Em entrevista, o economista Renato Maluf comenta retrocesso nas políticas de segurança alimentar e nutricional e a relação da alta do arroz com a lógica privada de abastecimento
A situação da fome no Brasil piorou nos últimos 5 anos, e as autoridades de plantão têm culpa no cartório. O problema começa ainda com Dilma Rousseff (2011-2016), intensifica-se com Michel Temer (2016-2018), mas piora após a posse de Jair Bolsonaro (sem partido). Essa constatação, que está em indicativos como a última pesquisa da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), pode parecer óbvia.
No entanto, são poucos que compreendem tão bem como chegamos a um quadro social tão grave. Uma dessas pessoas é o economista Renato Sergio Maluf, que foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) entre 2007 e 2011. Ele esteve à frente do mais importante órgão consultivo no país sobre políticas de combate à fome, um colegiado que foi extinto por Bolsonaro em 1º de janeiro de 2019.
Maluf atribui o índice de pelo menos 10,3 milhões de brasileiros no limite mais grave da insegurança alimentar, segundo a Ebia, a dois fatores: a crise econômica vivida no país e, também, o desmanche de políticas públicas que foram importantes por fazer o país deixar o Mapa da Fome em 2014 — um indicativo das Nações Unidas dos países em que 5% ou mais da população tem uma ingestão calórica menor do que aquela considerada saudável.
“Quando você desmonta programas num contexto em que a realidade econômica está se agravando, o resultado a gente já sabia que ia vir ruim”, disse em entrevista por videoconferência a O Joio e O Trigo.
O economista e integrante do Comitê Gestor da Ação Coletiva Comida de Verdade também comentou que a pandemia do coronavírus, sob a presidência de Bolsonaro, aliada às ideias neoliberais do ministro Paulo Guedes, agravou a situação social do país. Na conversa, ele ainda detalhou como a privatização do abastecimento de alimentos é o principal fator que explica a carestia do arroz, entre outros assuntos. Leia os principais trechos abaixo.
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Pergunta — A imagem de um sítio em Mogi das Cruzes, na região metropolitana de São Paulo, onde um trator é utilizado para destruir pés de alface que não tinham sido colhidos e não poderiam ser comercializados é uma das imagens marcantes do país nos últimos meses. Entre outras coisas, ela não ilustra a falta de uma agenda alimentar nos últimos governos?
Resposta — O país carece de uma política de abastecimento que tenha sentido público, de regulação pública das atividades de produção, distribuição e consumo de alimentos. O Brasil há muito tempo vive sob regulação privada. O abastecimento alimentar é feito fundamentalmente sob regras privadas, com algumas exceções, de alguns organismos e alguns municípios que têm uma ação pública um pouco mais relevante.
Na lógica privada, se você tiver produto que não consegue vender, comercializar com um ganho que justifique, não interessa se tem gente precisando ou não, você se desfaz dele. Enquanto a pandemia ia se revelando mais grave, que ação relevante você viu do governo federal para tratar a questão alimentar do abastecimento?
O presidente repete um discurso bobo, coisa de ignorante no assunto: “Não vamos fazer nada, não intervir em nada, o mercado que resolva.” Aí então veio o pedido para que os supermercados tenham “patriotismo” e não mexam nos preços, uma coisa completamente bizarra, típica de quem não quer fazer nada. Nem sei se ele sabe o que deve fazer, e a sua equipe não parece querer, tampouco.
Tanto é verdade, olha o caso do arroz. Já se sabia que o arroz caminhava para uma situação de muita instabilidade. Estoques, quase nenhum. É um processo que já vinha há algum tempo: uma redução da área plantada [substituída por soja] especialmente no Rio Grande do Sul, que é de onde vem quase 80% do arroz que o Brasil consome.
“Tentam dizer que se não fosse a pandemia o país estava decolando. Mentira. Os dados mostram que isso é mentira”
O Brasil sempre foi autossuficiente [em arroz] e o que aconteceu foi que o país está sem estoque, os preços internacionais aumentaram, e a produção, que já era decrescente, uma parte dela foi desviada para exportação, porque pagava melhor.
Em março, antes de acontecer tudo isso, a gente prenunciava a possibilidade de crise que acabou se confirmando. Houvesse algum tipo de preocupação, o arroz era um caso que estaria no radar do governo já dois, três anos atrás. Nunca esteve.
A escala brasileira de segurança alimentar, anunciada semana passada com dados de dois anos atrás (2017 e 2018), permite fazer uma associação entre a condição de insegurança alimentar dos entrevistados e o padrão de consumo. Os principais alimentos das famílias que estão na situação mais grave de insegurança alimentar, que é a insegurança alimentar grave onde ocorre fome, são exatamente arroz e feijão.
