Um ano depois da morte do entregador Thiago de Jesus Dias que não recebeu socorro da Rappi, entregadores de aplicativo seguem mobilizados em luta por direitos e pela vida
Hoje, faz exatamente um ano que Thiago de Jesus Dias passou mal enquanto fazia uma entrega em um bairro nobre de São Paulo. Antes que pudesse deixar a encomenda na portaria do prédio, o rapaz, que era vinculado à empresa Rappi, teve que pedir por ajuda. O socorro demorou a chegar: a empresa foi acionada, mas nada fez. O Samu não apareceu. Um uber foi solicitado, mas o motorista negou a corrida ao perceber que poderia “sujar o carro”. A entrega daquela garrafa de vinho em Perdizes seria a última de Thiago. Um dia depois, ele morreu no hospital, aos 33 anos de idade, deixando a esposa e uma filha, então com seis anos.
Antes de sofrer o AVC fatal, ele chamou pela irmã, que cruzou 15,2 quilômetros – de Pirituba a Perdizes – para levá-lo ao Hospital das Clínicas. E foi ela própria, Diane de Jesus Dias, que teve que procurar uma maca para Thiago, só depois levado para a UTI, onde acabou não resistindo.
À época, quando procurada a se explicar, a Rappi respondeu, “(…) não contrata os entregadores parceiros. Muito pelo contrário, são os entregadores parceiros que contratam a Rappi para, por meio de plataforma tecnológica disponibilizada, entrar em contato com os usuários e angariar clientes para a atividade comercial de motofretistas.”
Assim, a empresa se isentava de qualquer responsabilidade com o funcionário que passou mal durante a prestação de serviço. Precarização das relações trabalhistas que resultou em morte.
Antifascistas por mais direitos
Um ano depois do trágico episódio, a Rappi continua sem proteger funcionários de ameaças como a que matou Thiago. Em plena pandemia do coronavírus, quando o país atinge a marca de 65.556 mortos por covid-19, entregadores vinculados à empresa não recebem nenhuma garantia de segurança para exercerem o trabalho. Entregadores chegam a ser desligados dos aplicativos por pegarem mais de um frasco de álcool em gel oferecidos pela empresa.
Quem contou isso ao Joio foi Paulo Lima, o Galo, um dos quatro milhões de entregadores que estão com bikes ou motos a serviço dessas empresas.
“Eu conheço gente que foi bloqueada pela Rappi porque pegou dois frascos de álcool em gel. Como eles acharam que 250 ml era muito pouco, acabaram pegando mais e a empresa bloqueou os caras por causa disso”, afirma.
Essa foi uma das motivações para o jovem de 31 anos criar o Movimento dos Entregadores Antifascistas, uma das frentes que vai às ruas reivindicar o aumento no pagamento das corridas e da taxa mínima para as entregas, além de seguro para roubos e acidentes, e de vida. Também há demanda para vouchers destinados para compra de equipamentos de proteção individual (EPIs), como luvas descartáveis, máscaras e até álcool em gel.
Resultado da busca por mais direitos, a paralisação do dia primeiro de julho chamou às ruas trabalhadores do país inteiro com o grito “Fome!” e “Vem pra rua, vem, o aplicativo não tá pagando bem.”
Em São Paulo, o “breque” (como a paralisação é chamada pelos entregadores) chegou a mobilizar cerca de mil motofretistas lutando por uma categoria que está completamente desamparada. Para escrever esee texto, o Joio procurou diversas associações que deveriam representar os trabalhadores para saber quem está contabilizando infectados por covid-19, mas não recebeu qualquer estatística. Segundo Galo,“[vocês] Não vão encontrar mesmo. Não tem ninguém olhando pra gente.”
O sentimento de abandono diante da pior crise sanitária do século também pode estar conectado ao empenho dessas empresas em mostrar que não há vínculos empregatícios entre elas e quem está na rua fazendo o serviço.
No início da pandemia, o ifood correu para derrubar uma liminar que obrigava a pagar assistência financeira de ao menos um salário mínimo aos entregadores afastados por suspeita de coronavírus ou por fazerem parte de grupos de risco. A corporação se queixou de que poderia ter gastos de R$ 150 milhões com a medida.
