Bem viver: vacina contra esta e outras pandemias

Conceito de origem indígena engloba ações coletivas de alimentação, educação e cuidado que estão fazendo a diferença nas periferias

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As comunidades das periferias do Brasil estão cercadas de inseguranças (alimentares, de direitos), mas têm uma certeza consolidada há séculos: a de não poder esperar soluções do poder público. Com a eclosão do Covid-19, práticas coletivas baseadas em valores ancestrais, como reciprocidade, amizade e apoio mútuo, vêm garantindo serviços essenciais (físicos e mentais) a uma parcela da população que já desenvolveu sua própria vacina contra o descaso oficial: a tecnologia do bem viver.

Negros e moradores de periferias são os mais afetados pelos impactos econômicos e sociais trazidos pela pandemia mundial. Dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostram que desde fevereiro do ano passado – depois de confirmado o primeiro caso do novo coronavírus em São Paulo –,  além de o vírus estar sendo mais letal entre pretos e pardos, devido à situação de vulnerabilidade e impossibilidade de isolamento social em comunidades carentes e favelas, a situação socioeconômica desse grupo étnico também foi a mais prejudicada, porque apenas 34% dos negros no Brasil puderam trabalhar em casa. 

Distribuição de alimentos na cidade de Inhapi, no sertão de Alagoas | Foto: MST

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que 6,3 milhões de desempregados no país durante a pandemia são negros. E a Fiocruz indica ainda que, no Estado de São Paulo, 21% dos trabalhadores pretos não tiveram a oportunidade de adequar seu método de trabalho para home office e acabaram se expondo mais ao vírus em transportes públicos, fábricas, ou até mesmo sendo demitidos e tendo que explorar o mercado de trabalho informal – com bicos ou trabalhos autônomos, atividades exercidas por 42,5% da população negra economicamente ativa no país.

O panorama socioeconômico vem acompanhado de outros fatores agravantes. Esse grupo em específico também é considerado mais vulnerável por ser suscetível a doenças genéticas ou hereditárias como hipertensão, anemia falciforme, diabete melito (tipo II) e  deficiência de glicose, como recorda a Fiocruz. São elementos que podem corroborar a diminuição da imunidade e complicar as condições de saúde no contexto do novo coronavírus. 

Esse cenário deixa claro que, para compreender a vulnerabilidade do povo negro durante a pandemia, é necessário compreender também os cernes da desigualdade racial e social no Brasil. Por exemplo: ter um ambiente de trabalho dentro das normas de segurança para evitar a contaminação, morar em locais afastados de muitas pessoas, não utilizar transporte público – que por si só já gera aglomeração – são pontos cruciais que expõem mais a população preta periférica ao vírus.

“Temos mais mortes de negros (em São Paulo): 25% acima da média da cidade, para menos de 10% de pessoas brancas.”

Para Juliana Gonçalves, que tem o Bem Viver das Mulheres Negras como seu tema de mestrado, realizado na área de Estudos Culturais da Universidade de São Paulo, os dados que indicam as desigualdades sociais e raciais no Brasil só foram acentuados durante a pandemia.

“Uma vez que estamos falando de desigualdades estruturais, em um contexto de pandemia, isso se mantém”, afirma a investigadora, também jornalista e coordenadora de articulação política da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL).

Dados com recorte racial

De acordo com o Instituto Pólis, entre março e julho de 2020 a taxa de mortalidade (por coronavírus) de pessoas negras em São Paulo foi de 172 mortes por 100 mil habitantes. Já a taxa de mortes de pessoas brancas foi de 115 mortes a cada 100 mil. Dentro do recorte de gênero e raça, o estudo da organização não governamental aponta que, no mesmo período, a taxa de mortalidade de homens negros atingiu 250 mortes a cada 100 mil habitantes, enquanto a taxa para brancos foi de 157 mortes a cada 100 mil. Entre as mulheres brancas, o índice foi de 85 óbitos a cada 100 mil habitantes e, para mulheres negras, o indicador subiu para 140 mortes/100 mil. 

