Para contar histórias solidárias que você não verá no Jornal Nacional, lançamos especial produzido com o apoio do Idec
A pandemia do novo coronavírus (covid-19) expôs e aprofundou as desigualdades brasileiras na saúde, na educação, nas relações étnico-raciais
e trabalhistas. As ocupações dos territórios e a degradação ambiental também desvelam as iniquidades do adoecer e do morrer. No epicentro de uma epidemia, a desinformação se espalha de forma nociva pelas mídias digitais, gerando insegurança, polarização do debate público e mortes.
A crise sanitária global, que é também humanitária, atinge o Brasil em um período de estagnação econômica, desmonte e paralisação de políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), dos sistemas de saúde, de proteção social.
Esses retrocessos nas políticas públicas, construídas com ampla mobilização e participação da sociedade civil, contribuiu para acelerar a pobreza, especialmente a extrema pobreza, e o aumento expressivo da população em situação de rua.
Dados do relatório da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), indicam que, em 2020, o aumento da extrema pobreza atingirá cerca de 83,4 milhões de pessoas na região da América Latina e Caribe. Haverá um aumento de 2.6% em relação a 2019, o que corresponde a 16 milhões a mais de vulneráveis. A pobreza afetará 214,7 milhões de indivíduos, um acréscimo de 4.4%, ou seja, 28,7 milhões entrarão para essa estatística.
Com isso, estima-se um declínio histórico na luta contra a fome, que já vem aumentando em nível global desde 2015, com quase 1 bilhão de famintos no mundo, segundo a ONU.
A fome e a pobreza não podem ser fenômenos naturalizados. Ambas estão diretamente interligadas e a persistência em pleno século 21 tem raízes econômicas e políticas.
No contexto pós-pandêmico, cumprir os 17 objetivos para o desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 será ainda mais desafiador. Por isso, há uma urgência em garantir o essencial, mas com autonomia e participação cidadã nas decisões que afetam o presente e o futuro das atuais e das próximas gerações.
O Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) refere-se a uma visão que contempla a vida e a dignidade humana. Considera a proteção, promoção e provisão de acesso a uma alimentação saudável e sustentável; condições que proporcionem cuidado adequado na escolha, preparação e oferta de alimentos; e condições de vida que promovam saúde e atenção integral.
A covid-19 afeta as atividades do sistema alimentar – da produção ao consumo – e a rede de trabalhadoras e trabalhadores que atuam diretamente, ou indiretamente, com alimentos. Decisões políticas equivocadas na gestão da crise gerada pela pandemia resultam em mais mortes e degradação humana.
No livro Terror of the Unforeseen (Terror do imprevisto, em tradução livre), publicado em 2018, Henry Giroux, educador e professor da McMaster University, no Canadá, denomina de “fascismo neoliberal” a atual transição da democracia para um autoritarismo fascista. Essa versão contemporânea é mais violenta, excludente, alienante e perversa em países como o Brasil e os Estados Unidos, por exemplo.
O professor chama atenção para o fato de que é um erro considerar o neoliberalismo como um sistema econômico apenas. Trata-se de um complexo mecanismo cultural que impregna o imaginário social, mercantiliza todas as esferas da vida humana, individualiza e prepara os indivíduos para a lógica do livre mercado.
Dentro dessa perspectiva, Giroux alerta para a criminalização de movimentos sociais, associações populares e grupos identitários minoritários. Para o autor, a educação deve formar cidadãos e cidadãs engajados/as na luta pela democracia e contra o “fascismo neoliberal”.
Mas a consolidação dessa proposta demanda a participação ativa em conjunto com os movimentos sociais e culturais para uma formação coletiva mais ampla, pois, de acordo com ele, são esses grupos que mobilizam as reais necessidades coletivas comunitárias. Seja qual for a luta, ele aponta que deve-se compreender o papel da agência individual e coletiva.
Em meio à pandemia, observamos movimentos de solidariedade e resistência que florescem e se recriam em lutas comuns, partilhadas e vivenciadas no dia a dia, com dores, sofrimentos, lutos e perdas de mais de 67 mil vidas no Brasil.
Diante da ausência e negligencia sistemática do Estado, inúmeras ações populares em todo país levam diariamente comida de verdade à mesa dos mais vulneráveis e fortalece a agricultura familiar de base agroecológica no campo e na cidade.
Isso ocorre sem perder de vista as medidas a médio e longo prazos, que incluem propostas de planos emergenciais, retomada e proposição de políticas públicas, denúncias, ações de educação e comunicação popular, formação política e o estímulo à participação da população articulada em redes, fóruns e coletivos para conciliar assistência social com mudanças concretas de realidades desiguais.
É para contar essas histórias, que você não verá no Jornal Nacional, que hoje o Joio estreia a série com sete reportagens especiais intitulada “Da mesquita ao quilombo: comida e solidariedade de verdade”, produzida com o apoio do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Serão abordadas experiências e estratégias de resiliência em comunidades e população em situação de rua no Rio de Janeiro e de São Paulo; ocupações e grupos específicos, como a Associação das Prostitutas da Paraíba (Apros); na articulação entre cultura e alimentação no Pará; entre o povo indígena Kaingang do sul do Brasil e os quilombolas em diversas regiões do país.
São narrativas contadas por movimentos, organizações e coletivos da sociedade civil que atuam há mais de quatro décadas no Brasil e outros que começaram, ou intensificaram as ações, na pandemia.
O Joio estreia a série hoje, logo mais, com a campanha solidária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que já doou 2.300 toneladas de alimentos desde o começo da quarentena.
A equipe de repórteres é formada por Mylena Melo, Marcos Pomar e Nathália Iwasawa. Nosso intuito com a série é dar visibilidade às construções coletivas que promovam transformações reais e apontem para outros futuros possíveis em um mundo onde outros mundos se encaixam.
Obrigada e boa leitura.