse ainda que “60% dos pontos comerciais de alimentos dispõem de opções naturais ou integrais no mix de produtos oferecidos”, sem explicar o que significam essas opções.
Os dados são diferentes dos encontrados por Jessica durante a pesquisa para o mestrado. Entre os alimentos classificados como saudáveis, apenas a água mineral estava presente na maioria dos pontos comerciais (63,6%), seguida por hortaliças cruas (7,6%), sucos e frutas (3% cada um).
As informações coletadas por Jessica são alarmantes, principalmente em uma cidade como São Paulo, que sofre com problemas causados, entre outros motivos, pela má alimentação. De acordo com a pesquisa Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico) de 2018, do Ministério da Saúde, 56,6% dos adultos da capital paulista estão acima do peso. Dez anos atrás, esse índice era de 45,6%.
Lenita Borba, coordenadora da Comissão de Políticas Públicas do Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região, que abrange São Paulo e Mato Grosso do Sul, diz que o poder público poderia agir no sistema de transporte de maneira semelhante à que atua em escolas: “Em ambientes escolares existe uma legislação que obriga ao fornecimento de alimentos saudáveis e com composição balanceada”, afirma. “Qualquer ambiente público deve ter esse mesmo exemplo e objetivo.”
Comendo com os olhos
Além da exposição a uma infinidade de quiosques com alimentos não saudáveis, os usuários convivem com muita publicidade de comida ultraprocessada. Para fazer a transferência na estação da Luz entre as linhas Azul e Amarela, por exemplo, um passageiro precisa atravessar ambientes com paredes adesivadas, banners e letreiros luminosos que anunciam, entre outras coisas, os novos produtos da indústria de alimentos, as melhores promoções dos restaurantes de fast food e as novas embalagens de refrigerantes. Nem mesmo dentro dos trens os passageiros se livram dos anúncios, colados nas paredes e projetados em TVs distribuídas pelos vagões.
Na Inglaterra, que convive com uma taxa de obesidade de 29% entre a população adulta e de 20% entre as crianças, segundo dados do Departamento Público de Saúde do país, a TfL —companhia responsável pelos transportes públicos de Londres— decidiu dar um passo no combate à obesidade ao proibir a publicidade de junk foods.
A mudança foi feita em fevereiro deste ano, após uma consulta pública em que 82% dos entrevistados apoiaram a medida. Foram banidas publicidades de bebidas açucaradas (como refrigerantes e sucos industrializados), hambúrgueres, chocolates e salgadinhos.
A empresa justificou a decisão com o seguinte comunicado: “Com 30 milhões de viagens diárias pela rede da TfL, nossos espaços de publicidade oferecem uma oportunidade única de promover a alimentação adequada e um estilo de vida saudável para crianças e suas respectivas famílias”.
Londres não foi a primeira cidade da Europa a adotar uma medida desse tipo. Em Amsterdam, na Holanda, publicidades direcionadas a crianças promovendo alimentos não saudáveis foram banidas do metrô em 2018. Empresas que produzem alimentos prejudiciais à saúde também foram proibidas de anunciar em eventos esportivos promovidos ou subsidiados pelo governo.
Em São Paulo, a operação da publicidade nas estações de metrô é dividida pelas empresas JCDecaux e Eletromidia. Desde 2017, quando ganhou a concessão, a JCDecaux opera em trens e estações das linhas públicas do Metrô, e atinge 6,8 milhões de passageiros diariamente com as peças publicitárias que veicula, segundo estimativas de Andrea Salinas, diretora de Marketing e Inovação da empresa no Brasil. A Eletromidia é responsável pela TV Minuto, com 4.512 telas espalhadas por estações e trens. Além disso, opera os espaços publicitários das linhas Amarela e Lilás, concedidas à iniciativa privada.
Questionada sobre a influência do Metrô na publicidade veiculada nas estações, Andrea afirmou apenas que tanto a Companhia quanto a empresa “se preocupam com o que será exibido diariamente no caminho dos paulistanos”. Alexandre Guerrero, sócio e vice-presidente comercial da Eletromidia, explicou que o Metrô não interfere nos anúncios, “desde que não tenham apelos sexuais, policiais, políticos ou religiosos”.
