Gustavo Basso

No berço da indústria da carne, pequenos agricultores penam com leis sanitárias

Concurso de queijos artesanais com proibição do consumo das peças expõe exemplo de aplicação da legislação sanitária prejudicial a pequenos produtores de alimentos em Seara, cidade catarinense onde nasceram os gigantes brasileiros da carne

Quando o agricultor Odacir Zandoná fala sobre a produção de queijo artesanal de leite cru, feito por ele e pela mãe na propriedade de 12 hectares, transparece pessimismo. “Nós estamos tentando trocar de ramo, trazer pessoas para fazer turismo aqui e então consumir nosso produto, porque vender vem se tornando insustentável. Tem até vereador indo atrás dos nomes dos produtores para denunciar à inspeção e à vigilância sanitária”, conta o morador de Seara.

A cidade encravada em morros da serra catarinense é berço da gigante frigorífica Seara, hoje sediada no litoral. A unidade de oito hectares, que surgiu na década de 1950, continua em operação. O centro-oeste catarinense é local de fundação de quatro das maiores empresas do setor: Sadia, Perdigão (hoje fundidas sob a marca BRF), Aurora e Seara, que desde 2013 pertence à JBS de Joesley e Wesley Batista, sendo o maior polo de produção industrial de produção de carnes do país.

Os terrenos íngremes são uma espécie de proteção natural contra o predomínio da soja e do milho, comum em regiões próximas. O que domina a paisagem rural de Seara e da região são pequenas propriedades, com 18 hectares em média, produzindo frangos, porcos e leite para grandes cooperativas e laticínios. Segundo dados do último Censo Agropecuário do IBGE, de 2017, das pouco mais de 1.300 propriedades, 280 delas trabalham com a produção de leite; muitas mantêm a tradição da imigração italiana da região e produzem queijo.

Artesanal e de leite cru, o queijo produzido pelas famílias searenses era proibido até há pouco tempo, quando a legislação passou a permitir a produção e o comércio no estado. E, mais recentemente, em todo o país. Ainda assim, as famílias que não produzem o suficiente para despertar interesse nos laticínios, ou que utilizam o excedente do fornecimento para o queijo, reclamam das dificuldades para se regularizar e vender as peças fora da clandestinidade, uma questão que não é recente.

As restrições criadas pela legislação sanitária aos produtos artesanais ganharam notoriedade durante o festival Rock in Rio de 2017, quando 80 quilos de queijo e outros 80 de linguiça foram apreendidos e descartados pela Vigilância Sanitária. Os produtos seriam usados por Roberta Sudbrack, eleita em 2015 a melhor chef mulher da América Latina, para o preparo de cachorro-quente. O problema? Os produtos, artesanais e feitos fora do Rio de Janeiro, não possuíam o selo de inspeção federal, que legalmente os permitiria serem vendidos em todo o país.

O caso ajudou a mover o tabuleiro político, levando o Congresso a aprovar, com relativa rapidez, projetos de lei que tentam tornar a questão menos complicada. Mas nem tudo se resolveu, como veremos. Após meses de pesquisa, O Joio e o Trigo traz uma série de reportagens que busca destrinchar como as leis do país foram se desenhando de modo a impactar pequenos produtores.

“A legislação mais antiga, tanto do estado quanto federal, foi desenhada para atender à grande indústria. Como essa indústria vende para distâncias grandes, trabalhando com cadeias de fornecimento e vendas enormes, passando dias e até semanas viajando, precisa ser mais restritivo”, explica Rafael Prezotto, gerente regional da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), estatal de fomento à agricultura de pequeno porte. “Mas passaram essa régua, que não contempla o pequeno produtor familiar, que vende em cadeias curtas em que o próprio consumidor conhece a unidade onde algo é feito. Onde existe um controle social mais próximo.”

