O Joio e O Trigo

Lobby corre solto na reta final da decisão sobre cigarro eletrônico

Com grande facilidade para pular ao outro lado do balcão, ex-dirigentes da Anvisa e políticos agem para aprovar novos produtos de tabaco 

Inventado em 2003, o cigarro eletrônico é criação do chinês Hon Lik. Porém, a novidade começou a pipocar em vários países do mundo em torno de cinco anos depois. O mercado era dividido entre pequenas fabricantes sem tradição no mundo do tabaco.  

Essas empresas não tinham dinheiro para fazer pesquisas clínicas que medissem o impacto do produto na saúde dos consumidores. Mesmo sem comprovação, propagandeavam que os dispositivos eram mais seguros do que os cigarros tradicionais.

Em muitos países, o uso floresceu no limbo regulatório. No Reino Unido, por exemplo, a proibição do fumo em bares e restaurantes levou os fumantes a adotarem o cigarro eletrônico como forma de burlar a lei. No Brasil, a coisa ia pelo mesmo caminho.

Em 2009, estados, como São Paulo, aprovaram leis proibindo o fumo em ambientes fechados de uso coletivo. No entanto, algumas dessas normas, compreensivelmente, não falavam nada sobre cigarro eletrônico. 

Ao mesmo tempo, o produto começava a chegar no território nacional nas malas dos viajantes ou importado para ser vendido em tabacarias, camelôs e sites na internet. 

Mas a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) agiu rápido. Em 28 de agosto daquele ano, sua diretoria colegiada concluiu que não havia evidências científicas sobre os produtos e proibiu a importação, a comercialização e a propaganda dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) – o que colocou o Brasil na vanguarda regulatória mundial. Hoje, outros 31 países proíbem a venda, incluindo nossos vizinhos Argentina e Uruguai.

Na época em que a Anvisa tomou a decisão, as gigantes do ramo ainda não tinham entrado no novo negócio. Isso mudaria a partir de 2012, coincidindo com a queda nas vendas dos cigarros tradicionais no mundo. 

British American Tobacco (BAT), Altria, Philip Morris, Japan Tobacco International (JTI), Imperial Brands… Cada uma tem, hoje, a própria marca fincada no território do vaping.  

Em 2014, esses dispositivos geraram 2,76 bilhões de dólares em faturamento – cifra que saltou para 15 bilhões em 2019. Para fazer com que esses números continuem crescendo, é preciso abrir novos mercados. Como o Brasil.

Por aqui, a derrubada da proibição desses dispositivos se tornou a tarefa número 1 do lobby do fumo.

A Anvisa, que debate a revisão da norma desde 2017, tinha prometido apresentar as conclusões agora em dezembro. E a indústria não espera sentada pela decisão. Aliás, nunca esperou.

A BAT foi direto à fonte e, agora, tem uma ex-diretora da agência para chamar de sua. Alessandra Bastos ficou no comando da Segunda Diretoria da Anvisa por três anos. Deixou o cargo em 19 de dezembro de 2020. Menos de um ano depois, foi contratada pela gigante do tabaco.

Alessandra Bastos ao lado do atual diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, durante entrevista coletiva sobre aprovação de vacinas em 2020 (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

A movimentação da BAT no último mês não deixa dúvidas: a empresa está intensificando o lobby pelos dispositivos eletrônicos. E, nesse sentido, tenta fazer cabeças dentro e fora da agência. 

No dia 9 de dezembro, Bastos foi recebida pela responsável pela Terceira Diretoria da Anvisa, Cristiane Jourdan, para falar sobre o debate em curso na agência. 

Na esfera da opinião pública, a BAT tem coçado o bolso. Em 26 de novembro, promoveu conteúdo pago com cara de matéria jornalística no UOL. Segundo a área comercial do portal, esse tipo de publicidade disfarçada pode custar até R$ 300 mil, dependendo do segmento em que se insere e da região que visa a atingir. A matéria apareceu vários dias na home do portal de notícias. 

