Juan Santana Ló

Uma mesquita na favela, alguns voluntários, muitas toneladas de solidariedade

Durante três meses críticos, grupo em Embu das Artes ajudou a segurar a barra de moradores da região na pandemia

Diego de Castro é um cara preocupado com o que acontece na vida dos familiares, por isso, costuma ficar de olho na caminhada de cada um. Quando o primo Otávio começou a frequentar uma mesquita na favela Cultura Física de Embu das Artes, município da região metropolitana de São Paulo, ele achou esquisito e decidiu investigar. Um dia, visitou o local e se impressionou (positivamente) com o que descobriu: 

“Eu fui lá pra conhecer o ambiente e me encantei. É um lugar totalmente de paz”, diz. 

Apesar de ser católico e, palavras suas, já ter se encontrado na própria religião, Diego passou a ser um admirador do trabalho desenvolvido na mesquita Sumayyah Bint Khayyat

Fundada em 2016, ela constitui o primeiro e único templo islâmico construído dentro de uma favela brasileira. Neste ano, o trabalho de distribuição de alimentos realizado pelos voluntários da mesquita, que começou no mês sagrado do Ramadã, ajudou muita gente a enfrentar os impactos econômicos e sociais gerados pela pandemia do novo coronavírus. 

Em 2020, o Ramadã ocorreu entre 24 de abril e 23 de maio. Na fé islâmica, esses trinta dias, que variam conforme o ano, correspondem ao momento em que as palavras do Corão foram reveladas ao profeta Maomé. Durante o Ramadã, os muçulmanos jejuam da alvorada ao pôr do sol e são incentivados a intensificar o trabalho de caridade. 

Foi nesse espírito que, no transcorrer da crise da covid-19, os voluntários da Sumayyah Bint Khayyat entregaram vinte mil marmitas na porta da mesquita. Sempre durante a noite, a partir das 19h, respeitando o jejum prescrito pela religião.

Como explica Otávio Vieira, primo do Diego: 

“Durante o Ramadan, a gente passa o dia sem comer. Um dos motivos pra isso é poder entender o que passa uma pessoa que sente fome. Então, a gente ficava o dia todo em jejum e, quando chegava a noite, estávamos distribuindo comida para aquelas pessoas no lugar de quem a gente tentava se colocar.”  

É verdade que os voluntários da mesquita não podiam se alimentar durante o dia, mas isso nunca os impediu de começar a trabalhar logo. Já por volta das 13h uma equipe de seis cozinheiras, todas mulheres, começava a preparar a comida: vinte quilos de carne, quinze quilos de arroz, cinco quilos de feijão e mais o que houvesse disponível em folhas, legumes e frutas. 

Jeanete Clemente foi uma das responsáveis por esse trabalho. Ela é seguidora da umbanda e, assim mesmo, ajuda na mesquita Sumayyah há dois anos:

“Venho para ajudar na cozinha, corto e descasco legumes, contribuo no preparo da comida, lavo louça. Me dedico de coração”, contou a vendedora autônoma de 48 anos, em uma entrevista concedida ao Joio em meados de junho, quando o trabalho ainda estava a pleno vapor.


“Eu enxergo esse trabalho como [um jeito de] conseguir diminuir a fome das pessoas”,  explicou outra voluntária, a vendedora de bolsas Angélica Macedo. Da equipe da mesquita, ela diz que “são pessoas do bem, que gostam de ajudar o próximo e de serem solidários”, e argumenta que o trabalho feito por eles tem conseguido diminuir o preconceito contra a comunidade islâmica na região: “As pessoas estão enxergando a religião [muçulmana] com outros olhos.” 

Ocupar o vazio deixado pelo Estado

“O coração desse trabalho são as mulheres. Elas puxam o bonde de um jeito que você desacredita”, conta Otávio, que começou a frequentar a mesquita em maio de 2019. 