Em 24 de julho de 2019 foi justamente o produto mais relevante desta cadeia curta de comércio que virou notícia. Durante um concurso, foi proibido provar queijos artesanais feitos com leite cru. A avaliação foi feita sem atender ao critério-chave de uma disputa desse tipo: o sabor. Os jurados tiveram de se basear apenas em aparência, cheiro e toque. Ao final, os alimentos foram descartados como se fossem lixo hospitalar por técnicos da Vigilância Sanitária do município, com apoio de policiais militares.

“Para nós, que fazemos os queijos com tanto carinho, foi muito chocante ver o pessoal da Vigilância Sanitária usando luvas para tocar, jogando tudo em sacos, como se fosse algo contaminado. Lacrando no chão, incinerando… algo muito triste mesmo”, lamenta a produtora de queijo Rosi Giombelli, membro do grupo de produtores artesanais do qual também faz parte Odacir Zandoná, e dona de queijos consumidos e reconhecidos no Prêmio Queijo Brasil, mais prestigiado concurso nacional, em 2018 e 2019.

Clovis Dorigon, agrônomo e pesquisador de economia agrofamiliar, foi um dos jurados convidados para o concurso. Para ele, a proibição da ingestão dos queijos e o descarte para incineração em seguida foram uma medida arbitrária. “Foi algo feito sem qualquer amparo legal. Havia entre os jurados engenheiros de alimentos, agrônomos, gente da Emater do Rio Grande do Sul, do Ministério da Agricultura, todos impedidos de provar os queijos”, diz, em tom de revolta. 

Promotor da comarca de Seara na época, Guilherme Back Locks reconhece não possuir conhecimento técnico do campo, e diz apenas ter demandado que o poder público e os organizadores chegassem a um entendimento. Em despacho duas semanas antes da realização do concurso, no entanto, recomendou que Epagri e a cooperativa de crédito local Crediseara abrissem mão de realizar o concurso. E, em caso de realização, que adotassem “as providências necessárias para exigir de todos os participantes a comprovação de que os produtos atendem aos requisitos sanitários mínimos previstos na legislação consumerista”.

Após a determinação, os organizadores propuseram fazer o evento sem o consumo dos queijos. “As responsáveis pela Vigilância Sanitária e inspeção municipal dizem ter agido por causa de uma denúncia, mas foram elas que envolveram o MP, o que nos pareceu exagerado”, comenta Aline Bellincanta, extensionista rural da Epagri em Seara. Peça-chave na capacitação dos produtores, ela ressalta que, como não havia comércio, não se deveria aplicar a lei de defesa do consumidor.

“Alegaram ser o protocolo a seguir, mas esse protocolo existe para produto à venda apreendido. Não era o caso. Não havia nenhuma necessidade de incinerar. Tínhamos total controle de rastreabilidade, quem era o dono de cada peça, até porque muitos eram do grupo de produtores que atua desde 2011 em parceria conosco”, defende.

Doze produtores fazem parte do grupo, que em 2019 recebeu o aporte de um convênio com a Universidade de Berna, na Suíça, que concedeu R$ 46 mil para investimentos em melhorias estruturais, análises de qualidade e treinamento em boas práticas de manejo e produção. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE, no entanto, o número de proprietários produzindo queijo é muito maior.

“Esses doze representam muito mais gente. Os que estão ali são os corajosos, porque na realidade são muito mais”, aponta Aline.

Labirinto legal

O secretário de Agricultura e Meio Ambiente de Seara, Ernesto Gomes, critica as reclamações do grupo de produtores, tachando de mentirosas. Ele questiona, por exemplo, a falta de certificação contra tuberculose e brucelose entre os produtores de queijos de leite cru da cidade, algo que é exigência nas legislações estaduais e federais. “O grupo diz que há mais de 270 produtores de queijo, mas na realidade são 12. E desses doze, apenas um está certificado. Por que ainda não vieram atrás disso, se a lei foi publicada em janeiro de 2018?”, questiona.