A BAT também emplacou artigos assinados por Alessandra Bastos. Em 22 de novembro, saiu o primeiro, na Bússola, uma plataforma de conteúdo alugada pela revista Exame para a FSB, maior empresa de comunicação corporativa do país. No dia 10, saiu o segundo artigo – dessa vez, na tradicional coluna Tendências e Debates da Folha de S. Paulo.  

Os artigos são bem semelhantes. Defendem que o Brasil se mire no exemplo de países como os Estados Unidos, que permitem o uso dos dispositivos.

Contudo, se o Brasil realmente se espelhasse na Anvisa de lá – a Food and Drug Administration (FDA) –, Alessandra Bastos não poderia fazer lobby para a BAT. Os EUA têm regras infinitamente mais rígidas para evitar a porta giratória entre  agências reguladoras e o setor privado. 

Ex-funcionários são proibidos de agir em nome de empresas no âmbito  governamental e para influenciar a opinião pública se o assunto do lobby se situar na mesma alçada em que atuavam. Para o resto da vida. 

E se o assunto não estiver exatamente na sua alçada, mas fosse discutido ao longo do  último ano no cargo, você fica impedido de fazer lobby em relação a esse tema por dois anos. Essa regra inviabilizaria a atuação de Bastos.

No Brasil, a norma que trata do assunto é relativamente recente, de 2019. A Lei das Agências Reguladoras, porém, estabelece um período de quarentena bem tranquilo para ex-diretores como Alessandra: seis meses.  

A farra é grande: uma pesquisa da USP concluiu que, entre 1999 e 2018, o destino de 44% dos ex-dirigentes das duas agências reguladoras de saúde – Anvisa e ANS – foi o setor regulado. 

 “O Brasil deveria ter uma regra bem mais rígida”, defende Adriana Carvalho, diretora jurídica da ACT Promoção da Saúde

Há anos acompanhando o vai e vem na Anvisa, ela acredita que esse arranjo tem o potencial de comprometer a atuação dos diretores, que já assumem o cargo “com a expectativa de, ali na frente, trabalharem para as empresas que regulam”.  

Já para as empresas é ótimo. “Além de contarem com alguém que conhece a tramitação dos processos, quem pode facilitar as coisas e, às vezes, atuou junto aos atuais diretores, ainda passa a impressão de credibilidade junto à opinião pública”, resume.

Muito tête-à-tête

O Joio fez um levantamento das reuniões entre a indústria do tabaco e a Anvisa nos últimos cinco anos, quando o lobby pela derrubada da proibição começou. No total, encontramos 87 registros. 

Em comparação, a sociedade civil, a academia, entidades de médicos e representantes de órgãos do governo federal que atuam no combate ao tabagismo somam apenas 15 reuniões no período. 

Identificamos dois tipos de agenda com a indústria.

Nas chamadas “audiências de parlatório”, as empresas são recebidas pela área técnica diretamente responsável pelo tema, mais conhecida pela sigla GGTAB do que pelo nome comprido: Gerência-Geral de Registro e Fiscalização de Produtos Fumígenos, derivados ou não do tabaco.   

Esses encontros seguem regras estabelecidas por uma portaria da Anvisa. O pedido de reunião precisa ser relacionado ao esclarecimento de um assunto complexo demais para ser compreendido por meio de documentos. As audiências são gravadas.

Porém, há outro tipo de agenda sem amarras, digamos assim. E ela é, de longe, a forma preferida de a indústria interagir com a Anvisa, correspondendo a 60 dos 87 registros. 

Normalmente, o alvo é o primeiro escalão da agência, o pessoal que compõe a diretoria colegiada.

Como as decisões da Anvisa são tomadas por maioria, é necessário assegurar três de cinco votos. Assim, diretores de outras áreas também são abordados. 

