Belo Monte. Divulgação Norte Energia

Precisamos parar de fazer apologia ao desenvolvimento

A ciência da nutrição evoluiu notavelmente, mas a conclusão sobre o que constitui uma dieta saudável permanece a mesma desde que o mundo é mundo*

Há uma ofensiva em curso que aproveita o obscurantismo reinante para tachar de obscurantistas aqueles que em verdade querem evitar que o pior aconteça. Essa estratégia confunde propositalmente correntes que negam a ciência com correntes que reagem a estratégias corporativas que minam a saúde pública. O que essas últimas fazem é justamente utilizar conhecimentos científicos para fundamentar críticas e a necessidade de reações políticas e sociais. 

O movimento antivacina tem motivações e lógicas totalmente diferentes dos grupos que cobram a regulação da venda e da publicidade de alimentos ultraprocessados, ou daqueles que exigem investigações sobre os efeitos do uso de antibióticos em larga escala em humanos e animais. 

Pode até haver razões de fundo em comum. Há uma descrença em relação a corporações e ao Estado. Há uma desesperança com o futuro do mundo. Porém, daí por diante, colocar a todos no mesmo balaio é ótimo para ridicularizar. É perfeito para as forças econômicas que desejam ocultar os reais problemas de nossos tempos, mas é ruim para o debate público. E péssimo para um planeta que demanda reações urgentes.

Um texto publicado no Nexo em 12 de fevereiro, sob o título “Precisamos parar de fazer apologia ao natureba”, condensa essa linha de raciocínio. No dizer da autora: 

“Somos submetidos constantemente a mensagens que sugerem que tudo que é derivado da natureza é bom para a nossa saúde. É uma presunção incorreta, pois não há nenhuma correlação entre a origem natural ou sintética de uma molécula e sua capacidade de ser perigosa ou benéfica para nós, humanos. De fato, eu prefiro evitar várias coisas completamente naturais, como ser picada por uma cobra, abrigar vermes parasitas nos meus intestinos ou pegar viroses epidêmicas (…) A apologia ao ‘natureba’ não se restringe às farmácias e também invadiu nossos supermercados. Neles, encontramos enorme quantidade de produtos etiquetados como ‘orgânicos’, ou produzidos sem uso de fertilizantes e pesticidas ‘artificiais’. O entendimento geral é que moléculas não naturais usadas para produzir nossa comida são ruins, enquanto o que vem diretamente da natureza nos faz bem.”

Um leitor incauto poderia pensar que há uma epidemia de naturebismo no Brasil, por sua vez causadora de doenças, tragédias, problemas. A era industrial acabou há alguns anos. Agora, já se vão décadas, na verdade, em que o financismo passou a corresponder à proporção predominante do capital em circulação no mundo — no Brasil, a indústria de transformação responde por 11% do Produto Interno Bruto, contra 21,4% no começo dos anos 1970 (esses dados são ciência). 

Ainda assim, o industrialismo deixou de presente ao financismo a coluna vertebral: a apologia ao desenvolvimento. A ilusão de progresso infinito arrasta as correntes que fazem funcionar o motor desse sistema, sob o mote de que a humanidade está fadada a uma constante evolução. Importante deixar claro que não se trata de ser contra a possibilidade de progredir, mas de criticar um conceito de desenvolvimento que tenta rotular como atrasado ou primitivo tudo aquilo que não se encaixa no status quo. Esse desenvolvimento tem como pilar uma ciência arrogante, capaz de desconsiderar milênios de conhecimentos acumulados. 

A crença de que essa vertente da ciência poderia substituir tudo o que sabemos em relação ao cultivo e ao preparo de alimentos nos levou a um sistema alimentar desprovido de sentido, no qual a produção causa danos ambientais assombrosos e o consumo leva a problemas de saúde que estão entre as maiores causas de morte de nossos tempos. Se a ciência tivesse buscado entender e aprimorar o conhecimento acumulado, num exercício básico de humildade, talvez vivêssemos uma situação diferente. 