Ele explica que as cozinheiras mantiveram de pé o trabalho intenso de distribuição de alimentos, mesmo após o fim do mês sagrado: 

“Nos dias do Ramadan, a gente trabalhou de domingo a domingo. Só que acabou o mês e continuou tendo uma crise. A princípio, eu e Kaab pensamos em continuar apenas três vezes na semana, principalmente para poupar as mulheres, mas, aí, elas falaram ‘não faz sentido trabalhar só três dias, vamos trabalhar os cinco dias da semana’.” 

Missão dada, missão cumprida. Treze dias depois do Ramadan, quando Otávio falou com o Joio, o trabalho seguia firme e forte.

Foto: César Kaab / Acervo pessoal


O Kaab, que Otávio menciona, é César Matheus Rosalino, um rapper convertido ao Islam no início dos anos 2000. Em 2008, ele virou César Kaab Abdul e, em 2012, fundou a sala de oração Mussala Rahmah, que, quatro anos depois, se transformaria na mesquita Sumayyah Bint Khayyat. Tudo isso na Favela Cultura Física, que fica bem ao lado da comunidade onde ele próprio cresceu, a Favela do Inferninho.

Kaab conta que o trabalho de distribuição de marmitas ocorre desde o ano de 2013, mas se realizava duas vezes ao mês. Neste ano, porém, o Ramadan calhou de chegar em plena crise sanitária e econômica trazida pela pandemia de covid-19. Nesse cenário, quem tomou o golpe mais duro foram as regiões pobres e desassistidas pelo Estado, como essa em que se encontra a mesquita.

Não há dados consolidados para a Favela Cultura Física, na divisa de Embu das Artes com São Paulo. No entanto os bairros vizinhos da Vila Andrade e do Capão Redondo, já dentro dos limites da capital paulista, podem ser um referencial para entendermos a situação socioeconômica de quem vive no entorno da mesquita.

Segundo o Mapa da Desigualdade, publicado em novembro de 2019 pela Rede Nossa São Paulo, 49% das residências da Vila Andrade está inserida em áreas de favela, enquanto o índice de moradores da região que trabalham com carteira assinada é de apenas dois em cada dez. 

No Capão Redondo, esses mesmos indicadores são de 27% e 0,6 em cada dez, respectivamente. Nesses dois bairros, a idade média ao morrer não ultrapassa os 63 anos.

“Outro dia, apareceu uma mulher aqui, com os quatro filhos, e nós explicamos que ela não precisava trazer a família toda. Daí, ela nos perguntou o seguinte: se eu viesse sozinha, vocês me dariam cinco marmitas?’”, conta Kaab. 

“É triste ter que distribuir comida. De certa forma, estamos ocupando um espaço que o Estado deixa vazio. A alimentação é um direito básico do ser humano e o governo não dá sequer isso”, completa o rapper. 

Como dissemos, foi a situação de calamidade que fez intensificar a distribuição de marmitas. Se antes era quinzenal, o trabalho passou a ocorrer de domingo a domingo, e seguiu adiante, mesmo após o Ramadã. 

“As pessoas continuaram com fome”, diz Otávio para a reportagem , que depois da conversão passou a se denominar Hamza Assadullah.

Kaab e Otávio distribuem marmitas em frente a mesquita / Fotos: Juan Santana Ló

Diálogo inter-religioso e intersetorial: comida não sobra

Combinado ao trabalho de distribuição de marmitas, a mesquita também ampliou o serviço de distribuição de cestas básicas durante a pandemia. Ele existia desde 2013, tendo levado, inclusive, à realização de um censo da comunidade, feito por Kaab e outros voluntários.

“Nós precisávamos de um critério para determinar quem receberia ajuda primeiro, dependendo do número de cestas disponíveis. Foi aí que começamos a mapear os beneficiários e registrar se a pessoa estava empregada, o número de habitantes na  residência, se a casa tinha saneamento básico, etc”, destaca Kaab.

