Divulgação do clipe da música "You Need To Calm Down", com Katy Perry, de hambúrguer,e Taylor Swift, como batatas fritas

Todos os vírus do marketing pop

A pandemia do novo coronavírus só piora com a contribuição histórica de outros agentes virais epidêmicos

Um combo para adolescentes via música pop. São diversos os tipos de influência absorvidos na relação de garotas e garotos com artistas: penteados, dança e, claro, roupas. Mas esse não é o limite. Se cabelos e jeans rasgados são mais visíveis como inspirações, os alimentos, principalmente depois do surgimento das redes sociais, ganharam força nas linhas de conexão entre fãs e músicos. E o resultado disso, muitas vezes, é bem ruim.

Tanto que o impacto exercido preocupa pesquisadores. Estudos e mais estudos – vamos chegar neles – apontam para o papel essencial da validação de marcas de alimentos ruins por celebridades na epidemia de obesidade infantil e juvenil no mundo. E é nítido que muitos dos mais conhecidos nomes da cena pop não estão nem aí para fazer recomendações saudáveis.

Entre as pesquisas realizadas internacionalmente, uma chama a atenção. Batizada de “Popular Music Celebrity Endorsements in Food and Nonalcoholic Beverage Marketing” (Endossos por celebridades da música popular em marketing de alimentos e bebidas não alcoólicas, em tradução livre), foi publicada na revista científica Pediatrics, publicação da American Academy of Pediatrics (Academia Americana de Pediatras).

Metodologicamente, o estudo descritivo classifica a popularidade de cantores ou bandas de música pop entre os adolescentes e analisa o tipo de alimentos e bebidas que essas celebridades endossam via publicidade. Importante: o acompanhamento foi feito ao longo de 14 anos, e os pesquisadores aplicaram uma análise nutricional rigorosa na revisão de centenas de anúncios.

Todos os artistas tinham nomes associados ao Billboard Hot 100, ranking que classifica as músicas de acordo com as vendas de álbuns e a veiculação de músicas e imagens na mídia. Além dessa compilação, mais dados sobre o apoio de celebridades a ultraprocessados foram coletados de sites oficiais das corporações alimentícias, comerciais do YouTube, bancos de dados de agências de publicidade e “reportagens” (entendamos esse último item como conteúdo patrocinado por marcas). As indicações ao Teen Choice Awards – prêmio que inclui anualmente os músicos mais populares entre os adolescentes – também foram usadas.

A qualidade nutricional dos alimentos foi avaliada de acordo com o índice de perfil dos nutrientes da Organização Panamericana da Saúde (Opas), enquanto as bebidas não alcoólicas foram verificadas com base nas calorias dos açúcares adicionados e das gorduras. 

Cento e sessenta e três artistas, em 590 anúncios, constam da amostra. Alimentos e bebidas ultraprocessados aparecem em 18% dos endossos dos músicos, ficando atrás apenas da categoria maquiagens e fragrâncias, com 26%.

Ao todo, 65 celebridades aparecem associadas a 57 marcas diferentes de alimentos e bebidas pertencentes a 38 empresas. Dessas 65 celebridades, 53 (81,5%) têm ao menos uma nomeação no Teen Choice Awards.

Quarenta e nove (71%) das 69 bebidas não alcoólicas são açucaradas. Vinte e um (80,8%) dos 26 alimentos endossados ​são altos em açúcar e gorduras, e pobres em nutrientes. Em nenhuma das propagandas havia frutas, legumes ou grãos integrais.

Não é para menos – nem por pouco dinheiro – que não se vê abacates ou cenouras nos comerciais. Os cientistas detectaram um gasto médio perto de 2 bilhões de dólares anuais por corporações de alimentos ultraprocessados em peças publicitárias direcionadas a jovens. 

“Esses acordos com celebridades geralmente valem milhões de dólares cada, mostrando que as empresas os consideram fundamentais para a promoção de produtos”, diz Marie Bragg, autora principal do estudo, membro do corpo docente da Faculdade de Saúde Pública Global da Universidade de Nova York. “A publicidade de alimentos leva a excessos e a indústria de alimentos gasta 1,8 bilhão de dólares por ano em marketing apenas para jovens”, explica. 