Segundo Gomes, o município “conta há alguns anos com um programa para facilitar a certificação e a erradicação das doenças, que subsidia veterinário, exames, material de uso e até mesmo o deslocamento até os locais, de modo que cada análise cai de R$ 35 para R$ 7 por animal”.

Segundo Valdir Finger, o único produtor certificado, em 2017 o custo ainda era de R$ 15 por cabeça, sem qualquer subsídio. Para obter o documento é necessário realizar três exames no intervalo de um ano e, estando todos em ordem, continuar o monitoramento semestralmente, além de outras medidas para evitar a contaminação. Para Finger, não há motivo claro para os demais produtores não investirem nisso. 

Já Aline Bellincanta defende que a falta de clareza legal não motivava os agricultores a buscarem a garantia. “Até 2018 a atividade era proibida e ponto final. Eles questionavam ‘por que vou investir, se meu produto vai continuar sendo considerado clandestino?’, e isso fazia sentido. No entanto, desde que saiu a lei viemos insistindo na regularização.”

As leis criadas a partir de 2018 são o que, após décadas de proibição, permitiu o comércio das peças em todo o país. Em Seara, no entanto, nenhum produtor está regularizado e, em toda Santa Catarina, são poucos os que conseguiram o certificado de inspeção.

Em parte isso se deve à demora para regulamentação da lei estadual, que levou quase dois anos, saindo apenas no final de novembro de 2019, com o Decreto 362/2019. Criticado por não ouvir pesquisadores, orientadores ou produtores de queijo para ser redigido, o instrumento legal não é claro quanto ao tempo mínimo de maturação, exigindo estudos científicos conclusivos sobre a segurança dos produtos; nem quem é responsável pela inspeção estadual e quem paga por este serviço. 

Até mesmo quem orienta os produtores sobre a inspeção não tem clareza dentro do labirinto de leis que regem a produção e a fiscalização de produtos de origem animal. Membros da Epagri e da Crediseara que trabalham junto aos produtores reclamam da falta de uma lei municipal para a produção e o comércio de queijos artesanais de leite cru.

No entanto, segundo o gestor do departamento de inspeção da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc), órgão responsável pela inspeção estadual, não é necessário uma lei municipal. O Decreto Municipal 36/2001, que estabelece a inspeção de produtos de origem animal, não faz qualquer menção a queijos artesanais de leite cru, nem para permitir, nem para proibir. 

“No nosso entendimento, o município pode até criar uma lei mais restritiva do que a estadual, se desejar, mas não é obrigatório. O S.I.M. [Sistema de Inspeção Municipal] pode muito bem se basear na Lei 17.486/2018 e em seu regulamento, até porque Santa Catarina tem centenas de municípios. Imagina se cada um for criar uma legislação igual ou semelhante à estadual?”, afirma o secretário de Agricultura de Seara.

Poucas semanas depois da polêmica envolvendo o concurso de Seara, a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola tentou impedir a realização do 5º Prêmio Brasil, em Florianópolis. Segundo uma das organizadoras, o órgão público exigiu que o evento, realizado entre 18 e 22 de setembro, aceitasse somente queijos com inspeção, algo que foi rebatido pela falta de regulamentação legal.

“Se não havia o regulamento, estadual ou federal, que permite que queijos de leite cru sejam inspecionados, como poderíamos trazer queijo com inspeção?”, questiona Michelle Carvalho. Segundo ela, a realização do evento com consumo dos queijos pelos jurados se tornou possível somente porque o prêmio tem apoio do Ministério da Agricultura, e contou ainda com a defesa feita por um deputado do oeste catarinense, Mauro Nadal (MDB-SC), e a compreensão do MP, que, ao contrário de Seara, não buscou a proibição.

“Por fatores sociais e históricos, vejo Santa Catarina como um dos estados com mais potencial para desenvolver queijarias artesanais, mas é tão restritivo que deve ser o pior estado para isso no país”, argumenta a mineira graduada em Viçosa.

Enquanto o labirinto de leis não é desfeito, produtores defendem não valer a pena investir para tirar o produto da clandestinidade.