Alessandra Bastos é, de novo, um bom exemplo. Ela era responsável pela diretoria que trata de medicamentos, vacinas e alimentos. No entanto, foi bastante procurada pelas empresas de fumo: em três anos de mandato, se reuniu duas vezes com a Philip Morris Brasil e cinco vezes com a futura cliente, BAT Brasil (então Souza Cruz).

As empresas também estão sempre de olho nos diretores-presidentes da Anvisa. 

Jarbas Barbosa estava à frente da agência quando o debate sobre os dispositivos eletrônicos para fumar foi reaberto. Recebeu a Philip Morris duas vezes – em 2017 e 2018 – e a Souza Cruz uma vez, em 2018. Na agenda, o assunto é explícito: “regulamentação de produtos de nova geração”. 

Os responsáveis pela Anvisa também são alvo dos parlamentares aliados das indústrias que regulam. 

Então senadora pelo PP do Rio Grande do Sul, Ana Amélia se envolveu bastante na discussão dos dispositivos. Procurou Jarbas Barbosa duas vezes, em outubro de 2017 e março de 2018. Um mês depois desse último encontro, a Anvisa promoveu um painel sobre os dispositivos. Ana Amélia estava lá, defendendo.

Barbosa foi substituído por William Dib, o indicado de Michel Temer, que comandou a agência entre 21 de setembro de 2018 e 21 de dezembro de 2019. Ele recebeu duas vezes a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) – e várias vezes as da principais associadas da organização: Japan Tobacco International (1), Souza Cruz (3), Philip Morris (2) e seu lobista, Cássio Cunha Lima.  

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As vantagens de um político lobista 

Cássio Cunha Lima conversa com Aécio Neves na época em que ambos eram senadores, em 2017 (Wilson Dias/Agência Brasil)

Cunha Lima foi uma das figuras mais ativas durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT). Antes disso, como líder do PSDB no Senado, deu força para a manobra antidemocrática do colega de partido Aécio Neves, que, ao perder as eleições de 2014, questionou a legitimidade do pleito. 

Apesar de toda a exposição (ou por causa dela), o tucano não conseguiu se reeleger senador pela Paraíba em 2018, mas não ficou parado: resolveu fazer da influência política acumulada em oito anos de mandato um bom negócio.  

Como revelou o Estadão na época, o ex-senador abriu uma empresa de consultoria, a Advice Brasil. O CNPJ foi registrado em 27 de fevereiro de 2019. Menos de um mês depois, Cunha Lima já batia na porta da Anvisa e outros órgãos como “consultor” da Philip Morris: foi recebido em 19 de março pelo diretor que era responsável pela área de tabaco na agência, Renato Porto. O assunto da conversa? O dispositivo eletrônico para fumar da empresa. 

Por sua trajetória, Cunha Lima é um lobista diferenciado. Até hoje, aparece como “senador” no registro de várias agendas com o Executivo federal. Consegue abrir portas nos altos escalões. Já foi recebido três vezes pelo atual diretor-presidente da Anvisa, o contra-almirante Antônio Barra Torres. A título de comparação, Barra Torres recebeu a Abifumo e a BAT Brasil uma vez cada. 

Cunha Lima já participou de, no mínimo, seis reuniões na Anvisa, duas reuniões no Ministério da Economia e uma reunião na Secretaria-Geral da Presidência com o então ministro Onyx Lorenzoni – um grande aliado da indústria do tabaco. 

Embora baseada em dados oficiais, essa é apenas uma estimativa, já que no governo Jair Bolsonaro muitas agendas não têm informações detalhadas sobre participantes e pautas.  

Associações de usuários ou de fachada?

A expectativa de aprovação dos dispositivos eletrônicos também anda animando outros personagens da fauna da fumaça. 

Em 27 de julho de 2021 foi criado o Direta, sigla para Diretório de Informações para Redução de Danos do Tabagismo. O nome soa sério, mas a iniciativa é tocada por um influenciador digital. 