Jorge Kayano, médico sanitarista e consultor responsável por essa pesquisa, destaca a discrepância no número de óbitos entre pessoas brancas e negras em São Paulo. “Temos mais mortes de negros: 25% acima da média da cidade, para menos de 10% de pessoas brancas.”

Entre as regiões da capital paulista que possuem números de mortes mais expressivos, Kayano aponta que os bairros da Zona Leste são os mais afetados. “Quando olhamos os dados por distritos, 33 dos 96 são dessa região, onde aparecem situações absurdamente discrepantes e injustas”, comenta.

Lajeado (53,4%), Guaianases (52,1%), Iguatemi (40,2%), Cidade Tiradentes (37,2%) e Vila Curuçá (32,1%) apresentaram as cinco maiores diferenças de óbitos entre pessoas brancas e negras no período. 

Já na Zona Norte, as maiores diferenças foram observadas em Brasilândia (34,8%), Cachoeirinha (19,7%) e Perus (14,9%). Na Zona Sul, as diferenças percentuais dos distritos que se destacaram são bem menores: Capão Redondo (9,7%) e Jardim Ângela (5,1%).

Perspectivas de futuro, ações coletivas e educação acolhedora

A bióloga Vanessa Pose, que desenvolveu conteúdos educacionais para crianças com o objetivo de amenizar os efeitos do isolamento social sobre elas, diz que não tem esperanças quanto à melhora na qualidade de vida da população preta e pobre, principalmente levando em consideração as condições de trabalho desse grupo em específico durante a pandemia e também a previsão da vacinação contra a Covid-19.

“Essa politicagem que estão fazendo com a vacina sairá caro para a população. Como profissional, não enxergo uma estimativa antes de 2022 para todo o Brasil estar imunizado, sem contar as pessoas que são antivacina”, afirma.

Para Juliana Gonçalves a principal prática de bem viver – um conceito de origem indígena – que deve ser levada para um mundo pós-pandemia é a organização coletiva, um valor presente em comunidades negras e também uma prática ancestral do povo afrodescendente. 

“Surpreendentemente, essas práticas de união conseguiram se manter de pé durante a crise sanitária, e são elas que farão a diferença no amanhã. Vocalizar e nos organizar”, diz.

Jorge Kayano pondera que os dados da pesquisa do Instituto Pólis indicam que o futuro depende de ações de educação, que devem ser realizadas imediatamente.

“O mundo pós-pandemia é uma fuga, algo que ainda dependerá do que fizermos para chegar ao ‘pós’. Se a gente só ficar fantasiando sobre esse ‘pós’, e não tivermos um grande e forte movimento radical de mudança, não teremos pós-pandemia”, afirma. “Ao contrário de bem viver, teremos o horror de vidas péssimas, sem futuro, desesperadoras e desesperançadas.” 

“As práticas de união conseguiram se manter de pé durante a crise sanitária, e são elas que farão a diferença no amanhã. Vocalizar e nos organizar.”

Palloma Menezes, professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense e coordenadora da produção de verbetes do Dicionário de Favelas Marielle Franco, ressalta a importância de apoio e educação coletiva para a população negra.

“Os moradores de muitas dessas periferias do Rio de Janeiro têm se organizado com diferentes estratégias também para tentar prevenir a disseminação do vírus”, ela recorda. “Muitas favelas, por exemplo, criaram coletivos de comunicação comunitária para, neste momento, poder se comunicar melhor com os moradores e explicar, de forma simples, as recomendações da OMS.”

Menezes enumera ações como distribuição de máscaras, luvas e iniciativas de sanitização – termo adicionado ao dicionário elaborado pela pesquisadora.

“Falamos de pessoas que estão se organizando para limpar a própria favela com produtos recomendados por especialistas”, ela explica. A experiência pioneira no Santa Marta, conta a professora, deu origem à ideia de incluir o termo no material. “Eles estão usando os mesmos produtos que estavam sendo usados na China para poder desinfetar ruas e vielas, uma vez que o poder público não vem fazendo isso.” 

