Casos de covid-19 têm aumentando substancialmente em pequenos municípios que abrigam abatedouros de carne de gado na região Norte do Brasil
Ela gosta mesmo é de viajar. Tem 36 anos, uma filha de cinco, uma mãe na faixa dos sessenta e a avó de 92. As quatro mulheres vivem sozinhas no município de Nova Olinda, norte do estado do Tocantins. Uma vez por ano, elas decidem explorar um cantinho novo do Brasil. Nas últimas férias, as quatro foram passear no estado do Maranhão. O destino planejado para 2020 era São Paulo, mas a pandemia deixou a avó fazendo crochê em casa, sem muita opção.
A mulher de 36 anos se separou do marido há dois, quando ele “sumiu no mundo”. A bebê mexia muito na barriga quando escutava a voz do pai. E o apego foi para o lado de fora. No primeiro ano de vida, a menina não desgrudava da figura paterna. A mulher conta, com toda a convicção, que, entre os dois, ele era o preferido. A menina era tão apegada que, quando o homem foi embora, perguntou se podia chamar o tio de papai.
Isso dói no coração da mulher, que sustenta duas casas – localizadas no mesmo terreno – com pouco mais de um salário mínimo. Porém, por ter enfrentado situação semelhante quando criança, carrega a certeza de que vai passar.
“Minha mãe e minha vó foram minha mãe, meu pai, meu tio, minhas amigas”, ela conta. Não teve presença do pai.
“Engravidei, trabalhei os nove meses grávida. Saí de férias no mês de ganhar ela [a filha]. Ganhei, fiquei quatro meses de licença, voltei pra trabalhar e a deixei com minha mãe. Não vi ela caminhar, não vi ela falar. Foi assim: quando eu saia de casa, ela tava engatinhando, quando voltava do trabalho, ela tava caminhando. Quando eu saía, ela tava sem falar, quando chegava, ela tava falando ‘papai’.”
Ela até que tentou amamentar, mas acreditava que o leite era “fraco”. Resolveu levar a filha a uma pediatra. A médica prescreveu uma fórmula infantil da Nestlé. A avó da criança resolveu dar leite de vaca diluído e papinha de massa de mandioca. A mulher disse que a filha dormiu tanto depois de comer a papinha, “que parecia que tinha morrido”.
São pessoas, não profissões
Ao longo de três meses de pesquisa, conversamos com trabalhadores de frigoríficos de diversas regiões do Brasil. Porém pessoas não se resumem a profissões. Os migrantes têm saudades de casa, as mães choram quando deixam os filhos nas creches. E todos eles, sem exceção, disseram ter medo de contrair o novo coronavírus. Muitas vezes não por eles, mas por quem os espera em casa.
A mulher de 36 anos – nós só a chamamos assim para preservar a identidade, como fizemos nas outras reportagens – tem consciência de que, se contrair o vírus, vai passar para mãe, vó e filha. Não tem como. Ela mora na casa dos fundos com a menina. A mãe e a avó na da frente. Ela diz que faz todas as refeições na casa da mãe. Na dos fundos, só vai para dormir. .
A rotina é desgastante: sai por volta das 5h – principalmente em época de pandemia, já que a entrada na fábrica está mais lenta e controlada – e volta quando todos os bois terminam de ser abatidos – que pode ser ao meio-dia ou às dez da noite. O salário é o mesmo em ambas as situações.
Trabalha há mais de seis anos no frigorífico Masterboi, que já diz por si: abate gado – de acordo com o Sistema de Inspeção Federal, de quarenta a oitenta cabeças por hora. Faz duas semanas, os trabalhadores são liberados mais cedo, já que é época de alta na arroba do boi gordo e o frigorífico não tem tanta demanda, o que é normal nesse período do ano, de acordo com os funcionários. Diferentemente do mês passado, em que saíam por volta das oito e dez da noite todos os dias.
Sobre os protocolos de segurança, os funcionários contam que no início da pandemia, cada um tinha doze máscaras de pano e a fábrica exigia troca constante, de duas em duas horas. O problema era que, com o ambiente úmido, as máscaras ficavam molhadas facilmente.