Trata-se de Alexandro Lucian, ou simplesmente “Hazard” – de quem já falamos aqui no Joio. Ele é fundador do Vapor Aqui, site dedicado à promoção dos dispositivos eletrônicos para fumar, com direito à análise dos produtos, cuja propaganda é proibida pela Anvisa. 

Ele chegou a ser autuado pela agência em março de 2019, mas a multa – de R$ 5 mil – parece não ter feito nem cosquinha. Em agosto daquele ano, quando a Anvisa promoveu em Brasília a primeira audiência pública sobre os dispositivos, Hazard fez questão de gravar um vídeo usando cigarro eletrônico na frente da sede da agência.

O influencer Alexandro Lucian em agosto de 2019, antes da primeira audiência pública sobre os dispositivos em Brasília

O Direta foi registrado como associação “de defesa de direitos sociais”. Entre as atividades previstas, estão várias potencialmente rentáveis: prestação de consultoria empresarial, organização de eventos, ensino e treinamento.

E porque o Brasil não é para principiantes, Dirceu Barbano, que era diretor-presidente da Anvisa quando a proibição dos dispositivos eletrônicos foi aprovada, está no conselho consultivo do Direta. Depois de deixar a agência, ele também virou consultor. 

Segundo Mônica Gorgulho, que também é membro do conselho, o Direta é “resultado direto” de dois seminários promovidos em 2019 e 2020 com patrocínio da Philip Morris Brasil. 

No post sobre o primeiro seminário, Hazard escreveu: “Meu agradecimento à Phillip Morris que sempre lembra de mim para divulgar o vaping brasileiro”. 

Hazard também aparece no conteúdo patrocinado pela BAT em 26 de maio de 2021, no Estadão Blue Studio – braço do jornal que vende conteúdo para marcas –, junto do CEO da empresa, defendendo a liberação dos dispositivos no Brasil. 

Recentemente, uma reportagem do Investigative Desk em parceria com o jornal francês Le Monde revelou parte da teia que liga as associações de usuários à indústria do tabaco e, quem diria, a organizações de direita. 

O Direta é vinculado à Aliança Mundial dos Vapers (World Vaper’s Alliance) – que, por sua vez, é ligada ao CCC, sigla para Consumer Choice Center.

Com quase 1 milhão de euros em caixa no ano passado, o CCC é patrocinado em parte pelas três gigantes do tabaco que, no Brasil, dividem o mercado de cigarros entre si: BAT, Philip Morris e Japan Tobacco International.

O CCC foi lançado em 2017 como um projeto de uma organização de direita chamada Estudantes pela Liberdade (Students for Liberty). Se o nome não soa estranho é porque essa organização tem presença no Brasil – e está na origem de outra sigla inconfundível, o Movimento Brasil Livre (MBL). 

A Students for Liberty é uma das várias organizações financiadas pelos irmãos Koch – bilionários estadunidenses conhecidos por irrigar com muitos dólares o negacionismo ao aquecimento global e o chamado libertarianismo, que tem como pilares a defesa irrestrita da liberdade individual mesmo quando isso impacta a sociedade negativamente  – e explica muita coisa que vimos no Brasil e no mundo ao longo dessa pandemia. O “direito” de não se vacinar. Ou o “direito” de não usar máscara. 

E esse é o cimento que liga todas essas coisas: a defesa do direito de escolha, incluindo o de fumar. Para assegurar esse direito, por exemplo, a CCC defende que não haja tributação sobre o cigarro eletrônico – o que é bastante conveniente para as mesmas gigantes do tabaco que a patrocinam.

Certamente não é por acaso que a BAT, então Souza Cruz, tenha patrocinado um evento bem importante para a direita no Brasil, o Fórum da Liberdade, em 2014 e 2015. Ou que Leandro Narloch tenha sido convidado pelo Vapor Aqui e seus parceiros como palestrante no seminário que promoveram em 2020 e foi patrocinado pela Philip Morris.

