O negacionismo ultraliberal cada vez mais dentro da Anvisa

Organização financiada por corporações e envolvida em escândalos encontra portas escancaradas na agência

Contestada e sob descrédito internacional, uma organização criada pela Coca-Cola e mantida por dezenas de corporações encontrou tapete vermelho na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Uma ata de reunião obtida pelo Joio mostra que o International Life Sciences Institute (ILSI) e o órgão público avançaram na elaboração de um termo de cooperação para que evidências científicas criadas pelo setor privado subsidiem a tomada de decisões sobre saúde pública. 

“Pra dar uma visão geral do ILSI e os pontos potenciais de cooperação, a instituição fez uma apresentação. Um dos pontos destacados pelo instituto é que, por ser um fórum com distribuição mundial, pode potencializar trabalhos que tenham repercussão mais ampla e trabalhar de forma convergente”, diz o registro do encontro, realizado em novembro de 2019 com representantes da Gerência-Geral de Alimentos e da Gerência-Geral de Toxicologia. 

A assessoria de imprensa da Anvisa não informou se o termo de cooperação foi adiante. Tentamos obter uma resposta utilizando a Lei de Acesso à Informação, mas tampouco obtivemos retorno até o momento de publicação dessa reportagem.

A relação entre Anvisa e ILSI é antiga. Apresentando-se como um fórum tripartite e neutro para conectar indústria, governo e academia, o instituto foi criado em 1978 pela Coca-Cola, nos Estados Unidos. A promessa de uma mediação neutra do conhecimento científico, ponto central da apresentação pública da organização, foi repisada durante a reunião de novembro.  

A agência nasceu bem depois, em 1999 e, logo de início, criou grupos de trabalho no qual o ILSI teve presença. Muitas vezes, sob a roupagem de universidades públicas de renome. Na comissão sobre alimentos funcionais, o instituto chegou a controlar quatro dos sete assentos. Um deles sempre coube a Franco Lajolo, um dos representantes na reunião de novembro, e uma pessoa que tem um interesse especial pelo assunto não apenas na condição de pesquisador, como veremos.  

Na reunião de novembro, o ILSI fez a tradicional defesa de neutralidade. “Destacou-se o caráter técnico e a proibição de realizar lobbing, mantendo a ciência como direcionados do ILSI. Foram, então, apresentados alguns exemplos de trabalhos realizados no mundo em parceria entre ILSI e governo. Os princípios para o ILSI dessa parceria incluiriam benefício mútuo, cooperação e transparência, sendo que os objetos podem ser trabalhados no âmbito de forças-tarefa.” 

Tanto a Gerência de Alimentos como a Gerência de Toxicologia demonstraram, reiteradas vezes, o entusiasmo em contar com subsídios do ILSI na definição de critérios científicos para a tomada de decisão. Como destaca a ata, “fica evidente a amplitude de temas que poderiam ser trabalhados de forma colaborativa”.  

Em certo momento, aventa-se até a possibilidade de que o instituto banque a ida de pesquisadores a reuniões do Codex Alimentarius, o mecanismo conjunto de agências das Nações Unidas para a regulamentação de padrões do comércio internacional de alimentos. Uma instância de atuação fundamental para as empresas e de difícil acompanhamento por pesquisadores independentes devido ao alto grau de especialização necessário.  

Outra agenda sensível aos financiadores do ILSI são os edulcorantes, mais conhecidos como adoçantes. Todos os anos, o instituto organiza bate-papos para tentar neutralizar as críticas em torno do assunto, sempre apresentando, unicamente, as evidências favoráveis aos fabricantes. 

Na Anvisa, a trajetória do ILSI na mobilização da ciência pró-setor privado não foi vista como problema. “Foi lembrado o histórico de uma atividade que saiu do consenso entre as partes em desenvolver um estudo específico sobre consumo de edulcorantes. Há perspectiva de uma reunião em 29 de novembro para apresentar esses resultados. Aproveitando esse exemplo, o ILSI reforçou a importância de uma parceria mais estruturada, até para financiamento dos estudos no âmbito do instituto.” 

De parte da Gerência de Toxicologia, outro ponto de interesse surgiu em torno dos dados de consumo de alimentos por crianças menores de dez anos. “O ILSI indicou que o trabalho poderia ser realizado, pois guarda relação com um trabalho já realizado no âmbito do Elans.”   