Marie ressalta que, embora algumas empresas fabricantes de utraprocessados tenham assumido compromissos voluntários de não fazer publicidade para crianças menores de 12 anos nos Estados Unidos, os adolescentes não estão incluídos nesse esforço. “O que deve ser feito urgentemente”, enfatiza a pesquisadora.

Co-autora do estudo, Alysa Miller destaca que a popularidade das celebridades da música entre os adolescentes os torna potenciais modelos positivos, mas que os músicos pop parecem não estar cientes de que, ao validar ultraprocessados, dificultam a luta da saúde pública mundial contra a obesidade e as doenças crônicas não transmissíveis. “Eles [os músicos pop] devem ter o papel de apoiar produtos saudáveis”, argumenta. 

Entre os artistas incluídos na pesquisa se destacam Beyoncé e Katy Perry (à direita, fantasiada de lanche, na foto de abertura deste texto, ao lado das “batatas fritas” representadas pela também cantora estadunidense Taylor Swift), donas de polpudos acordos de patrocínio com a Pepsi; Justin Timberlake, que chegou a fazer jingle para o McDonald’s; a banda Maroon 5, liderada pelo cantor Adam Levine, que escreveu uma música para a Coca-Cola; o rapper Snoop Dogg, parceiro do Hot Pockets e por aí vai. 

O estudo, publicado em 2016, é “limitado”, uma vez que as pesquisadoras afirmam que ainda vão cumprir etapas para entender e medir o quanto os apoios influenciam as escolhas e hábitos de consumo dos adolescentes. Tem limites, sim, mas já aponta várias tendências que se consolidam na prática. 

Uma prática mostrada por outros estudos, com agravantes: os efeitos da publicidade de junk food com o apoio de estrelas pop no consumo de alimentos são mais impactantes em crianças e adolescentes do que em adultos, segundo uma metanálise realizada pela Universidade de Liverpool, na Inglaterra, e publicada no American Journal of Clinical Nutrition. A pesquisa reeuniu 22 estudos para mostrar como os alertas de pais e responsáveis e, mesmo as campanhas pró saúde pública, embora importantes, ainda são frágeis contra o poderio econômico da indústria e o apelo das celebridades.

Beyoncé disse, certa vez, “que ser uma mulher de negócios associada a essas marcas não afetaria a minha criatividade”. De fato, não afetou, como ela mostra no vídeo da ótima música Formation, em que bate lindamente, em letra, ritmo e imagens muito bem somados, no racismo, no machismo e a na violência policial.

Ainda assim, há artistas pop que fazem trabalhos igualmente criativos e impactantes sem parceria com empresas nocivas à saúde. Muito ao contrário, esses encaram as corporações de junk food como parte do problema, algo que o Joio já mostrou aqui.

Algumas “amostrinhas” 

Comercial televisivo da Pepsi, de 2003. Tá bom, o anúncio é “velho”. Mas é marcante demais para deixar pra lá. Beyoncé passa por um adolescente que baba no corpo da cantora, até que ela se aproxima e se posta sensualmente ao lado de uma máquina automática da Pepsi. Entre outras pérolas, a moça solta um “Eu te entendo muito”, quando nota o olhar sexualizado do menino fixado nela e na bebida que a artista escolhe. 

Preciso dizer que, além do incentivo ao consumo a adolescentes impressionáveis pela idolatria, a peça publicitária é sexista, machista e coloca a mulher no mesmo patamar de uma latinha de refri, descaradamente mostrando as duas como “prontas para consumo”? Não sei se precisava, mas disse. 

https://www.youtube.com/watch?v=eY0tRELIdJU    

E a “velhice” do anúncio continua não sendo desculpa, porque Beyoncé seguiu a fazer acordos com a megaempresa de refrigerantes por longos anos, estrelando muitos outros comerciais, inclusive, apresentações no Super Bowl (a final do campeonato do futebol americano, o evento esportivo mais visto nos Estados Unidos e o segundo no planeta) patrocinadas pela Pepsi.

O Maroon Five, banda pop escalada entre as favoritas dos jovens faz alguns anos, talvez forneça o exemplo mais bizarro do “nem aí” para os efeitos nocivos que produzem no público. Além de escrever o jingle para a Coca, o grupo ainda se apresenta num vídeo de bastidores da Snapple, marca de chás e sucos enlatados da gigante Green Mountain, como “co-criadores” de um novo produto. Sem nenhum constrangimento, os músicos enaltecem a “preocupação científica com o desenvolvimento da nova bebida açucarada”. 