Um dos achados da reportagem do Investigative Desk e do Le Monde é que, no caso da World Vaper’s Alliance, a mesma empresa que faz os vídeos de “testemunhos” de pessoas que largaram o cigarro tradicional pelo vaping (tipo de conteúdo que o Vapor Aqui também explora), é especializada numa prática conhecida como “astroturfing”. Consiste basicamente em passar mensagens que os clientes desejam por meio de organizações ou campanhas de fachada, com cheirinho de sociedade civil. 

Isso aconteceu em 2017, quando a Red Flag, nome dessa empresa, organizou uma campanha para defender o uso do glifosato – bancada pela companhia que inventou o agrotóxico, a Monsanto. Bastou reunir uns poucos fazendeiros e o circo estava armado.

A BAT é uma das principais clientes da Red Flag – o que, junto com a lista de financiadores da CCC, levanta muitas questões sobre a quem verdadeiramente serve a World Vaper’s Alliance. 

Em novembro de 2021, Hazard apareceu no site da World Vaper’s Alliance como parceiro de destaque

Antes do Direta, já havia no Brasil outra associação criada com a justificativa de reunir usuários dos dispositivos eletrônicos para fumar, a THR – sigla em inglês para Tobacco Harm Reduction

Em comum, ela também tem ligações de terceiro grau com a indústria do tabaco. No caso, com a Philip Morris. Como você já leu aqui no Joio, a THR é ligada à International Network of Nicotine Consumer Organisations (Innco) –, que, por sua vez, recebeu financiamento da Fundação Futuro Sem Fumaça, criada pela Philip Morris como parte do reposicionamento de mercado da gigante do tabaco no qual o vaping é central. 

Outra característica que une essas organizações é que falta povo, digamos assim. Todas têm alcance baixíssimo nas redes sociais. Se fossem um animal, seriam um cachorro pequenininho, mas que late bastante.

A World Vapers’ Alliance tem 3,9 mil seguidores no Twitter e no Instagram. O CCC tem por volta de três mil. O Direta tem 399 seguidores no Instagram e 36 no Twitter. 

Criada em 23 de julho de 2019, a THR Brasil tem 200 seguidores no Twitter e 100 no Facebook –, mas enviou quatro porta-vozes para uma das audiências públicas promovidas pela Anvisa sobre os dispositivos eletrônicos para fumar: Fernando Rodrigues, Pedro Carvalho, Luís Henrique Aquino e Jenifer Silva Freitas. 

Foto: Adobe Stock

Onde há fumaça…

Em 2016, a Anvisa lançou um livro que reunia a maior parte das evidências científicas sobre os dispositivos eletrônicos para fumar publicadas até aquele momento. 

A revisão concluía que ainda havia “pouquíssimos estudos” sobre o assunto e que os existentes tinham baixa consistência e erros metodológicos. Passados sete anos da proibição, ainda não havia nada que corroborasse as alegações feitas pelos fabricantes sobre as vantagens dos produtos, especialmente em relação ao tratamento da dependência de nicotina. 

“Em curto prazo, qual o impacto nos sistemas cardiovascular e respiratório?”; “Qual o efeito de longo prazo na saúde decorrente das inúmeras substâncias presentes no vapor líquido?”; “Quais as consequências do uso dual?” – ou seja, do uso dos dispositivos e do cigarro comum –; “Seria o DEF uma nova porta de entrada para o tabagismo?”. 

Essas são algumas das perguntas feitas na época por Stella Regina Martins, médica responsável pela revisão. Especialista em dependência química do Programa de Tratamento do Tabagismo do InCor, o Instituto do Coração da USP, ela recomendava a manutenção da proibição. 

No mesmo ano, a agência reguladora deu o pontapé para a definição das questões regulatórias que iria priorizar no próximo triênio. E, contraditoriamente à revisão que acabava de publicar, decidiu revisitar a proibição dos dispositivos eletrônicos para fumar.

A abertura do processo regulatório dos DEFs foi precedida por reuniões como a de agosto de 2016, quando Renato Porto, então diretor da Anvisa, recebeu Analucia Saraiva, lobista da Souza Cruz que viria a ser a principal porta-voz da empresa na comunidade científica brasileira na defesa do cigarro eletrônico.

