Pandemia, corporações e “feminismo envergonhado”: a mão direita de Doria no governo de SP

Quem é Patrícia Ellen da Silva,  a secretária que é destaque na flexibilização da quarentena e junto ao empresariado paulista durante a crise da covid-19?

*Colaboração de João de Mari

Ela nasceu no Campo Limpo, periferia da cidade de São Paulo. Estudou e começou a trabalhar aos 15 anos, mas, também, recebeu muitos apoios estratégicos. Precisou, às vezes, da sorte, é verdade. Com essa soma, teve conquistas consideráveis nas carreiras empresarial e política. 

Patrícia Ellen da Silva, atual secretária do Desenvolvimento Econômico de São Paulo, se apresenta com esse histórico em vídeo do Agora!, movimento que co-fundou e cuja proposta central é uma suposta  “renovação política”. O combate à desigualdade social é o mote do discurso do grupo, integrado por nomes como os cientistas políticos Illona Szabó e Leandro Machado, além do apresentador da Rede Globo Luciano Huck. 

Para lembrar, Illona é presidente do Instituto Igarapé e especialista em segurança pública e, no ano passado, foi exonerada – por pressão das alas mais reacionárias do governo federal – dois dias depois de nomeada, após convite do então ministro da Justiça Sérgio Moro, para ser suplente no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Leandro é fundador de uma consultoria para “gestão de causas”. Tem passagem por multinacionais como Shell, IBM e Natura, onde atuou na área de relações governamentais. Segundo o site da Global Teachers Prize, premiação da qual é jurado, “desempenhou [em 2010] um papel ativo na campanha presidencial de Marina Silva e do candidato a vice na chapa, Guilherme Leal (um dos fundadores da Natura) pelo Partido Verde”. 

Luciano Huck dispensa apresentações, mas tem estado ainda mais sob os holofotes da política partidária nos últimos tempos pela aliança com Sérgio Moro em uma frente de centro-direita que, em 2022, pode contar também com João Dória. O apresentador, lembrado por ações assistencialistas em programas da Globo, é muito visto em encontros com figuras conservadoras da política nacional.  

Explicados os principais personagens que acompanham Patrícia, vale dizer que as disparidades sociais são um tópico recorrente nas entrevistas da secretária. E as falas públicas dela são temperadas com exemplos da sua história de vida, um caso de sucesso da tal meritocracia. 

Desde a infância, ela vive entre dois mundos. Para os colegas do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, era “rica”, porque o pai tinha um comércio na região. Já na escola particular em que estudou com bolsa, teve amizades que evitavam visitá-la em casa, por medo de ir até a região. 

Com boa parte da família ainda vivendo na periferia, Patrícia faz questão de destacar publicamente a distância que a separa dos parentes que residem na zona sul paulistana, enquanto ela mora na elegante região do Alto de Pinheiros, com as duas filhas gêmeas. 

Escalada

Aos 14 anos, a hoje secretária do governo do estado mais rico do Brasil iniciou a vida profissional depois de fazer um curso técnico de datilografia. Começou a trabalhar aos 15 e, aos 16, entrou na graduação de administração, na FEA-USP. Chegou a cursar direito ao mesmo tempo, mas não concluiu. E aos 20 anos começou a estagiar na mega-consultoria McKinsey & Company, depois de voltar de um intercâmbio entre Espanha e Inglaterra para aprender idiomas. 

Veio, então, um MBA na França, patrocinado pela McKinsey. Já o mestrado em Harvard, ela garante que foi custeado pelas próprias economias. Parou de trabalhar na época, com 32 anos. Curiosamente, ao mesmo tempo em que também passou a integrar a Fundação Lemann, fundada pelo bilionário suíço-brasileiro Jorge Paulo Lemann.       

Nesses dois anos sem salário, Patrícia conta que teve um pequeno apoio da instituição que carrega o sobrenome de Jorge Paulo, dono de um império de corporações composto por AB Imbev (maior cervejaria do mundo e dona da Ambev Brasil), Lojas Americanas e a rede de fast food Burger King. “O que a fundação Lemann fez na época foi uma bolsa simbólica, que não chegava nem a mil dólares”, justifica a secretária do governo Doria. 

Retribuição” à universidade pública? 

“Quem me ajudou de verdade foi a educação de qualidade, a que eu tive na Universidade de São Paulo”, enfatiza em entrevista ao Joio

No entanto, entre 2016 e 2017, Patrícia esteve à frente do projeto USP do Futuro, uma consultoria realizada pela McKinsey & Company, para repensar o modelo de gestão e governança da instituição e estreitar as relações da universidade com o setor privado. 