Mas, em seguida, fez propaganda nas redes sociais afirmando que destinará R$ 2 milhões aos entregadores. Sim, somente 2 milhões para um exército de trabalhadores que correm riscos diversos diariamente, como contamos em uma recente vídeorreportagem. Isso, com o valor de mercado do iFood ultrapassando 1 bilhão de reais, fora os 3 bilhões em investimentos feitos na empresa por agentes do mercado financeiro, aporte pelo fundo Inova Capital, do empresário Jorge Paulo Lemann, o bilionário dono da Ambev, e a Naspers, um conglomerado de mídia da África do Sul.
Aquele que “prefere não”
A história de Galo se entrelaça com a do personagem “Bartleby, o escrivão”, aquele que diz ao patrão um escancarado “prefiro não”. Quando Herman Melville escreveu esse conto, publicado pela primeira vez em 1853, o personagem principal era um homem que decidiu se recusar a contribuir à máquina do capitalismo ao adotar um espaço de inação. Dessa forma, o autor também narra a história de trabalhadores que buscam por mais direitos. Ao dizer “Preferia não fazê-lo”, ou seja, dizer não às ordens impostas, o personagem também se contrapõe a um sistema de exploração da força de trabalho.
A resposta do patrão é tão instigante quanto o site que a Ifood colocou no ar após a repercussão das ações de Galo e do Movimento dos Entregadores Antifascistas. A página institucional “Abrindo nossa cozinha”, pertencente à empresa, traz os mesmos traços do conto.
Frases como “O entregador é livre para entregar via app do iFood quando, como e onde quiser” reencarnam o patrão concebido por Melville. É o novo “Não fui eu quem o trouxe para cá, Bartleby – declarei, consternado com sua suspeita – E este lugar não deve ser tão infame para você. A sua presença aqui não é relacionada com qualquer ato censurável. E não é um lugar tão triste como se poderia imaginar. Aqui tem céu e tem relva.”, trecho do livro em que o capitalista, que nem mesmo recebe um nome na obra, tenta convencer o personagem principal a voltar a trabalhar.
“Fogo no mercado”
Bruno Carvalho (nome fictício para preservar a fonte) também era entregador, mas, ao participar do movimento, foi bloqueado pelo Ifood. O desligamento chamado de “bloqueio branco” é feito de maneira ainda mais cruel que o desligamento total. No primeiro caso, as empresas simplesmente param de enviar solicitações de pedido aos profissionais.
“Depois da manifestação do dia sete [7 de junho], nunca mais caiu pedido na minha conta. Eu via chegar pedidos pra todo mundo a minha volta e eu passava o dia ali com cara de banana”, explica. Ele resolveu sair tanto do movimento, como da profissão. “Eu tenho aluguel para pagar, tenho que comer, não dá para eu acabar morando na rua. Então, para mim já deu”, prossegue.
Antes disso, Bruno já estava desanimado em continuar prestando serviços de entrega. O retorno financeiro era pouco para tudo que ele tinha que enfrentar nas ruas. Ainda que trabalhasse 12 ou 14 horas seguidas, se em algum pedido “desse problema”, saia no prejuízo. Ele conta que toda semana ficava com “uma dívida” com o aplicativo, isso porque, quando alguém cancela um pedido, quem paga são os entregadores.
“Às vezes, o cliente cancela quando a gente já tá no caminho para entregar. E, aí, já era. A gente tem que pagar”, revela.
“Eu estava no mercado, procurando os produtos para o cliente, demorei muito até achar as especificações de cada coisa. Aí, passei no caixa e paguei. Como demorou porque eu estava procurando tudo certinho, o cliente cancelou. A vontade que dá é de colocar fogo no mercado. Acabei ganhando uma dívida por causa de coisas que nem precisava”, desabafou à reportagem do Joio.
Com o potente “prefiro não”, Galo e o movimento lutam para um desfecho diferente do que o autor de Moby Dick dá a Bartleby e para que casos como o de Thiago não voltem a ocorrer. A cada batalha do coletivo, o recado é para que as empresas entendam que não existe patrão sem força de trabalho.