Na medida em que as famílias vão vendo agravar a sua condição de insegurança alimentar, elas vão deixando de consumir certos bens por impossibilidade: carnes, verduras, legumes etc. Vão saindo até que no limite resta o arroz e o feijão.
O que poderia ser feito para amenizar esse problema do arroz?
Vamos abordar em dois planos. Um plano é o desmonte de políticas públicas, que está em curso desde o golpe de 2016 e teria que ser revertido. O Consea foi fechado, a Caisan [Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional] foi fechada, o tema alimentar saiu da agenda do governo federal e resta, por importância diferenciada, nas agendas de vários governos estaduais e municipais.
Então a primeira questão é a reconstrução do marco institucional e de políticas públicas que eram muito relevantes e foram desmontadas.
Foram elas que nos retiraram do Mapa da Fome, e o desmonte está nos levando de volta. Essa reconstrução depende fortemente do ambiente democrático e institucional do país. Eu não acredito que ela vai ser feita por governos com esse perfil. Por esse governo federal, jamais, e com governos com esse perfil eu também não creio.
Por outro lado, você tem uma importante participação da sociedade civil, que é onde você tem um número muito grande de iniciativas por todo o país e que permaneceram, aliás algumas foram até reforçadas neste contexto de descaso federal.
O que é isso? São iniciativas que refletem em parte o que eu chamo de solidariedade entre iguais, que é a solidariedade que interessa. A outra, que é essa digamos das empresas que se compadecem com os mais pobres, que fazem gestão social, isso para mim é propaganda institucional deles. Se quiserem doar dinheiro, que ótimo, [mas] não é o modelo em que eu acredito.
A emergência da pandemia exige ações que enfrentem a emergência. O nosso desafio é, ao agir para enfrentar a emergência, que se construam possibilidades futuras, e é possível isso. Muito dessas iniciativas de circuito de proximidade, feiras locais, conexão de produtor com consumidor, isso pode perfeitamente ser não apenas o enfrentamento de uma condição emergencial, mas pode ser a semente de dinâmicas sociais que continuarão a ser preservadas.
“Esse governo não tem e nem poderia ter, nem seria lógico que tivesse, um programa de estímulo à economia”
Isso eu acho que é bastante possível. Tem muitos projetos que vão nessa direção. Eu diria até que seria possível pensar mesmo nessas ações de solidariedade que se fazem em associações de moradores, centros comunitários, associações de favelas, periferias, onde está a doação de alimentos, doação de cestas.
É possível você tornar essas ações de caráter mais imediato, de atender necessidades de imediato, que elas se desdobrem e façam com que a questão dos alimentos permaneça na agenda dessas entidades. Permaneça, inclusive, incorporando outras referências.
Você diz, por exemplo, uma igreja com uma ação beneficente contra a fome articular-se com produtores rurais próximos da onde está?
Transformar as ações em face de emergências em uma dinâmica de educação alimentar e nutricional e criando condições para o acesso à alimentação adequada e saudável também por esses setores. O problema da população periférica ou das populações mais vulnerabilizadas, no geral, não é apenas não ter renda para comprar a alimentação saudável, é que elas não têm acesso físico, não têm carro para se dirigir a um grande supermercado onde você vai encontrar verdura.
Ela pode ir na venda da esquina, cuja pauta de produtos é a da indústria. Alimentos frescos ela terá dificuldade de comprar. Quando se aproxima a oferta destes bens dessas populações, mesmo aquela com carência, com renda limitada, o consumo destes bens sobe.
Para acontecer isso, você precisa que a ação pública apoie. Iniciativa da sociedade civil, iniciativas de organização de produtores, iniciativas de ONGs podem ter muito efeito, mas sozinhas elas não vão muito longe.
A questão é como fazer com que esta produção de alimentos adequados, saudáveis, com respeito à tradições, hábitos, à biodiversidade, tudo isso que a gente quer, fazer com que eles cheguem nas populações periféricas ou mais vulnerabilizadas.
A última edição da POF mostra que pelo menos 10,3 milhões de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar e nutricional. O que nos trouxe a esse cenário?
Primeiro: tinha uma crise econômica em curso no país desde 2015 e que foi se agravando a partir do golpe de 2016. Agravamento de crise econômica que é o nosso tema, quer dizer, principalmente desemprego e queda de renda, pobreza e até mais, miséria, anterior à pandemia. O que a pandemia está fazendo é agravar essa situação.
Ao lado disso, tem o desmonte das políticas públicas a partir de 2016. O desmonte do programa, o não avanço do Bolsa Família, a interrupção de programas de apoio a agriculturas familiares, a interrupção, o esvaziamento de programas como o das cisternas rurais no nordeste.