Aliás, foi o próprio empresariado que bancou o trabalho liderado por ela, estimado em R$5 milhões, segundo matéria da Folha de S.Paulo. Entre os nomes dos financiadores, parte deles ex-alunos da USP – como a secretária -, estão Roberto Setúbal (Itaú) e Pedro Passos (Natura).

Na época, a Associação dos Docentes da USP (Adusp) fez diversas denúncias e sugeriu que a iniciativa poderia resultar em “propostas de mudanças na legislação que permitam a cobrança de mensalidades, proibida pelo artigo 206, inciso IV da Constituição Federal”, segundo nota

Uma operação policial de busca e apreensão chegou a ocorrer na universidade e documentos foram entregues à Justiça. Porém, o mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que havia emitido o mandado, suspendeu as ações a partir dos argumentos da direção da USP de que os documentos não existiam e de que a determinação feria o sigilo da instituição. 

Antes mesmo de assumir o cargo no governo Dória, Patrícia Ellen havia se posicionado em entrevista à rádio CBN sobre a cobrança de mensalidades em universidades públicas. “[É para] Quem pode pagar, se puder pagar. Para que mais pessoas que não possam pagar tenham acesso, é uma discussão importante de se ter”, disse.

Assim que passou a trabalhar no governo do estado de São Paulo, em janeiro de 2019, incluiu na equipe da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, os assessores Thiago Rodrigues Liporaci, ex-chefe de gabinete da reitoria da USP, e Américo Ceiki Sakamoto, ex-coordenador do mesmo  USP do Futuro. 

Patrícia também é docente, mas não na universidade pública. Ela leciona “liderança adaptativa” no mestrado em Liderança e Gestão Pública, no Centro de Liderança Pública (CLP). Na instituição, fazem ou fizeram parte do comitê executivo e conselho administrativo nomes como Ana Maria Diniz (Grupo Península/Pão de Açúcar), Roberto Setúbal (Itaú) e Fábio Barbosa (Natura, ex-CEO de Santander, Febraban e Grupo Abril). 

A disciplina ministrada por Patrícia advém do conceito criado por Ronald Heifetz, professor do Center for Public Leadership da Universidade de Harvard. Ronald teria se baseado na Teoria da Evolução de Charles Darwin. O autor mistura conceitos da “sobrevivência do mais apto”, de Darwin, a questões socioeconômicas, o que soa bastante problemático, ainda mais num país tão desigual como o Brasil. Na descrição do curso no CLP, há a seguinte explicação: “desafios adaptativos exigem mudanças e isso tira as pessoas de sua zona de conforto”.  

Também professora no RenovaBR, organização social criada nas reuniões do CLP, Patrícia é ligada a Eduardo Mufarrej, ex-CEO da Tarpon Investimentos e Somos Educação. A Renova funciona como uma “escola de formação política que prepara ‘pessoas comuns’ de diversas origens e ideologias para renovar a democracia brasileira”, de acordo com o site institucional. 

Elefante nas costas 

O Centro de Liderança Pública, que se define como suprapartidário, tem como prioridade “desenvolver jovens líderes” para defender as principais bandeiras listadas pela organização. Atualmente, as prioridades publicadas no site são o enfrentamento à pandemia da covid-19, a reforma administrativa e a reforma da previdência.

A própria secretária, quando ainda não integrava o governo Doria, co-escreveu um artigo intitulado “O elefante previdenciário”, publicado no jornal Valor Econômico, em 2016. Junto com Nicola Calicchio, presidente da McKinsey para a América Latina, Patrícia defendia que “ao aprovar uma Previdência mais inclusiva, os constituintes [parlamentares que formularam e aprovaram a atual Constituição brasileira] de 1988 acabaram por conceber um organismo que se transformou num elefante nas costas da economia do país”. 

Segundo o texto, as normas da Previdência Social são “um incentivo para que pessoas se aposentem precocemente”, o que diminui o tempo de contribuição e, consequentemente, prejudica o “crescimento econômico de todo o país ”. 

A conclusão é que um sistema “previdenciário evoluído” seria um “cujo foco não é a proteção social pura e simples, mas a promoção de condições para o desenvolvimento”, o que, de acordo com os autores, está empacado desde 1988 por uma dificuldade política associada à falta de mudanças profundas na Previdência. 

Plano pandêmico

Patrícia Ellen tem aparecido na linha de frente do Plano SP, criado pelo governo paulista durante a pandemia. Apesar da página da iniciativa o descrever como “uma estratégia para retomar com segurança a economia”, a secretária enfatizou, em uma live do Banco BTG Pactual, que se trata de um “plano de gestão regionalizada das medidas restritivas” e que tem como um dos pilares a saúde, além da economia. 