Em reportagem publicada em abril de 2019 no Meio&Mensagem, André Cais, diretor comercial de Metrô da JCDecaux no Brasil, elencou os motivos pelos quais anunciar nos trens e nas estações é tão vantajoso. Segundo ele, como 60% dos usuários ficam mais de duas horas dentro do metrô, é fácil “estabelecer uma relação mais próxima com essa audiência”. André disse ainda que o ambiente é controlado, fazendo com que as pessoas fiquem mais “atentas” e “dispostas a interagir”.
Paulo César critica a falta de legislação a respeito de publicidades de alimentos ultraprocessados e afirma que, por conta disso, há uma “briga desigual” com alimentos saudáveis, que não são divulgados da mesma forma. O prejuízo da omissão, segundo o nutricionista, é compartilhado: de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto McKinsey, problemas de saúde relacionados à obesidade custaram cerca de 2,4% do PIB – R$ 110 bilhões – ao Brasil em 2014. O valor representa 103% do orçamento do Ministério da Saúde naquele ano.
A longo prazo, esse cenário pode ter um impacto econômico ainda maior. Em um relatório divulgado em 2017, a World Obesity Federation estimou que, em 2025, o Brasil gastará US$ 34 bilhões (aproximadamente R$ 130 bilhões) com problemas ligados ao excesso de peso.
Como chegamos até aqui?
O comércio de alimentos no Metrô nem sempre foi assim. Quando as duas primeiras linhas (Azul e Vermelha) foram inauguradas, ainda na década de 1970, a atuação da empresa se restringia ao transporte de passageiros. Não encontramos referências à venda de alimentos nas estações em nenhum dos documentos da época analisados. Os metroviários aposentados que foram entrevistados tampouco se recordaram de atividades do tipo.
A primeira e mais marcante iniciativa de comércio de alimentos nas estações do Metrô foi criada em 1993 pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. O projeto “Estação Economia” tinha o intuito de aproximar produtores e consumidores da região metropolitana da capital. Para isso, permitia que produtores locais de hortifrutigranjeiros negociassem produtos em espaços de grande circulação de pessoas por preços menores do que os praticados pelo mercado.
As “feirinhas” eram montadas fora das estações, nas áreas não pagas. Ali os produtores vendiam frutas, hortaliças, laticínios, ovos, alguns cortes de carne e mel. O projeto parecia ser um sucesso, mas foi cancelado em 2003, dez anos depois da criação. Um metroviário com 22 anos de casa disse lembrar do “Estação Economia” quando ainda era só um passageiro: “Era um programa legal, uma das boas iniciativas do Metrô… Não sei por que acabou”. A Secretaria de Agricultura e Abastecimento também parece não saber, mas disse à reportagem que não comentaria, pelo fato de o projeto ter sido encerrado por outra gestão.
Os únicos registros oficiais encontrados pela reportagem estão nos relatórios anuais de 1999 a 2003 da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Os documentos apontam a quantidade de alimentos que foi vendida em cada um dos cinco anos. Fica nítido o definhamento gradual do projeto, que comercializou mais de 10 toneladas de alimentos em 1999 e apenas 2,2 toneladas em 2003, antes de ser definitivamente encerrado.
Os relatórios indicam que a diminuição das vendas ocorreu por conta de “alterações nas estruturas de comercialização, que permitiram aos consumidores outras alternativas de abastecimento”. Vale ressaltar também que, em 2003, as feirinhas do projeto deixaram de acontecer nas estações do Metrô. A mudança acarretou uma queda de mais de 50% nas vendas e o sepultamento do projeto.
Em uma entrevista concedida em 2017 à pesquisadora Jessica Vaz Franco, o então chefe do Departamento de Negócios da Companhia do Metropolitano deu a entender que o atual modelo de comércio se originou no “Estação Economia”. Segundo ele, o projeto “foi derivando, derivando, até que [o Metrô] passou a autorizar a comercialização de alimentos preparados dentro das estações”.
Como vender no Metrô?