Outro que caprichou foi o cantor Justin Timberlake. Também garoto-propaganda da Pepsi, ele não se contentou com os refrigerantes. Reforçou a marca do McDonald’s, negociando o uso de imagem e de um dos hits que emplacou na paradas de sucessos, a música “I’m Lovin’ It” (estou amando isso, em tradução livre), para que a corporação de fast-food o relacionasse diretamente ao slogan mais famoso da rede “Amo muito tudo isso”. Caprichou no combo-bomba pra garotada, hein, Justin?                

O combo de Justin Timberlake para a garotada inclui McDonald’s e Pepsi Foto: Divulgação

Brasil “live”

Um dos mais conhecidos sites de música do Brasil, o Vagalume fez uma pesquisa que analisou seis categorias da indústria que mais possuem apelo com fãs de bandas, festivais e cantores. A estratégia, batizada All About Music (Tudo Sobre Música),  resultou num ranking dirigido ao mercado de entretenimento, mais especificamente ao musical, e apontou caminhos às “marcas mais abertas” a ações publicitárias dirigidas a jovens. E essas marcas, principalmente de ultraprocessados e bebidas alcoólicas, seguem a crescer criando formas para fazer ações de “live marketing”. O investimento, inclusive, faz as companhias serem identificadas como “marcas musicais”, 

Mas que raios é live marketing? O conceito do negócio, segundo quem entende, é definido como marketing “ao vivo”, uma forma de interação direta com o público, que proporciona “diálogo” entre marcas e pessoas e “promove engajamento”. Integra serviços, produtos e branding (que é a gestão de uma marca ou empresa) em uma só “experiência”.

Daí, deriva uma penca de atividades. O manual, curto e bonitão, da Associação de Marketing Promocional (Ampro) aponta ações e espaços propícios ao marketing ao vivo: eventos, feiras e congressos; promoções; merchandising com diferentes tipos de sinalizações; ativações de marca, marketing de incentivo, endomarketing; e ações digitais em mídias sociais, aplicativos e outros programas virtuais. Fala, também, em termos modernosos, com ares científicos e políticos, estimulando o uso de “ciências das redes”, “comunidades on e off” e “causas”.

Uma beleza. Principalmente, quando isso tem potencial de se relacionar a produtos que, consumidos sem moderação, detonam a saúde de milhões de pessoas. 

Vamos a eles, os produtos do ranking Vagalume:

Líder de longe das bebidas açucaradas, a Coca-Cola é identificada como a empresa que mais atua estrategicamente em entretenimento, a ponto de nem ser necessário fazer uma divisão por estilo. Há “live marketing” para todos os gostos musicais: rock, eletrônica, sertanejo e pop. Na categoria música, a Coca lidera disparada, com 43% de associação ao tema. Depois vêm Red Bull (14%), Guaraná Antártica (7%), TNT (5%) e Pepsi (4%). 

Já entre as cervejas, a concorrência é mais dura. A Heineken aparece com 22%, Skol e Budweiser com 17%, Brahma com 5% e Itaipava 3%. As três primeiras investem alto em patrocínios de grandes shows, além de trabalharem mais a temática musical nas redes sociais.

Na categoria de bebidas destiladas, a Smirnoff tem 19%, a vodka Absolut 15%, e os uísques Jack Daniel’s 10%, Ciroc 6% e Johnny Walker Black Label 6% vêm em seguida. Essa categoria está mais associada aos estilos musicais  eletrônicos e tocados em casas noturnas.

E, por falar em “marketing ao vivo”, é legal lembrar que, em dias de pandemia, o “live marketing” da indústria de ultraprocessados não para. Ao contrário. As lives virtuais de músicos pipocam por Instagram e YouTube, com Gusttavo Lima enchendo a cara com marca específica de cerveja, a Bohemia, da Ambev, e Ivete Sangalo dançando de pijama, toda despojada, em casa, mas com patrocínio da Seara e seus hambúrgueres vazios de carne, mas altos em sódio e gorduras, ou seja, um ultraprocessado.  

E isso é só uma pequenina amostra, o começo do problema num mundo habitado pelo novo coronavírus, causador da Covid-19, mas, também, por uma pandemia de obesidade, diabetes, hipertensão e problemas cardíacos. 

Um prato cheio para parasitas virais que infectam corpos e mentes.                  

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