“O que a gente está fazendo aqui não é um jogo, não virou uma brincadeira de todo mundo querer passar de fase logo. Nossa responsabilidade é estar na fase certa, porque estamos lidando com vidas e também com a economia”, afirmou, reiterando a questão da saúde. E concluiu que “a melhor saída para a economia é também a melhor saída para a saúde”. 

Em novembro de 2020, no entanto, claramente evitando falar em medidas mais restritivas que afetassem o empresariado paulista, a secretária negou que uma forte  segunda onda de casos de covid já dava sinais de chegar em São Paulo. Curioso é que, dias depois, ela estava ao lado de Doria no ato de recebimento das primeiras 120 mil doses da vacina coronavac, quando declarou que a ocasião era “emocionante”.             

Patrícia Ellen voltou, na semana passada, a estar no centro das decisões sobre a pandemia em solo paulista. Mesmo com o aumento de 34% nas contaminações, 30% nas mortes por complicações derivadas da covid e 8% nas internações pela doença no estado, ela tomou à frente do discurso pela manutenção de grande parte das atividades econômicas na fase amarela – a menos restritiva – do Plano São Paulo. “Não queremos punir quem está fazendo a sua parte”, justifica a secretária, ignorando a permissiva atuação do governo estadual na fiscalização das medidas de prevenção contra o novo coronavírus.                 

Na pasta do Desenvolvimento Econômico, Patrícia se ocupa de três eixos na “gestão da pandemia”: “a retomada da geração de empregos, retomada da atividade empreendedora e retomada da geração de faturamento e PIB pelas empresas”, explica a secretária, que se orgulha do recorde de formalização de abertura de empresas e faz questão de ressaltar que “não são da modalidade MEI [Microempreendedor Individual]”, num estado que tem mais de 1,5 milhão de casos de covid-19 e quase 50 mil mortes notificadas.    

Mais de um bilhão de orgulho 

Não resta dúvida: o orgulho de Patrícia está no “engajamento socia” por parte do empresariado na pandemia”. 

“Durante a pandemia, o que eu estou vendo é o maior movimento filantrópico que já vi, em todos os trabalhos que já fiz, em escala, em mobilização, em dedicação”, conta, enfatizando o desejo de que essa “onda” venha para ficar. 

“O meu papel nesse processo foi muito mais de mobilizar os empresários, até pelo meu trabalho anterior”, conta sobre a atuação nas ações emergenciais. “Muitos dos meus projetos, inclusive, que eu fiz de gestão pública quando era consultora, foi exatamente com doações e mobilização de causas, em grupos de empresários mais apaixonados por educação e outros mais apaixonados por sustentabilidade”, garante. 

Nessas experiências como consultora, ela atuou em diferentes governos. Por exemplo, no governo federal, quando Michel Temer (MDB) era presidente da República, de 2016 a 2018. 

Esse “engajamento” deu origem ao Grupo Empresarial Solidário de São Paulo, com mais de 251 instituições, segundo nota. Nomes de megaempresas que produzem alimentos ultraprocessados em escala planetaŕia, como AmBev, Marilan, Nestlé, Bauducco, Burger King,  Coca-Cola e JBS figuram na lista

A auditoria é feita pela empresa Pricewaterhouse Coopers Brasil (PWC), que também aparece na lista de doadores, mas demitiu cerca de seiscentos funcionários durante a pandemia, mesmo depois de aderir ao movimento “Não Demita”, como conta matéria da Folha de S.Paulo

As contas da PWC apontam mais de 1 bilhão de reais doados que passaram pela gestão Doria, para, então, chegar até as pontas – prefeituras, organizações e população. 

Patrícia cita a secretária Célia Parnes (Desenvolvimento Social) como a pessoa que “liderou o outro lado, que foi a maior operação de distribuição de cestas básicas e higiene já realizadas no estado de São Paulo”. 

O Joio fez um levantamento dos problemáticos alimentos obtidos por meio dessas doações e o podcast Prato Cheio fez um unboxing da cesta básica no episódio três da segunda temporada. Relatos documentados pelo G1 mostram, ainda, que houve entrega de alimentos fora da data de validade.

Para Patrícia, Estado e empresariado precisam caminhar lado a lado. Ela afirma  que esse “movimento de solidariedade e responsabilidade social por parte das empresas” é um legado que precisa ficar. “A população precisa desse apoio dos governos, de forma constante, e também do empresariado”, defende.

Versão 4.0

A secretária se define como “liberal progressista 4.0”, se referindo a escola político-econômica que defende – a do liberalismo econômico – somada à atenção para questões sociais e ao envolvimento com tecnologia e inovação. 