Quando você desmonta programas num contexto em que a realidade econômica está se agravando, o resultado a gente já sabia que ia vir ruim.
O que aconteceu? Se os dados da Ebia para 2014 mostraram que o Brasil deixou naquele ano a vergonhosa condição de estar no Mapa da Fome,
a inflexão da política pública teve como resultado imediato uma inflexão da curva da insegurança alimentar e nutricional. Se você fizer uma análise comparativa dos dados, você vai ver que a curva de insegurança alimentar vinha na descendente, e os dados de 2017-18 em relação aos de 2014 mostram a inflexão na direção do agravamento.
Se aplicássemos a Ebia agora, certamente já teríamos voltado ao Mapa da Fome, o indicador seria mais grave do que o indicador de 2017-2018. Um país integra o Mapa da Fome quando a ocorrência da fome se manifesta em no mínimo 5% da população, 5% ou mais, quando ela passa a ser considerada endêmica. A Ebia de dois anos atrás deu 4,6%, ou seja, está perto.
Essa inflexão é evidente, e provavelmente deve continuar. Aliás, o governo Bolsonaro agravou o que já estava fazendo o governo Temer, e a situação econômica piorou. Deve se agravar mais, e é muito provável que se agrave até o final do ano. Então essa é a razão, não tem nenhuma razão para ser otimista, nenhuma.
Os dados da Ebia são anteriores à eleição. Você acredita que o Bolsonaro pode se eximir desse problema?
Eu não tenho dúvidas de que o governo dele agravou essa situação, eu não tenho a menor dúvida de que agravou a crise econômica que já vinha se manifestando de antes. É simples. Me cite um programa econômico deste governo? Um, só um. Não precisa de mais de um não. Mostre um programa que tem a mínima possibilidade de ativar a economia…
“O governo Bolsonaro agravou o que já estava fazendo o governo Temer, e a situação econômica piorou”
Já ameaçaram com aquele Plano Marshall de araque naquela famosa reunião ministerial de 22 de abril que não foi pra lugar nenhum. Eles fizeram, tentaram algumas privatizações que nem de longe representam a retomada dos investimentos, nem de longe. Ou seja, você não é capaz de citar nenhuma ação efetiva, tirando, excluindo as iniciativas de desmonte e desproteção social, retirada de direitos, maior precarização do trabalho, que só fazem aprofundar a crise.
Em resumo, esse governo não tem e nem poderia ter, nem seria lógico que tivesse um programa de estímulo à economia. O credo neoliberal que o Guedes representa é a versão mais extremada dele. A ótica do teto de gastos e o equilíbrio fiscal é a morte de qualquer tentativa de ativar a economia. Todos os fatores vão na direção de que o governo Bolsonaro agravou a situação econômica.
Tentam dizer que se não fosse a pandemia o país estaria decolando. Mentira. Os dados mostram que isso é mentira. Não estávamos começando a voar em janeiro quando chegou a pandemia. Os dados [da Ebia] confirmaram que não é verdade. Ou seja, o que eu posso dizer? Um governo que não tem programa minimamente consistente e que se deixa levar por um credo neoliberal extremado o que faz é provocar a recessão. Não por acaso, é um credo que só se viabiliza, e a história mostra isso, com regimes autoritários.
Pelo país, quadros com aspiração de liderança nacional tentam se diferenciar de Bolsonaro. Um deles é o governador de São Paulo, João Doria (PSDB). No âmbito das políticas de segurança alimentar e nutricional, você vê diferenças entre os dois?
Eu não compararia… O Doria merece até comparação porque oportunisticamente usou o Bolsonaro para se eleger, portanto isso para ele não é um problema. E como a minha opinião sobre o Doria não é nem um pouco elogiosa, pela trajetória dele, pelo perfil dele, eu não tenho nenhum motivo para respeitá-lo como governante que siga princípios éticos.
Nunca ouvi ele se pronunciar sobre essas questões, exceto quando inventou aquela —deu publicidade— aquela farinata que ele teve que engolir rapidamente.
O estado de São Paulo tem uma história muito ruim nessa área porque o domínio tucano de décadas funcionou como um obstáculo à penetração dessa rede em São Paulo.
São Paulo era o único estado onde o Consea não conseguia entrar direito. O único. E era justamente pela partidarização das ações de fome e segurança alimentar e nutricional que o governo tucano promovia. Depois se conseguiu, e o próprio governo estadual aceitou. Mas eu não acredito que a pauta da segurança alimentar e nutricional caiba na agenda dele.
*Texto atualizado às 17h13 de 1º de outubro de 2020 para inclusão de informações