Dinheiro das mulheres

Rosi Giombelli conta que, mesmo sem a degustação, o concurso de Seara ajudou a divulgar os queijos de leite cru. Hoje, ela não consegue suprir a demanda. As quatro vacas que ordenha manualmente, com auxílio esporádico do marido e das filhas de 16 e 11 anos, para produzir cerca de 80 litros de leite por dia, não foram suficientes. Dez litros de leite rendem um quilo de queijo, além de subprodutos como o soro – utilizado para alimentar porcos ou para a produção de manteiga – ou a nata, muito consumida in natura em estados do sul do país. Se processada, a gordura do leite pura também pode ser transformada em manteiga.

Como em quase todas as propriedades searenses, a mulher é a responsável pela produção do queijo, um conhecimento passado de mãe para filha há gerações. Já os homens ficam responsáveis por outras etapas, quando não realizam outros trabalhos. O marido de Claudete, Valdir Finger, conta que a produção de leite era a principal fonte de renda além do trabalho assalariado dele e da mulher até que as exigências legais sobre os laticínios desmotivaram a atividade.

“Nós produzíamos 40 litros de leite. Então, a lei e o laticínio passaram a exigir um resfriador, que foi cedido e compartilhado com outros produtores. Depois disso passaram a exigir que cada um produzisse cem litros e investisse cerca de R$ 9 mil em um resfriador próprio, o que para nós era inviável. E foi aí que passamos a fazer queijo de forma mais profissional”, diz ele. 

Finger é o responsável da família pelo comércio dos queijos, e circula pelas zonas urbana e rural de Seara duas vezes por mês. Geralmente sai com 40 peças, e dificilmente sobra alguma no porta-malas do carro.

“O queijo colonial é mais saboroso. O de mercado parece que não tem gosto, é borrachudo”, afirma a aposentada Onídia Sponchiado, apontando que a confiança na qualidade vem de conhecer o produtor e de saber que ele e a família consomem o mesmo queijo. Outros clientes visitados por Finger partilham dessa opinião.

As peças são vendidas a R$ 25 o quilo, em média. Muitas vezes, Finger diz sair com os queijos já encomendados, sem se expor. “A fiscalização age com denúncia, mas sabemos que pelo menos desde o ano passado o pessoal do grupo anda muito visado, então, todo cuidado é pouco. Quando vem pedido de cliente desconhecido ficamos até desconfiados”, afirma o ex-pedreiro, que passou a ser agricultor e vendedor da produção de queijo em tempo integral após um problema no joelho que o impediu de exercer a atividade na construção.

O medo de ter a produção confiscada, apesar de ela ser comprada e consumida pela família dos próprios responsáveis pela fiscalização, como conferiu a reportagem do Joio, não é exclusivo dos Finger, e gera sensação de perseguição nos produtores em geral. “Somos vistos como criminosos. O que há aqui é uma perseguição, não tem justificativa”, reclama Lídia Zandoná, que, junto com o filho, fabrica ainda cachaça e licores como alternativas ao queijo considerado ilegal.  

Valdir Finger e a esposa Claudete passaram a focar na produção de queijos artesanais quando a indústria de leite passou a exigir investimentos que eles consideravam abusivos, sem auxiliar na compra de equipamentos

Pelo sim, pelo não

Foi justamente uma denúncia, feita por uma produtora de queijo já regularizado, de leite pasteurizado, que levou à quase proibição do concurso. A reclamação feita por Carmen Bisolo aos órgãos de inspeção e fiscalização motivou a abertura de um inquérito e de um pedido de averiguação pelo MP. Apresentado duas semanas antes da data de realização do evento, o pedido feito ao promotor Guilherme Back Locks tentava impedir o concurso com base em um decreto de 1987 que menciona, entre outros, que são considerados alimentos impróprios aqueles que “contenham microrganismos e/ou parasitas patogênicos em qualquer estágio de evolução”. 

