Levantamento expõe necessidade de novas pesquisas para entender se a alimentação tradicional brasileira tem perdido espaço entre crianças de baixa renda
O arroz com feijão foi desbancado pelos ultraprocessados na alimentação de crianças brasileiras de baixa renda? A alta inflação dos alimentos, o empobrecimento das famílias e os efeitos socioeconômicos da pandemia são sinais de que os ultraprocessados ganharam mais alguns passos na disputa com a dieta tradicional do país.
Um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) com beneficiárias do Bolsa Família ajuda a preencher algumas lacunas. Mas o fato é que, por ora, há mais perguntas do que respostas. O Brasil vai precisar de novos levantamentos para entender se os últimos anos inverteram, de maneira mais ampla, a tendência que existia antes da pandemia de que as camadas mais baixas tenham um menor consumo de ultraprocessados.
O levantamento do Unicef, publicado em dezembro, mostrou que, durante a pandemia, 72% das crianças com menos de 6 anos de idade beneficiárias do Bolsa Família receberam alimentação insuficiente ou deixaram de fazer refeições em função da diminuição na renda de suas famílias.
A pesquisa foi conduzida com 1.343 famílias residentes na Amazônia Legal, no Semiárido Nordestino e em dez capitais das regiões Sudeste, Nordeste e Norte, entre março e abril de 2021. Em 56% dos casos, as mães eram as responsáveis pelo sustento do núcleo familiar.
Em todas as regiões, a maioria dos entrevistados declarou não ter emprego remunerado de qualquer natureza, enquanto 99% disseram ser dependentes do Bolsa Família para se alimentar. Durante o período do inquérito, o índice oficial de desemprego no Brasil era de 15%.
“A pesquisa mostrou o quanto a crise sanitária agravou a situação de insegurança alimentar vivida pelas famílias mais pobres do país e também deixou clara a fragilidade do nosso sistema alimentar”, comenta a nutricionista e oficial de saúde do Unicef Stephanie Amaral.
Para 52% das famílias entrevistadas pelo estudo, a alimentação dentro de casa piorou durante a pandemia, enquanto 35% relataram estabilidade e 11% melhora. O fechamento das escolas, que implicou o fim das merendas gratuitas e a adição de algumas refeições ao já pressionado orçamento das famílias, bem como a diminuição da renda, são apontados como fatores responsáveis.
Terra Arrasada
Se cresceu o grau de insegurança alimentar entre o público-alvo da pesquisa, por outro lado o trabalho constatou alto consumo de alimentos ultraprocessados, o que poderia ser indicativo da substituição de alimentos saudáveis por comidas industrializadas.
Já mostramos no Joio que, segundo projeção de pesquisadoras da UFV, da USP e da UFMG, no ano de 2026 os alimentos ultraprocessados devem tornar-se mais baratos que os alimentos in natura no Brasil – é importante ressaltar que o levantamento foi feito antes da pandemia e antes da forte alta de alimentos básicos, como arroz, feijão e carnes.
Uma outra pesquisa ajuda a levantar questões sobre o consumo de ultraprocessados entre crianças de baixa renda. Divulgado parcialmente em dezembro, o Estudo Nacional de Nutrição e Alimentação Infantil (Enani), que trabalha com dados coletados entre fevereiro de 2019 e março de 2020, mostrou que a prevalência de consumo de ultraprocessados entre crianças pretas de 6 meses a 2 anos de idade é sete pontos percentuais maior (85%) do que entre crianças brancas da mesma faixa etária (77%). Ao mesmo tempo, entre os 20% de famílias mais pobres, o consumo de ultraprocessados é seis pontos percentuais maior do que entre os 20% de crianças que integram as famílias de maior renda.
O estudo é coordenado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em conjunto com a Fundação Oswaldo Cruz, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Universidade Federal Fluminense.
A dúvida é se esses dados podem indicar uma inversão em relação ao panorama trazido pela última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018), do IBGE, que mostra consumo mais alto de ultraprocessados entre as famílias ricas – não necessariamente entre crianças, já que o POF fala da população como um todo.
No estudo do Unicef, 80% dos entrevistados relataram que as crianças pequenas de seus núcleos familiares comeram ao menos um alimento ultraprocessado no dia anterior à pesquisa — com destaque para biscoitos e bolachas recheadas (59%), bebidas açucaradas (41%) e doces e guloseimas (21%).
Questionadas sobre os motivos que explicam a presença desses alimentos nas suas dietas, as famílias apontaram principalmente sabor (46%), custo (24%) e praticidade (17%).
A dificuldade de acesso a alimentos saudáveis, apontada como um problema por 80% dos entrevistados, também tem um papel nessa equação. Enquanto 15% dos entrevistados afirmaram morar perto de hortas, 64% disseram que residem perto de estabelecimentos de venda de refeições prontas e 54% próximos de lojas de conveniência – incluindo bancas, bombonieres e comércios do tipo.
Em 2020, o Joio realizou um mapeamento dos ambientes alimentares de São Paulo por bairro. Utilizamos bases de dados federais e municipais para comparar a situação de cada bairro em termos de tipo de estabelecimento e de oferta de alimentos saudáveis. Uma das nossas reportagens mostrou a dificuldade dos moradores do Grajaú, bairro da periferia de São Paulo (SP), em acessar comida saudável. A região registra apenas 2,5 estabelecimentos de venda de alimentos in natura para cada 100 mil habitantes.
Já nos bairros ricos a situação é um pouco diferente. Embora predominem estabelecimentos de venda de ultraprocessados, os habitantes dessas regiões podem encontrar alimentos in natura ou minimamente processados com maior facilidade.
Percepção
O estudo do Unicef mostra que, apesar de a maior parte das famílias associar o consumo de ultraprocessados com o desenvolvimento de problemas de saúde, 80% dos entrevistados não considera excessivo o consumo desses produtos por parte das crianças da casa e 25% os associam com a ingestão de vitaminas e minerais.
O que são alimentos ultraprocessados?
São formulações industriais à base de ingredientes extraídos ou derivados de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido modificado) ou, ainda, sintetizados em laboratório (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor, etc.).
“As crianças consomem em excesso porque as famílias não têm informação correta do que é ultraprocessado”, argumenta Amaral, do Unicef. “O mesmo produto que tem excesso de açúcar vem com a alegação de que é alto em vitaminas e minerais. Isso gera uma confusão do consumidor.”
Como também mostramos aqui, a Anvisa aprovou novas regras de rotulagem nutricional frontal para produtos processados que devem começar a valer este ano. O processo foi marcado pelo lobby da indústria alimentícia e culminou com a adoção do modelo de “lupa”, semelhante ao que foi adotado no Canadá.
Soluções
Ao final do documento, o Unicef aponta uma cartilha de políticas públicas que podem ser implementadas para melhorar a alimentação infantil no país e avançar na resolução de alguns problemas constatados no estudo.
Entre elas, a tributação de bebidas açucaradas, medida apoiada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) que já foi implementada em mais de cinquenta países, incluindo México, Equador, Peru e Chile, com resultados positivos em termos de redução do consumo.
O estudo também sugere o endurecimento da fiscalização contra a publicidade infantil, apontando que esse tipo de conteúdo “afeta diretamente as escolhas alimentares de crianças e jovens, muitas vezes incentivando o consumo de alimentos não saudáveis e ultraprocessados”.
Ações permanentes de educação alimentar para as famílias, incentivo ao aleitamento materno adequado e facilitação do acesso a alimentos saudáveis por parte dos governos são outras medidas propostas.