Elans, ou Estudo Latino-americano de Nutrição e Saúde, foi financiado pela Coca-Cola. E, como boa parte da evidência científica bancada pela corporação dos refrigerantes, coloca ênfase no sedentarismo como causa da obesidade e não na má alimentação (e nas bebidas açucaradas). Essa pesquisa nasceu logo depois de a corporação enterrar o escândalo formado em torno da Rede Global de Balanço Energético. A iniciativa, que também depositava na preguiça a culpa pelo problema, tentou ocultar os recursos destinados pela fabricante e acabou sob descrédito após revelações feitas por vários veículos de comunicação. 

É justamente nesse contexto que o ILSI voltou a encontrar portas abertas na Anvisa. A agência pública jamais chegou a se fechar ao instituto, mas houve um período de maior distanciamento. Mundo afora, repórteres têm revelado escândalos envolvendo a organização.

O jornal The New York Times mostrou a atuação em países asiáticos para tentar moldar orientações governamentais na área de alimentação e nutrição. Em particular, colocou em destaque a atuação de um influente nutricionista, líder do ILSI e ex-consultor da Nestlé, para evitar que a Índia adotasse um padrão de rotulagem tido como contrário aos interesses das corporações

Em 2018, a Mars, uma das maiores fabricantes de alimentos, retirou-se do ILSI alegando que “nós não queremos estar envolvidos em estudos voltados ao advocacy [lobby] que, com tanta frequência, e na maior parte das vezes pelas razões certas, foram criticados”. 

Já em Brasília…

Na reunião com a Anvisa, o ILSI foi representado por Fernanda Martins, então presidente interina e hoje uma das mais influentes diretoras da organização, e Franco Lajolo, presidente do Conselho Científico e de Administração. Ex-vice-reitor da USP e atualmente professor aposentado do Departamento de Ciências Farmacêuticas da universidade, Lajolo é um dos fundadores do instituto no Brasil e tem uma posição de destaque no mundo da pesquisa científica em saúde. 

Ele é, também, um empresário. Lajolo detém ao menos duas patentes voltadas a alimentos funcionais, que são produtos que prometem cumprir uma função específica benéfica ao organismo. Uma delas, em parceria com a Sadia.  

A promessa central desses produtos reside na promoção de uma microbiota saudável, o que, traduzindo em grosso modo, é um “sistema digestivo saudável”, uma área de pesquisa que tem se desenvolvido nos últimos anos e passado a movimentar bilhões.  

À Anvisa, os representantes do instituto citaram “esforços ou atividades para construção de conceitos em conteúdos promissores, como microbiota saudável, probióticos, dentre outros”.  

Além de presidir o conselho científico e administrativo do ILSI Brasil, Lajolo é também o coordenador científico da Força-Tarefa Alimentos Funcionais da organização. Essa força-tarefa é bancada pelas megaempresas Abbott, Amway, Danone, DuPont, Pfizer, Vigor e Yakult, corporações com óbvios interesses no mercado de produtos “funcionais”.    

Joga a real, ILSI  

Não são poucas as evidências e os estudos publicados aqui no Joio apontando o ILSI como um grupo de lobby, mas há casos mais marcantes: como uma pesquisa de 17 mil e-mails trocados entre executivos de corporações e cientistas da organização. Esse trabalho, inclusive, baseou dois novos relatórios internacionais produzidos e veiculados neste ano. 

Um deles saiu da Universidade de Cambridge, do Reino Unido, que concluiu que a influência indevida da indústria por meio de “entidades terceirizadas como o ILSI” requer uma gestão aprimorada de conflitos de interesse na pesquisa científica.

O documento é contundente sobre como o instituto deveria ser conhecido: 

“Solicitamos que o ILSI seja reconhecido como uma entidade do setor privado, em vez de uma instituição científica independente sem fins lucrativos, para permitir uma avaliação mais apropriada de resultados [das pesquisas financiadas pelas corporações] e daqueles que financiam [os estudos]”, ressaltam os pesquisadores Sarah Steele, Gary Ruskin e David Stuckler, do Departamento de Nutrição em Saúde Pública da universidade.   

Eles lembram que atualmente o ILSI reúne 18 “filiais” espalhadas pelo mundo. Unidades alinhadas nas ações em favor das corporações – de fabricantes de agrotóxicos até de alimentos ultraprocessados –, mas com um discurso baseado em “promover uma parceria global para um mundo mais saudável”.  

Os pesquisadores recordam, ainda, que a matriz do ILSI, para iniciar as atividades, recebeu uma bolada de 22 milhões de dólares da indústria, em 1978, expandindo-se globalmente nas décadas seguintes, e que as unidades são até hoje financiadas principalmente por corporações.   