O ofício ainda menciona que em 2017 houve um caso de brucelose e um de tuberculose bovina no município. “Tivemos no município casos de pessoas com tuberculose em anos anteriores. Não dá para afirmar se a contaminação foi por contato animal, com leite, com queijo. Na realidade não é possível especificar como alguém se contaminou, e ainda temos pessoas sob tratamento”, pondera a fiscal da Vigilância Sanitária Cíntia Schwartz, uma das autoras do pedido ao MP.

Há em Seara 820 propriedades dedicadas à pecuária, somando 29.481 animais, de acordo com dados do IBGE e da Cidasc. Das 820, apenas 13 estão certificadas contra as doenças, e até o final de 2020 deverão ser 56 – ao menos dez destas entre os produtores participantes do concurso.

Os Finger são os únicos dos 12 produtores de queijo já certificados contra brucelose e tuberculose. Os demais estão em processo de certificação, e acusam a Prefeitura de Seara pela demora em realizar os exames, somente após a realização do concurso, essenciais para a certificação.

“Nós estamos no processo, pedimos para fazer os exames em abril de 2019, mas a secretaria disse que não havia tuberculina, a substância que acusa a presença de tuberculose no animal,  e somente conseguimos fazer tudo em setembro, o que atrasou nossa certificação”, afirma Lídia Zandoná.  A veterinária responsável pela inspeção municipal, Kalinka Schimitti, não pôde conversar com a reportagem.

O Sol brilha para todos

Até mesmo quem é regularizado com a produção de queijo acaba agindo de forma irregular. A laticínios Bollis, por exemplo, produz manteiga com o soro salgado oriundo da coagulação do queijo. Mas, como não tem selo de inspeção para ele, vende apenas na feira de Chapecó, diretamente a consumidores.

“Se fôssemos regularizar esta parte da produção, teríamos que construir mais uma sala à parte na queijaria, separada da sala de coagulação, que é uma exigência legal”, explica Millena Bollis, uma das quatro mulheres responsáveis pela gerência e pela produção da pequena indústria familiar.

A empresa, que hoje compra leite de 26 produtores cadastrados e conta com dois funcionários, investiu a partir do ano 2000 para se regularizar com o Sistema de Inspeção Estadual, após anos vendendo queijo de modo informal. “Nos anos 1980, quando meus pais se mudaram para cá, vindos do Paraguai, não havia muita opção: ou trabalhava na Seara ou trabalhava em casa. Eles começaram vendendo um queijinho ou outro na cidade. Naquela época a fiscalização não era tão rígida, até optar por entrar com o processo de inspeção”, conta.

Segundo ela, a família começou investindo em pasteurização, até então pré-requisito para a produção legal de queijo. O uso de leite cru para queijos tradicionais passou a ser revisto somente a partir dos anos 2010. Logo foram sendo feitos novos investimentos, de acordo com o aumento das exigências feitas pela Cidasc, e que eles preferiram ao sistema de inspeção municipal.

“Não faz sentido nosso queijo ser permitido aqui em Seara, mas ser irregular só por cruzar o rio e entrar em Chapecó. Por isso que optamos pelo estadual, também para podermos vender em todo o estado”, afirma Milena.

Se desejassem vender em todo o país, os Bollis teriam de se cadastrar junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, responsável pelo S.I.F., o Sistema de Inspeção Federal. Ao longo dos últimos 20 anos, foram R$ 300 mil gastos em maquinário e estrutura física da pequena agroindústria.

“Se fôssemos começar a investir hoje para produzir, abrir o mercado, pagar funcionário e inspeção, não conseguiríamos”, afirma Milena. Os custos mensais para manter o negócio regularizado com a inspeção estadual são de aproximadamente R$ 1.750, valor inviável para qualquer produtor artesanal.