Hoje, o cara das planilhas é o Otávio, que sucedeu Kaab na responsabilidade com os cadastros e na anotação geral de dados referentes ao trabalho de distribuição de alimentos.

 “Se pudesse, anotava tudo, mas nem sempre dá tempo no meio da correria”, brinca ele. Segundo as contas de Otávio já foram distribuídas três toneladas e meia de alimentos em cestas básicas durante a pandemia. 

O trabalho de caridade também não é estranho ao Diego, seu primo. Há alguns anos ele dá uma mão ao pessoal da Paróquia São Francisco, no bairro do Valo Velho, a aproximadamente seis quilômetros da mesquita Sumayyah.

Ali, o padre Jean Medeiros e voluntários desenvolvem um serviço importante de distribuição de cestas básicas, muito conhecido na região.Todos os domingos, o pároco percorre as ruas do bairro em cima de um carro de som, acompanhado por uma porção de voluntários. 

Diego explica: “O padre vai no trio elétrico, abençoando as pessoas, pedindo alimento, e nós, voluntários, vamos no chão, de casa em casa, pegando as doações”.

Com Diego na Paróquia São Francisco e Hamza na Mesquita, foi criado um fluxo de apoio mútuo. 

“Eu estava precisando de sal, para montar uma cesta, eles ofereceram. Também me trouxeram frango uma vez, quando estava sobrando lá. Outra vez, meu primo me ligou e disse ‘Pretão – ele me chama de Pretão – tava precisando de uma cadeira de rodas’, eu arrumei”, conta Diego.

A mesquita também conta com a ajuda de um dono de supermercado, muçulmano, que recebe as doações em dinheiro e as troca por alimentos a um valor abaixo daquele vendido nas prateleiras. É a forma que eles encontraram de não lidar diretamente com dinheiro físico, explica Hamza. De resto, a maior parte da comida distribuída é fruto de pequenas doações: “tem irmão que para o carro e tira um pacote de alguma comida, tem irmão que doa alguns fardos de arroz, e algumas organizações muçulmanas também ajudaram com contribuições”.

Quando perguntamos a Otávio sobre o horário em que termina a distribuição de marmitas, ele explica que isso costuma variar, mas que a regra é jamais deixar a comida sobrar:

 “Teve dias em que a gente fez um pouco a mais e o movimento na rua acabou. Aí, a gente colocava as marmitas no carro e saía, ficava procurando, pra poder entregar. Não tinha a possibilidade de sobrar ou de jogar fora”, diz. 

No dia 17 de julho — depois de quase três meses na labuta — os voluntários da mesquita se reuniram e decidiram dar uma pausa nos trabalhos. Foram três meses cansativos, alimentando cerca de 150 a 200 pessoas todos os dias, isso sem falar nas cestas básicas distribuídas nesse meio tempo. 

Com as medidas graduais do relaxamento da quarentena, muitas voluntárias e voluntários voltaram ao trabalho, deixando a cozinha da mesquita perigosamente desfalcada, o que foi determinante na decisão de encerrar o serviço, pelo menos temporariamente. 

“Encerramos por enquanto com as marmitas, mas aceitaremos doações de cestas básicas enquanto houver necessidade diante de uma pandemia, quarentena, e tantos problemas enfrentados por todos”, garante Kaab. 

Como ajudar?

Doações em dinheiro podem ser feitas via transferência para a seguinte conta bancária:

Banco do Brasil

Agência: 2168-7 

Conta Corrente: 32919-3

Supermercado Marimar Ltda. 

CNPJ: 03.376.975/0001-07

(Avisar antes via WhatsApp no número (11) 942-090-149)

Doações de alimentos podem ser entregues na sede da mesquita: 

Mesquita Sumayyah Bint Khayyat 

Rua Inajá, 317 – Jardim Cultura Física – Vila Olinda

Embu das Artes (SP)

Por Marcos Hermanson

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