A menos de um mês, a coordenação incorporou o uso da máscara PFF2, que, de acordo com as normas sanitárias nacionais, é uma máscara descartável, e deve ser usada por apenas um turno nas fábricas frigoríficas. Os funcionários da Masterboi, no entanto, relatam situação parecida com a os trabalhadores da JBS, em reportagem divulgada pela The Intercept no início do mês de agosto: a troca do equipamento é semanal.
Com pouco mais de dez mil habitantes, Nova Olinda tinha, até a conclusão desta reportagem, 362 casos de covid-19 confirmados. De acordo com a Secretaria de Saúde de Tocantins, a incidência é de quase três mil pessoas infectadas a cada cem mil habitantes. Alta, se comparada à incidência nacional, de 1902 casos a cada cem mil habitantes.
Segundo os números do município, os casos de covid-19 têm aumentado substancialmente em curto lapso temporal desde a primeira confirmação. Por isso, no início de junho, a prefeitura decretou toque de recolher entre as 18h e 6h, proibindo o trânsito de pedestres, bicicletas, motocicletas e automóveis.
Não adiantou muito. Os funcionários do frigorífico informam que os casos começaram a aparecer dentro da fábrica no mês de março. Um trabalhador infectado não soube informar ao certo se havia contraído o vírus na empresa, mas disse que a rotina se baseia na ida do trabalho para casa e da casa para o trabalho. Mora com a esposa e os dois filhos. Segundo ele, a orientação dos postos de saúde da cidade é de que as pessoas sejam testadas depois de manifestarem os sintomas da doença por nove dias seguidos.
“Entrego minha vida na mão de Deus, né, não tenho a opção de parar”, disse o trabalhador, por telefone.
Nenhum dos trabalhadores com quem conversamos é sindicalizado ou faz parte de organizações políticas. De acordo com o Ministério Público do Trabalho da 10ª Região, responsável pelo Distrito Federal e pelo estado de Tocantins, não houve interlocução com o frigorífico durante a pandemia. A administração do frigorífico não concedeu entrevista, no entanto, os funcionários disseram que existem 510 contratados na unidade.
Não ignore os bois
Sim, é verdade: a maioria dos frigoríficos concentram-se no sul do país e, por isso, essa região está nos holofotes da mídia. São 154 matadouros na região Sul, contra 114 na região Centro-Oeste, 105 na região Sudeste, 57 matadouros na região Norte e 28 na região Nordeste. No entanto, os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul aglutinam grande parte da indústria avícola e de suínos. Essas duas indústrias, por sua vez, detém maior quantidade de funcionários e, consequentemente, mais aglomeração – um facilitador para a disseminação do novo coronavírus.
Até faz sentido, portanto, que a região Sul esteja nos holofotes, pelos altos índices estaduais de contaminação do covid-19. No entanto, ao longo dos últimos meses, percebemos que, por estarem fora do foco da mídia em geral, as regiões menos assistidas e os frigoríficos menos conhecidos precisavam da mesma atenção.
A região Norte é a que, proporcionalmente, tem maior representatividade nos frigoríficos que abatem somente carne de gado. Dos 57 frigoríficos nortistas inspecionados pelo sistema federal de fiscalização, 49 são exclusivamente de abate bovino, ou seja, cerca de 86% do total das fábricas. O estado do Pará está em destaque e detém cerca de 42% dos frigoríficos de abate bovino da região Norte.
Os dados retirados do Sistema de Inspeção Federal (SIF) dialogam com o Relatório da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), onde quatro, dos dez municípios com maior quantidade de cabeças de gado no Brasil, ficam localizados no estado paraense. Normalmente, os estados com os maiores rebanhos também são os que possuem a maior quantidade de estruturas frigoríficas, já que existe enorme dificuldade e custo da locomoção do boi vivo das fazendas para os matadouros.
Região | % Frigoríficos que abatem exclusivamente carne de gado |
Norte | 86% |
Centro-Oeste | 71% |
Sudeste | 36% |
Nordeste | 21% |
Sul | 16% |
Acre, Amazonas, Maranhão e Tocantins são alguns dos estados com municípios interioranos pequenos no Norte do país que abrigam frigoríficos de inspeção federal, extremamente vulneráveis à pandemia. Isso ocorre, ou pela pouca estrutura de saúde pública, ou pela ineficiência na contenção do vírus. E sem dúvida, pelo aumento espantoso na quantidade de casos comparada à incidência nacional por cem mil habitantes.