Hoje, quem quer abrir um comércio no Metrô pode seguir dois caminhos: solicitar à Companhia uma Carta de Autorização de Uso (CAU) —destinada a operações de curto prazo, entre 30 dias e dois anos— ou participar de uma licitação via pregão eletrônico para disputar o direito de usar um espaço por um período mais longo, que varia de cinco a dez anos.
Para conseguir uma CAU é necessário entrar em contato com o Metrô por e-mail, demonstrar interesse por uma das áreas disponíveis para exploração listadas no site da Companhia e descrever quais produtos serão vendidos. Como disse o então chefe do Departamento de Negócios do Metrô em entrevista a Jessica, se houver mais de uma empresa interessada pelo espaço, o desempate é feito pela ordem de chegada dos e-mails. “O sistema não é infalível, não é o melhor dos mundos”, reconheceu. Segundo ele, respeitar a ordem de chegada dos e-mails é uma forma de o processo ser “o mais impessoal possível”.
Fechado o contrato, a empresa autorizada deve pagar um aluguel mensal fixo ao Metrô. O valor varia de acordo com o tipo de espaço —loja, quiosque ou estande— e o local escolhido. Quanto maior o fluxo de passageiros da estação, maior o preço. O aluguel de um quiosque de 4m² na estação Parada Inglesa, por exemplo, custa mensalmente R$3.108,00. Já o de um quiosque idêntico na estação Ana Rosa é quase 70% mais caro: R$5.246,40.
As licitações via pregão eletrônico, por outro lado, funcionam como um leilão: vence quem oferecer a maior quantia. O preço mínimo para o início dos lances, entretanto, é igual ao estipulado para a CAU do mesmo espaço. Como geralmente há concorrência e diversos lances são dados, o valor da licitação costuma ser superior ao da CAU. Por conta dessa diferença quase inevitável de preços, o sistema de licitações costuma ser desvantajoso para as empresas.
Algumas delas, como confessa o próprio chefe de Negócios, encontraram meios de burlar as regras: “Tinha gente que estava por CAU, apesar de [o prazo] ser por um ano, tava lá há seis anos, sete anos… E ia renovando.” Ele contou ainda que foi orientado pela Companhia a dar preferência às licitações, porque a CAU estava sendo mal utilizada. Ressaltando que o Metrô estava tomando providências para reverter o quadro, o chefe de Negócios afirmou que já havia realizado, somente em 2017, licitações para 106 pontos comerciais.
Pedimos, por meio da Lei de Acesso à Informação, uma confirmação do número de contratos firmados em cada um dos regimes nos anos de 2017 e 2018. Os dados enviados pela Companhia apontam que, em 2017, foram fechados 66 contratos por meio de licitação e 1006 por CAU. Em 2018, apenas um contrato foi firmado por licitação e 1019 por CAU.
Mesmo que as licitações tenham duração maior que as Cartas de Autorização – e portanto não sejam renovadas anualmente – o Metrô não parece estar de fato tentando regularizar a situação do comércio nas estações. Na página de “Negócios e Oportunidades” do site da Companhia, por exemplo, há um oferecimento muito maior de contratos de curto prazo e pouquíssimos editais de licitação.
Este ano, o regulamento interno que dispõe sobre o comércio nas estações e administra a concessão de autorizações de uso foi alterado: até o ano passado, o período máximo de permanência das empresas era de um ano; agora, é de dois anos. Ao que tudo indica, essa é uma medida de incentivo aos contratos por CAU.
Qual é o caminho?
Paulo César Castro não acredita que a coexistência entre alimentos saudáveis e não saudáveis nas estações resolveria o problema do ambiente alimentar. O pesquisador defende que seria melhor banir a venda de comida do que manter a situação como está.
Em sua tese, Jessica Vaz Franco também defende o poder regulatório do Estado “em torno do interesse e do bem público”, que poderia, por exemplo, limitar “estratégias publicitárias utilizadas pela indústria de alimentos” – como acontece em Londres e Amsterdam. A pesquisadora afirma ainda que o Metrô precisa entender que comidas saudáveis podem ser práticas: “Comer uma salada ou abrir um pote com frutas também pode ser fast“, diz, em referência aos fast-foods.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos trabalhadores.