Informações detalhadas no relatório, publicado em maio deste ano, mostram, por exemplo, que, de uma receita total de 17,7 milhões de dólares em 2015, 11,6 milhões saíram do “apoio dos membros [empresas]”.  

O texto também traz números separados por empresa. Em 2012, o ILSI recebeu 528.500 dólares em contribuições da CropLife International, mais 500 mil dólares da Monsanto, e 163.500 da Coca-Cola. No ano seguinte, 2013, foram mais 337 mil da Coca e doações de 100 mil doletas – de cada uma das empresas – de Monsanto, Syngenta, Dow AgroSciences, Pioneer Hi-Bred, Bayer Crop Science e Basf. 

Já num recorte regional, o ILSI North America foi um verdadeiro paraíso de doações em dólares de megaempresas no ano de 2016, com 317 mil da PepsiCo, contribuições superiores a 200 mil de Mars, Coca-Cola e Mondelez, e outras maiores do que 100 mil de General Mills, Nestlé, Kellogg, Hershey’s, Kraft, Dr. Pepper Snapple Group, Starbucks Coffee, Cargill, Unilever e Campbell Soup.  

Essa festa completinha você pode conferir com a leitura da íntegra do relatório, aqui.   

O outro relatório, de abril de 2020, foi produzido pela Corporate Accountability, sediada em Boston, nos Estados Unidos. A organização, de alcance internacional, apoia causas e projetos de conscientização de consumidores, além de movimentos sociais, e se declara como uma “fiscalizadora de corporações”, que considera as empresas transnacionais “devastadoras da democracia”.         

O documento destaca quatro eixos que categorizam o ILSI como um grupo de lobby: financiamento para atividades de pesquisa de apoio aos interesses da indústria; publicação e promoção de posições ou estudos patrocinados pela indústria; distribuição, para gestores e o público geral, de materiais favoráveis à indústria; e supressão de perspectivas entendidas como antagônicas à indústria de alimentos e bebidas.  

Entre as “principais descobertas” sobre o ILSI, a equipe que produziu o relatório lista:   

  • Os artigos de pesquisa publicados na revista do ILSI  (Nutrition Reviews) não necessariamente revelam as afiliações ou os conflitos de interesse com o ILSI, corroborando estudos anteriores mostrando que 40% das publicações do ILSI na América do Norte não continham declarações de conflito de interesse, apesar de terem recebido apoio ou financiamento do ILSI. 
  • No México (que teve a filial dissolvida de forma polêmica em 2019 e hoje pertence à unidade Mesoamérica), o ILSI ainda era presidido, na prática, por um executivo da Coca-Cola (o costarriquense Jorge Arturo Jara), apesar de ter recebido duras críticas por essa mesma prática no passado. 
  • Trocas de e-mails entre equipes do ILSI e representantes da indústria revelam que o ILSI financia pesquisas acadêmicas, além de prover incentivos a pesquisadores cujos achados são favoráveis às posições preferidas do ILSI. Um exemplo disso envolveu instruções explícitas da matriz para bolsistas universitários de várias regiões do mundo ligados ao ILSI, no sentido de não mencionar colaboradores da indústria na autoria dos estudos, a fim de manter a “credibilidade”. 

Sem meias palavras, a equipe da Corporate Accountability usa a expressão junk science (ciência-lixo, em tradução livre) para se referir ao apoio da indústria de junk food à “ciência de qualidade duvidosa”, e chama o ILSI de “grupo de fachada”, afirmando que as corporações de alimentos e bebidas utilizam organizações desse tipo para influenciar a atividade científica, na tentativa de amplificar o alcance de estudos que façam oposição a políticas de saúde comprometidas com o interesse público.  

relatório completo, que desenha os caminhos da atuação global do ILSi, finaliza recomendando a governos e órgãos públicos o afastamento de organizações defensoras de interesses privados corporativos nos processos de formulação de políticas públicas de saúde.   

Se o pessoal da Anvisa leu esses relatórios, não os entendeu. Ou os refutou, mesmo com tantas evidências – ainda mais em tempos de pandemia – do quanto a influência da indústria de ultraprocessados está associada a morbidades e comorbidades.  

Típico de um tempo em que a boa ciência é vítima do negacionismo e de governos que instalam uma espécie de fascismo liberal nos intestinos do Estado.          

Por Redação

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