“Nós processamos 6.000 litros de leite por dia, mas, se fizer um milhão, o sistema é o mesmo. As regras não fazem distinção entre pequenos e gigantes, e quem produz pouco é que paga pelos erros que eles cometeram”, reclama ela, se referindo aos escândalos de fraude do leite descobertos entre 2006 e 2010, envolvendo até mesmo fornecedores da gigante italiana Parmalat. Nos escândalos descobertos pela PF por meio das operações Ouro Branco e Leite Compensado, uréia, água oxigenada e soda cáustica eram adicionadas ao leite para mascarar a adição de água e para reduzir o nível de bactérias. Todas as substâncias são consideradas tóxicas se ingeridas.

Apesar dos investimentos, Milena Bollis não defende a denúncia de pequenos produtores não regularizados, como os do concurso embargado. “Temos que tirar isso da cabeça. O Sol nasce para todo mundo. Há mercado para todos se o produto é bom. As pessoas não vão deixar de comer, vai ter gente querendo queijo.” Os gastos e investimentos incluem R$ 1.100 para veterinários que visitam a fábrica uma vez por semana para a inspeção, e outro responsável técnico da produção, que avalia uma vez por mês os queijos feitos. Este serviço, diz, poderia ser ao menos parcialmente custeado pelos governos municipal ou estadual. 

Diamante sendo lapidado

Major Gercino é outro município famoso pelos queijos artesanais de leite cru, produzidos no distrito montanhoso de Diamante, que dá nome ao tipo do produto. Com uma população cinco vezes menor e sem grandes empresas do agronegócio, Major Gercino ainda não conta com sistema de inspeção municipal para regularização dos produtores do queijo Diamante. O sistema está em fase de implementação, com a legislação municipal já criada, faltando apenas decretos e contratações.

O secretário de Agricultura do município, Valdecir Machri, garante, no entanto que os veterinários exigidos para inspeção da produção serão pagos pelo município. Em oposição a Seara, os produtores do Diamante têm otimismo com a regularização das queijarias e dos produtos, apoiados pelo poder público. Em 2019 o próprio prefeito, Valmor Kammers, foi premiado com o troféu Super Ouro por seu apoio à produção do queijo Diamante. 

Como em Seara, a produção do Diamante conta com o apoio da Epagri, uma das mais atuantes e capilarizadas empresas de extensão rural do país. Na cidade, o responsável é Remy Simão, que se colocou à disposição para ser o responsável técnico exigido pela lei. “A lei estadual permite que funcionários da Epagri façam essa atuação, e é o que pretendo fazer por aqui”, diz o extensionista rural. 

Além da Lei Estadual 17.486/2018, fruto de um projeto de autoria de João Amin (PP-SC), mais duas leis federais contemplam a produção artesanal de queijo de leite cru, permitindo inclusive a venda em todo território nacional dos produtos, desde que passando por inspeção municipal ou estadual, dependendo do documento.

A Lei Federal 13.860, sancionada dias antes do concurso de Seara, estabelece que “a fiscalização dos estabelecimentos rurais produtores de queijo artesanal e dos produtos neles elaborados deverá ser realizada por órgãos de defesa sanitária animal e de vigilância sanitária federais, estaduais ou municipais”, e que estes terão “permitida a comercialização do queijo artesanal em todo o território nacional”.

Outra lei, de número muito parecido, 13.680, foi sancionada em junho de 2018 e regulamentada em julho do ano passado por decreto de Jair Bolsonaro. Mais abrangente, ela trata de todos os produtos artesanais, e ficou conhecida como a Lei do Selo Arte. Alimentos produzidos com este selo também podem vender em todo o país, mas devem passar por inspeção federal ou estadual, o que foi criticado por ser um fator que dificulta a vida do pequeno produtor de municípios menores e mais afastados. (Leia mais sobre o selo Arte nas próximas reportagens da série sobre legislação sanitária).

Ambas as leis, junto com suas regulações estaduais e federais e ainda com o Decreto 9.013, que estabelece o novo Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de produtos de Origem Animal, determinam um caráter orientador por parte da inspeção, menos punitivo.