No artigo “A proibição dos cigarros eletrônicos no Brasil: sucesso ou fracasso?”, André Luiz Oliveira da Silva e Josino Costa contextualizam a reabertura como resultado da pressão da indústria do tabaco e dos “entusiastas” – leia-se, o movimento supostamente espontâneo dos vapers.  

De acordo com eles, essa informação teria vindo de uma “comunicação pessoal” da então gerente-geral de Produtos de Tabaco da Anvisa. Os autores não dão nomes, mas fizemos as contas e essa pessoa é Patrícia Francisco Branco. 

Coincidência ou não, ela deixou a área três semanas antes da primeira audiência pública sobre o assunto, que aconteceu em 8 de agosto de 2019. Sua exoneração, a pedido, ocorreu em 17 de julho.

Dois anos depois, foi a vez de o próprio André Luiz Oliveira da Silva pedir exoneração. Ele ocupava a chefia da Coordenação de Processos de Controle de Produtos da GGTAB. A exoneração aconteceu em 28 de julho e foi publicada na edição do dia seguinte do Diário Oficial da União.  

No mesmo dia, uma pessoa de fora da Anvisa – Luiz Bernardo Marques Viamonte – assumiu o cargo de gerente-geral de Produtos de Tabaco da Anvisa, antes ocupado pela servidora Stefania Piras.

A mudança logo foi denunciada pela Univisa, a Associação dos Servidores da Anvisa. Em longa nota publicada no dia 30 de julho, a entidade apontou falta de transparência na troca, já que Viamonte foi nomeado sem seleção prévia – algo previsto em uma norma da agência

A Univisa dá a entender que a área técnica que lida, nas suas palavras, com o “poderio econômico da indústria do tabaco” foi enfraquecida. “Fragilizar a GGTAB é enfraquecer a política de controle do tabaco nacional”, diz o texto, que também liga o contexto em que ocorreu a nomeação à cessão de nacos cada vez mais importantes do governo ao Centrão – o que exigiria a “máxima vigilância por parte de reguladores e dirigentes da agência” contra processos de captura.

O assunto também mereceu atenção do Sinagências, sindicato que representa trabalhadores de todas as agências reguladoras ligadas ao governo federal. 

A entidade foi assertiva: ligou a troca de Piras por Viamonte ao “grande interesse e pressão da indústria tabagista em liberar a comercialização e propaganda dos dispositivos eletrônicos para fumar no Brasil”.

Em entrevista ao UOL, o presidente do Sinagências, Cleber Ferreira, chegou a denunciar que Cristiane Jourdan, diretora a quem a área de tabaco da Anvisa está subordinada, teria dito que os técnicos estariam “sendo muito sonhadores” ao pensarem que a proibição aos dispositivos poderia continuar de pé no Brasil. Em resposta à reportagem, Jourdan negou que tenha dito isso.

Expectativa

O relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a epidemia de tabagismo incluiu dados sobre os dispositivos eletrônicos pela primeira vez em 2021. 

No grupo de 79 nações que permitem os dispositivos, as regras variam muito – e, por vezes, são totalmente diferentes das restrições aos produtos de tabaco tradicionais. 

Apenas oito países obrigam as empresas a estamparem avisos nas embalagens. E só 30 proíbem as baforadas em ambientes públicos fechados.  

A posição da OMS é clara: os dispositivos são perigosos e o enfoque da regulação deve ser a máxima proteção à saúde das pessoas.

Hoje, talvez a principal preocupação da organização e dos especialistas em controle do tabagismo seja com os adolescentes. Isso porque, de acordo com a OMS, a maioria dos fumantes se torna dependente até os 19 anos, e jovens que já experimentaram esses dispositivos se tornam duas ou três vezes mais propensos a usar regularmente cigarros convencionais do que quem nunca entrou em contato com eles. 