Gonçalves também observa que as iniciativas de bem viver voltadas para amenizar os efeitos negativos da pandemia em pessoas negras partem principalmente de coletivos. A mestranda, que faz parte do Coletivo Marcha das Mulheres Negras, contou que entre as ações tomadas pelo grupo durante esse período esteve a arrecadação de alimentos para a montagem de cestas básicas, por exemplo.

“É importante ressaltar que esses coletivos, que já existiam antes da pandemia, foram essenciais para suprir a população preta e periférica com mais do que alimentos. O acolhimento psicológico, rodas terapêuticas e redes de apoio e educação fizeram toda a diferença para essa população, fato que demonstra o protagonismo e a união dos coletivos para as questões sociais”, diz.

“Muitos alunos não sonham”

Oferecer um pouco de leveza ao cotidiano de isolamento social das crianças, e ainda compartilhar conhecimento, foi o objetivo também de Vanessa Pose, que mora no litoral norte de São Paulo, ao elaborar uma série de vídeos de divulgação científica sobre animais marinhos.

“A iniciativa surgiu quando imaginei que durante esse período elas estariam precisando de acolhimento e de um conteúdo educativo extrovertido”, explica a bióloga.

Além disso, Pose gravou aulas para o programa “Nas Ondas da Educação”, distribuído gratuitamente para crianças de comunidades carentes de São Paulo que não possuem computadores ou acesso à internet. 

Ainda com a ideia de acolher e educar de forma leve, o professor Ricardo Jales – pós-graduado em gestão escolar e que atualmente leciona a disciplina Projeto de Vida para adolescentes do ensino médio na região periférica de Guarulhos (Grande SP) – se colocou à disposição dos alunos para dialogar sobre assuntos referentes à pandemia, bem como outros debates que afligem os adolescentes. O educador conta que distribuiu questionários para que eles pudessem se expressar de forma livre e que com isso percebeu o quanto a crise sanitária estava afetando os estudantes. 

“Muitos alunos não sonham, pois não foram ensinados a sonhar. Para eles, trabalhar no mercado do bairro ou no lava-rápido já é suficiente. E o pós-pandemia pode ser avassalador, caso não retornem à escola.”

“Em todas as minhas aulas tentei trazer conteúdos que considero relevantes para os alunos, com temáticas que abordaram: amizade, influência da família nas escolhas do seu projeto de vida, ética, valores morais. Por não estarmos juntos presencialmente, percebi nas respostas de alguns deles, nos questionários, que estavam desmotivados e tristes”, conta. “Em casos específicos entrei em contato com os estudantes por telefone e conversei um pouco com eles, apenas para dar a sensação de que não estavam sozinhos.” 

Uma das perguntas presentes nos questionários elaborados pelo educador trata justamente dos desafios que os estudantes encontraram nessa fase de crise sanitária. Dentre as respostas, os alunos (que não foram identificados) afirmaram que os maiores obstáculos têm como origem justamente o isolamento social, o distanciamento dos amigos e do ambiente estudantil. Para Jales, não dar aulas presenciais afasta os alunos da escola, e por isso ele insiste em manter contato frequente com os estudantes: para que eles não desistam dos estudos.

“Se no início da pandemia eles ficaram perdidos, aos poucos foram entendendo a nova realidade e de certa forma se adaptaram. Mas essa adaptação não está sendo satisfatória do ponto de vista educacional. Ao menos em nossa escola”, ele analisa. “Muitos alunos começaram a trabalhar e com isso começaram a vislumbrar a continuidade da vida pós-pandemia longe da escola. Já conversei com alunos que não pretendem retornar para o ambiente estudantil. Acredito que perderemos muitos alunos nessa mesma situação.”

O educador afirma que a esperança para o futuro após o final da crise sanitária é poder continuar lecionando de maneira acolhedora para os estudantes pretos, pobres e periféricos, para despertar neles a vontade de sonhar.

“Muitos alunos não sonham, pois não foram ensinados a sonhar. Para eles, trabalhar no mercado do bairro ou no lava-rápido já é suficiente. Isso está muito enraizado na comunidade carente em que residem”, conta. “Percebo que se nivelam por baixo, pois infelizmente faltam exemplos para eles. E o pós-pandemia pode ser avassalador, caso não retornem à escola.”

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