Algo, que, na prática, não é o que se observa pelo país. “Grande parte do impacto que esta legislação mais moderna e adaptada teria aos pequenos teve seu impacto limitado por órgãos estaduais e municipais que não aderem a estas decisões”, reclama Diego Gheller, auditor fiscal do Ministério da Agricultura no oeste do Paraná, e que trabalha na região com o fomento aos queijos.

Sua opinião é ressoada por outros especialistas da área de produção e inspeção de alimentos artesanais. “O mais difícil para explicar aos suíços que financiam o projeto é por que algumas leis pegam e outras não pegam no Brasil”, comenta Andréia Tecchio, assessora de projetos da CrediSeara e pesquisadora de Agroecossistemas pela UFSC.

Já a doutoranda em Ciência dos Alimentos pela UFSC Michelle Carvalho critica o corporativismo dos médicos veterinários, vistos como higienistas por quem estuda processos de produção artesanais. “Os responsáveis pela fiscalização são preparados para cuidar de animais, com cursos universitários criados no começo do século 20. Eles não têm o conhecimento específico para os artesanais. Um desses conhecimentos é o benefício do uso da madeira para prensa e maturação dos queijos. As bactérias boas ficam presentes ali e aceleram a disputa contra as nocivas. Trocar a madeira por plástico ou inox não só não ajuda, como atrapalha”, defende a pesquisadora.

Graduada como técnica em laticínios na Universidade Federal de Viçosa, Michelle foi impedida de exercer o cargo de responsável técnica de uma indústria de Chapecó. “Eu fazia todo o trabalho e contrataram um veterinário somente para assinar a papelada.” Em 2010, ela, por meio do Ministério Público Federal, entrou com uma ação na Justiça Federal contra o Conselho Regional de Medicina Veterinária de Santa Catarina para que ela e outros técnicos e engenheiros de alimentos pudessem exercer a função até então proibida.

O pedido de Michelle foi aceito em primeira e segunda instâncias. No Superior Tribunal de Justiça, o recurso do Conselho Regional de Medicina Veterinária foi uma vez negado. O ministro Mauro Campbell decidiu que “a partir da separação da matéria-prima do animal, haverá, sem dúvidas, mais de um profissional habilitado para lidar com as fases da produção”. Para Michelle, “esse corporativismo, associado à ignorância, é muito prejudicial. Na dúvida, sem conhecimento, o profissional tende mesmo a se proteger de complicação e a rejeitar estruturas como a madeira”.

Ela e outros pesquisadores da UFSC são os responsáveis pelo estudo em Major Gercino que determinará o período mínimo de maturação dos queijos para que sejam seguros do ponto de vista microbiológico, um requisito feito pelas leis federal e estadual. O problema, no entanto, é que o resultado em Major Gercino, que deveria sair até julho deste ano, não é extrapolável para outras regiões, como Seara.

Um estudo realizado na Federal de Viçosa revelou que 17 dias de maturação são o suficiente para que queijos artesanais de leite cru feitos em Minas Gerais atendessem os parâmetros determinados pela legislação para contagem de bactérias. Outros estudos encaminhados por universidades em Araxá, no Triângulo Mineiro, e no oeste paranaense chegaram a resultados similares, apresentando o ponto de maturação “seguro” entre 14 e 20 dias. Muito longe, portanto, dos 60 dias exigidos legalmente, e muito mais próximo da preferência do paladar dos consumidores, que preferem o queijo de sabor mais suave e mais úmido de duas a três semanas de idade. 

Entre semelhanças e diferenças observadas nas cidades catarinenses, o resultado é visto muito mais que em medalhas, mas no otimismo de uns, no pessimismo de outros, em relação ao futuro e à possibilidade de comércio legal e regular de seus produtos.

Sensações que o poder público e seus agentes têm capacidade de modificar com ações diárias que contemplem a pequena agroindústria familiar do mesmo modo o grande agronegócio. “O que pedimos é equidade, não igualdade!”, reclama o jovem Odacir Zandoná.

Por Redação

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