No cruzamento de dados que fizemos no início de junho, coletamos uma amostra de trinta municípios com índices alarmantes de covid-19. Um terço deles, na região Norte do país.
Ignorar Canaã dos Carajás, Nova Olinda e Boca do Acre – de que falaremos a seguir – é também ignorar os R$ 143 bilhões de faturamento dos frigoríficos que abatem carne bovina no Brasil. Ignorar o Norte do país é também ignorar os incentivos ao desmate na década de 1970, as ‘inovações tecnológicas’ (como a inseminação artificial, transferência de embriões, a redução do tempo de abate) da década de 1980. Se a sociedade ignora os frigoríficos pouco conhecidos, está ignorando o lucro que essas empresas têm em cima dos funcionários que contraem o covid-19.
Estamos em home office
Escutei um dia desses do assessor de comunicação do frigorífico avícola Avivar – se não lembra, ou não leu, confira aqui – que um dos protocolos de segurança do frigorífico na pandemia foi manter parte da equipe em home office. Isso inclui o administrativo, o comercial e a própria assessoria.
Os funcionários, indispensáveis para a produção, continuavam saindo de casa no mesmo horário, pegando ônibus, indo aos vestiários trocar de roupa, almoçando nos refeitórios da empresa e cumprindo o horário de trabalho. Talvez conversando menos durante o expediente por causa do uso das máscaras e o medo de infectar as famílias.
Em Boca do Acre, estado do Amazonas, a história não muda muito. Apesar de ter esse nome, o município com pouco mais de trinta mil habitantes não fica no Acre. Está no estado do Amazonas, mas sobrevive economicamente também da capital acriana, Rio Branco.
Foi o estado do Amazonas que o frigorífico Agropam, mais conhecido na região como ‘Frisam’, escolheu para se instalar. Com aproximadamente trezentos funcionários contratados diretamente pela empresa e 25 por uma terceirizada, o matadouro ainda não exporta. Os maiores mercados são as regiões Sul, Norte e Nordeste.
A administração do frigorífico reconhece que, quando o novo coronavírus chegou ao município, “os primeiros funcionários afetados foram os da empresa”. De acordo com uma trabalhadora da secretaria do Frisam, que preferiu não se identificar, 70% dos funcionários da indústria contraíram o parasita. O gerente, no entanto, negou os dados. E disse, por exemplo, que nenhum trabalhador da empresa terceirizada havia sido contaminado.
Não é bem assim.
“As pessoas pediam pra parar, pra dar um tempo, mas, aí, o pessoal, os que gerenciam, disseram que não iam parar, porque era empresa alimentícia. Aí que começou: pessoas passando mal. Eu fui uma das primeiras a ser infectada”, relatou uma funcionária terceirizada.
Ela e o marido trabalhavam no frigorífico e tiveram covid-19. Ele em um dia, ela no outro. Ficaram 15 dias afastados e, quando retornaram ao matadouro, voltaram a passar mal. O quadro de saúde da mulher agravou para uma pneumonia.
“Parei de trabalhar de novo por cinco dias. Aí, com trinta dias da doença, tive pneumonia. Parei de trabalhar por mais dez dias e retornei ao meu trabalho. Eu tive todas as reações – da dor de cabeça à diarreia – e tive medo, porque eu parei de sentir cheiro e gosto. Na verdade, até hoje, não sinto cheiro”, relatou a ex-funcionária, que pediu demissão há algumas semanas.
Gabriela Marra, veterinária e doutora em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), explica que foram poucos os direitos que o trabalhador de frigorífico adquiriu ao longo dos anos, enquanto a indústria da carne desde o início favoreceu uma minoria de empresários.
“Enquanto o sistema de produção capitalista existir, vai ser difícil vermos uma mudança justamente por causa da questão do lucro. Eles não tão vendo um animal, tão vendo uma carne pra exportar. É um bife, um produto enlatado. E ele tem que estar pronto”, ressalta a pesquisadora.
Até o final desta apuração, não existiam Termos de Ajuste de Conduta (TACs) firmados entre o Ministério Público do Trabalho e o frigorífico. Enquanto isso, o vírus que chegou primeiro às grandes capitais, se espalha pelos municípios interioranos do Brasil, pelos quilombos e reservas indígenas. E os senhores do boi continuam em home office.