Em entrevista ao Joio, o professor australiano de políticas públicas de alimentação Gyorgy Scrinis fala sobre o estado de coisas da ciência nutricional e sobre “Nutricionismo”, livro que acaba de ganhar uma edição brasileira
Gyorgy Scrinis tem sido um crítico do paradigma que se apossou da alimentação humana. Já faz quase uma década que o professor da Universidade de Melbourne, na Austrália, fundiu as palavras “reducionismo” e “nutrição” para denominar sua teoria sobre o nutricionismo. De lá para cá, não sem tristeza, ele viu inúmeros exemplos que apenas reforçam sua tese de que o olhar reducionista tem prejudicado a conduta de profissionais de saúde e da sociedade em geral.
O livro Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional chega ao Brasil numa parceria do Joio e da Editora Elefante, com o apoio da ACT Promoção da Saúde. Na obra, Scrinis remonta à origem do problema e descreve as várias nuances do paradigma do nutricionismo.
Já faz três décadas que atravessamos o que o pesquisador denomina como “a era do nutricionismo funcional”, ou seja, uma era na qual predominam as mensagens de benefícios de nutrientes isolados. Não é coincidência que essa abordagem se torne central justamente no momento em que os governos se retiram da regulação da saúde (e de várias áreas), inclusive afrouxando normas que pudessem induzir o consumidor a engano.
De lá para cá, as corporações se transformam nas principais propagandistas do nutricionismo. Em entrevista ao Joio, Scrinis resume: “É do interesse da indústria de alimentos continuar a manter o foco dos especialistas e do público nos nutrientes”.
Pensando em soluções, ele vai na linha do que é proposto por outros pesquisadores e pelo Guia Alimentar para a População Brasileira: devemos olhar para os padrões alimentares na hora de decidir o que comer, levando em conta o grau de processamento dos produtos.
Confira a seguir a íntegra da conversa, concedida por e-mail.
Logo na abertura do livro, você gasta algum tempo falando sobre a margarina, um produto que é muito consumido no Brasil. Por que você escolheu esse exemplo?
Os cientistas da nutrição acreditavam genuinamente que ela era “mais saudável” do que a manteiga apenas porque continha um pouco menos de gordura saturada. Mas eles ignoraram o fato de que a margarina é produzida por meio de um processamento muito intenso e da transformação química de óleos vegetais, o que produz gorduras trans — que eles agora consideram mais prejudiciais do que as gorduras saturadas. É um belo exemplo de como o foco em nutrientes individuais cegou os cientistas da nutrição para os possíveis impactos do processamento de alimentos na saúde.
Você também dedica um capítulo inteiro à história do fiasco da gordura trans. Hoje, como você analisa as consequências de décadas de exposição das pessoas a essas gorduras e a maneira como o caso foi abordado pela OMS e por organismos públicos de saúde?
Mesmo que existissem algumas evidências de possíveis danos das gorduras trans industriais, foi só em uma pesquisa mais sistemática na década de 1990 que os cientistas perceberam que essas gorduras trans podem ter uma série de impactos prejudiciais à saúde e que não há nível seguro de consumo. No entanto, hoje ainda são raros os governos ou agências de saúde que realmente aprovaram leis regulando ou banindo a presença de gorduras trans em alimentos e as técnicas de processamento que levam a elas.
Também argumento que lições erradas foram aprendidas com esse fiasco das gorduras trans. Categorizar as gorduras trans como simplesmente uma das muitas “gorduras ruins”, em vez de uma gordura ultraprocessada, serve para reforçar o foco nos nutrientes em vez de no papel do processamento industrial de alimentos.
No livro, você aponta a indústria de alimentos como grande propagadora do nutricionismo atualmente. De que maneira essas corporações alimentam essa lógica e por que isso é vantajoso para elas?
Na década de 1980, a indústria de processamento de alimentos percebeu que, ao manter o foco nos nutrientes, o nutricionismo desviou a atenção de especialistas e do público dos ingredientes de seus produtos. Melhor ainda, eles poderiam comercializar seus produtos como nutritivos e benéficos para a saúde, simplesmente adicionando ou subtraindo nutrientes isolados. É do interesse da indústria de alimentos continuar a manter o foco dos especialistas e do público nos nutrientes, embora muitos cientistas da nutrição tenham mudado e agora reconheçam a importância de estudar alimentos, padrões dietéticos e processamento de alimentos.
Em toda parte temos visto um extraordinário crescimento do mercado de comidas desenvolvidas em laboratório, como os hambúrgueres “do futuro”. Qual a sua opinião geral a respeito desses produtos? Eles podem ser soluções de fato ou serão apenas mais um desdobramento da lógica nutricêntrica?
O enquadramento desses produtos como “proteínas” é uma das estratégias utilizadas para enfatizar suas semelhanças nutricionais com a carne, ao mesmo tempo em que esconde os ingredientes específicos e as técnicas de processamento utilizadas em sua produção. Mas, em vez de oferecer alternativas genuínas, esses produtos “protéicos” alternativos na verdade ameaçam intensificar algumas tendências existentes no sistema alimentar. Esses produtos são ultraprocessados, com muitos ingredientes altamente processados e aditivos. São produtos embalados e prontos para o consumo, ao contrário da carne crua. Eles também são produzidos por um pequeno número de empresas e ameaçam intensificar a concentração de poder do mercado corporativo. No entanto, já temos refeições “plant-based” e alimentos que são nutritivos, deliciosos, minimamente processados, minimamente embalados, baratos e não controlados pela indústria alimentar: os grãos!
No prefácio à edição brasileira, você aborda o diálogo entre o nutricionismo e a classificação NOVA. Você poderia expor brevemente sua opinião a respeito da NOVA e do Guia Alimentar para a População Brasileira? E explicitar os pontos de contato entre a classificação que você propõe no livro e a NOVA?
O livro foi escrito há vários anos e eu não me refiro diretamente à classificação NOVA ou a alimentos ultraprocessados. Em vez disso, refiro-me ao meu próprio sistema de classificação de processamento de alimentos, incluindo a categoria de alimentos processados-reconstituídos. Mas eu gosto muito e agora uso a NOVA e o conceito de alimento ultraprocessado, que é definido de forma muito semelhante ao dos alimentos processados-reconstituídos. Também colaboro com o professor Carlos Monteiro e sua equipe da Universidade de São Paulo nessa pesquisa.
Eu amo o Guia Alimentar para a População Brasileira. O ponto de partida é que o foco não deve ser nos nutrientes, mas na ingestão de alimentos minimamente processados e sustentáveis e na manutenção de refeições tradicionais e padrões alimentares. Mas o Guia também destaca a importância de como comemos e enfatiza as dimensões sociais da alimentação. Fico feliz de ver que estamos começando a observar as diretrizes de outros países adotarem elementos do Guia brasileiro.
Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional
Autor: Gyorgy Scrinis
Tradução: Juliana Leite Arantes
Prefácios: Inês Rugani Ribeiro de Castro e Paula Johns
Parceria: O Joio e O Trigo
Apoio: ACT Promoção da Saúde
Edição: Tadeu Breda
Assistência de edição: Luiza Brandino
Preparação: João Peres
Revisão: Laura Massunari
Capa: Túlio Cerquize
Diagramação: Denise Matsumoto
Direção de arte: Bianca Oliveira