Três em cada quatro mortes no Brasil são causadas por doenças crônicas não transmissíveis, segundo o Ministério da Saúde. Apenas para mencionar mais um pouco de ciência. Câncer, hipertensão, diabetes e companhia estão associados a tabaco, alimentação, álcool e sedentarismo.

Em nome do desenvolvimento, diz o conceito dominante, devemos abrir mão de bem-estar, da água, das florestas. Devemos negar o conhecimento que acumulamos ao longo do maior e melhor experimento realizado pela espécie humana: a evolução. É ela que nos ensinou que picadas de cobras são da natureza, mas não são boas. Nem vermes. Porém, alega-se, devemos aceitar viver em cidades insalubres porque isso é a modernidade. O esgotamento dessa promessa — e a desilusão dela emanada — é um dos motivos que levaram à emergência de figuras políticas como Jair Bolsonaro. 

Várias áreas da ciência têm ótimas ferramentas à mão para entender e explicar esse desespero. Do mesmo modo, a ciência pode estudar por que certos segmentos sociais desconfiam de corporações, buscam se afastar de produtos com agrotóxicos e evitam tomar medicamentos em excesso. 

A leitura isolada de evidências científicas, como faz a autora, não constitui um bom caminho para chegar a conclusões seguras. No máximo, são um sinal de que é preciso realizar mais estudos sobre um determinado assunto. A ciência se move lentamente, ou seja, é a soma de várias conclusões o que permite chegar a uma conclusão. 

No ano passado, a FAO, Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, publicou uma compilação das evidências científicas que associam o consumo de ultraprocessados a uma série de desfechos negativos à saúde — um aumento no consumo desses produtos tem a chance de elevar o risco de câncer, hipertensão e mortes.

O documento é claro no sentido de que a FAO não endossa as conclusões dos autores. Contudo, é emblemático, do ponto de vista político, que a aAgência problematize um dos resultados do paradigma alimentar construído sob os auspícios da Revolução Verde que ela mesma patrocinou. A ofensiva levada a cabo na segunda metade do século passado constituiu um movimento profundo de desprezo pelos conhecimentos tradicionais em benefício de uma leitura arrogante de que a ciência, isoladamente, poderia oferecer respostas aos graves problemas de insegurança alimentar do planeta. 

Algumas décadas após esse experimento, os solos estão esgotados, biomas foram devastados (o Cerrado e a Amazônia, só para mencionar dois exemplos), ingressamos numa era de mudanças climáticas provavelmente irreversíveis, as evidências contrárias aos agrotóxicos se avolumam diariamente. 

A ciência da nutrição evoluiu notavelmente, mas a conclusão sobre o que constitui uma dieta saudável permanece a mesma desde que o mundo é mundo, e está expressa no Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde: devemos priorizar alimentos in natura ou aqueles que tenham passado por um processamento mínimo. 

O fim da fome, promessa sob a qual certa ciência se movimentou, continua a afetar uma parcela gigantesca da humanidade. Porque, ao fim e ao cabo, uma ciência que não atue de maneira sistêmica é incapaz de oferecer respostas a problemas sistêmicos. A insegurança alimentar e nutricional é uma questão de produtividade agrícola, sim, mas é também uma consequência de decisões sociais, ambientais, econômicas e políticas. 

A autora pede que a ciência domine a natureza. Já se vão séculos dessa vã tentativa. E os resultados são cada vez mais nefastos. Na outra ponta, o natureba que ela tenta desqualificar propõe uma ciência que entenda e respeite a natureza, sem tentar se apropriar. Sem tentar dominar. Colocar o natureba no balaio de obscurantismo de nossa época acaba por realizar justamente aquilo que se está criticando. O natureba advém da leitura científica de que estamos em um abismo sistêmico. O cruzamento das ciências humanas, econômicas, ambientais não permite enxergar outro destino para a humanidade que não seja o colapso.

* Texto publicado originalmente no Nexo.

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