A junção da nicotina, uma substância altamente viciante, com a tecnologia tem um apelo explosivo – e já dá para ver os destroços deixados por essa bomba em alguns países. 

Uma das diversas lojas abertas pela Philip Morris para o dispositivo eletrônico de fumar IQOS que lembram as lojas da Apple. Essa fica em Osaka, no Japão. (Tokumeiga Karinoaoshima/Wikimedia Commons)

O caso dos Estados Unidos é, de longe, o que causa mais burburinho. Em 2011, 1,5% dos estudantes do ensino médio usavam cigarros eletrônicos. Em 2019, esse número saltou mais de 17 vezes, chegando a 27,5%. Com a pandemia obrigando os jovens a ficarem em casa sob a vigilância dos pais, a prevalência deu uma refluída, chegando a 19,6% em 2020.

Em setembro, um estudo feito pela Food and Drug Administration (FDA) – equivalente da Anvisa nos EUA – estimou que mais de dois milhões de estudantes do ensino fundamental e médio usam cigarros eletrônicos por lá.

Em comparação, no Brasil, a última Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, realizada em 2019 pelo IBGE, revelou que apenas 2,8% dos estudantes de 13 a 17 anos haviam feito uso do cigarro eletrônico nos 30 dias anteriores à enquete.

No entanto, 16,8% dos entrevistados já haviam usado o dispositivo alguma vez na vida – número que chegou a 22,7% entre os estudantes de 16 e 17 anos.

Por aqui, o uso regular dos dispositivos eletrônicos se concentra entre os jovens, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, também feita pelo IBGE em 2019. 

A faixa entre os 15 e os 24 anos é responsável por 70% do total de uso, que atinge 0,64% da nossa população, aproximadamente um milhão de pessoas.

Os cigarros eletrônicos foram vendidos nos Estados Unidos por mais de uma década com pouca regulamentação, mas a FDA tem conduzido uma gigantesca revisão que cobre cerca de dois milhões de produtos para determinar quais podem permanecer no mercado. 

Em outubro, a agência concluiu que os aerossóis dos dispositivos eletrônicos são significativamente menos tóxicos do que os cigarros tradicionais – e, nesse sentido, são uma alternativa para quem já fuma.

A decisão, no entanto, tem dividido a comunidade científica preocupada com o problema de saúde pública representado pelo apelo bem documentado dos produtos aos jovens.

Nos EUA, 70% dos jovens entre 12 e 17 anos dizem que usam cigarros eletrônicos porque vêm em sabores – e existem aproximadamente 16 mil deles no mercado. 

Para minimizar esse apelo, a FDA autorizou, por enquanto, apenas cartuchos de nicotina com sabor de tabaco, vetando mais de um milhão de outros produtos com sabores.

E frisou que a autorização “não significa que esses produtos sejam seguros” ou chancelados pela FDA. “Todos os produtos do tabaco são prejudiciais e causam dependência e aqueles que não usam não devem começar”, disse a agência em comunicado.

Mesmo assim, a decisão da FDA tem sido usada para convencer o público brasileiro de que é hora de abrir o mercado aqui também, em um momento em que a decisão da Anvisa está mais perto do que nunca.

O relatório de Análise de Impacto Regulatório, elaborado pela área técnica da agência, ficou pronto em 26 de novembro de 2021. 

Segundo a assessoria de comunicação da agência, o documento está com Cristiane Jourdan. Caberá a ela apresentá-lo aos outros quatro diretores da agência. 

Se o relatório defender a derrubada da proibição, o texto da nova norma vai à consulta pública, mas caberá à diretoria colegiada aprovar a versão final. 

O caminho pode ser mais comprido. Caso o relatório seja pela manutenção da proibição, é provável que Jourdan decida abrir uma tomada pública de subsídios, mecanismo de consulta em que o relatório é submetido à sociedade – quando a indústria poderá contestar o que estiver escrito ali.

Por Maíra Mathias

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