O conceito com ares inovadores que Patrícia Ellen menciona é baseado na “Indústria 4.0” ou “Quarta Revolução Industrial”, algo que vem sendo adotado pelo mercado “para otimizar processos de produção”. E vai ao encontro das falas e ações de gigantes do mercado.  

Se até pouco tempo a big data ou internet das coisas, cloud computing (computação em nuvem) e a tal indústria 4.0 eram termos de startups, agora setores da indústria os resolveram abraçar com força total. Uma delas é bem conhecida no Joio: a Nestlé, com a qual o governo Doria e mesmo a secretária mostram ter laços estreitos. 

Em maio deste ano, a empresa inaugurou um Centro de Inovação e Tecnologia, localizado no Parque Tecnológico de São José dos Campos, no interior de São Paulo, que já conta com representantes de mais de 300 instituições, entre empresas e universidades. 

Patrícia Ellen não apenas esteve presente na inauguração da estrutura, como também participou de uma roda de debates sobre tecnologia, ao lado de Marina Almeida (líder do Innovation Lab da Natura) e Carolina Sevciuc (diretora de Transformação Digital da Nestlé Brasil).

“A relação de São Paulo com a Nestlé é quase centenária”, diz o site do governo do estado. Isso porque, a transnacional de origem suíça instalou a primeira fábrica na cidade de Araras, interior do estado, em 1921, e atualmente “tem dez unidades industriais e seis centros de distribuição em território paulista, gerando 12 mil empregos diretos e 100 mil indiretos”, reforça o texto. 

Essa intimidade fez com que, em 2019, fosse fechada uma parceria entre a multinacional e a Secretaria do Desenvolvimento Econômico para a criação de projetos com foco na profissionalização de jovens, que estão incluídos em um negócio de R$1 bilhão.

Feminismo” envergonhado 

Antes de terminar a entrevista ao Joio, Patrícia faz questão de levantar o tópico de gênero. Esse tem sido um discurso recorrente da secretária, que é uma das quatro mulheres que lideram as 24 secretarias do estado de São Paulo. “Já que a gente falou do papel do empresariado, é muito importante [dizer que] as mulheres não passam de 20% em cargos de liderança em nenhum lugar e nós precisamos mudar essa realidade”, argumenta. Para ela, é preciso um olhar sistêmico para “buscar os sensos comuns trabalhando nas diferenças”. 

No entanto, no evento “Encontros Mega Brasil”, cujo tema era ‘Os Caminhos do Feminismo’, ela disse: “Se alguém me perguntar para definir feminismo, eu vou passar vergonha”. 

A atividade que aconteceu na Unibes Cultural em outubro de 2019 teve patrocínio da Anglo American, uma das maiores empresas de mineração do planeta, e da líder em vendas  de cigarros no Brasil, a Souza Cruz. Patrícia foi convidada para o debate “Os desafios do estado na implementação de Políticas Públicas para a Mulher”.

A secretária observou que só se deparou com os desafios de ser mulher quando foi trabalhar, pois “em casa,  sempre foi uma coisa natural ver as chefas de família e as crianças sem distinção”. 

Porém, ao seguir a linha de raciocínio sobre infância e gênero, Patrícia não consegue esquecer da economia e da produtividade. Sobre as brincadeiras escolhidas pelos adultos de acordo com o gênero das crianças, ela comenta: “A gente cria um problema grande [com a separação de brincadeiras entre meninas e meninos], que impacta depois na produtividade econômica do próprio país. A gente precisa ensinar nossas crianças a trabalhar raciocínio lógico, precisa dar liberdade para trabalharem com a criatividade”. 

No evento bancado pela mineração e pelo cigarro, o combate à violência contra a mulher foi colocado como um dos pilares do governo, ao lado da economia. A secretária citou o aplicativo SOS Mulher, que promete agilizar o atendimento a mulheres em situação de violência. “É um assunto sério [a violência contra a mulher], que a gente tem que discutir cada vez mais, que poucas mulheres têm coragem de discutir e compartilhar”, comentou. O que ela não citou é que o aplicativo é inútil para a maioria das mulheres, já que se restringe a quem já tem medida protetiva judicial. 

Já considerada possível candidata a vice de João Doria, se o governador tentar a reeleição em 2022, o potencial da atual secretária estadual para ocupar cargos de cada vez mais alto escalão fica evidente. Portanto, este perfil não poderia trazer apenas uma história pessoal.

Ele é também um convite para que leitoras e leitores enxerguem como uma imagem de sucesso individual e meritocrática pode ser construída e manobrada para fortalecer interesses privados.

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