Arte: Denise Matsumoto

Deserto alimentar, Grajaú luta contra o coronavírus e a falta de políticas públicas

Distrito da zona sul de São Paulo é um dos que menos têm alimentos saudáveis disponíveis e, com 233 mortes, um dos mais afetados pelo coronavírus

Há sete anos, Kelly Cristina de Brito deixou o lugar onde morava por não conseguir mais pagar o aluguel e se juntou à Ocupação Anchieta, no Jardim Belcito, no distrito do Grajaú, zona sul da cidade de São Paulo. Fez como outras 3 mil famílias que vivem na área, reivindicando moradia. Com o passar do tempo, ela se tornou uma das referências locais para obtenção e distribuição de alimentos.

Mais tarde, Kelly se tornou delegada do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comusan) na capital paulista e integrante do Grupo Mulheres do Brasil. Pela experiência que obteve, passou a coordenar a distribuição cestas básicas na Ocupação Anchieta, uma tarefa que se tornou ainda mais importante e difícil desde o início da pandemia de coronavírus.

A pouco mais de três quilômetros dali, Sandra de Moura tem uma trajetória similar e a mesma missão. Reuniu-se em 2013 a outras pessoas com dificuldades financeiras, no Jardim São Judas Tadeu, também no Grajaú, para formar a Ocupação Jardim da União, onde atualmente vivem mais de 500 famílias. No contexto de uma das maiores crises sanitárias já vividas no país, ela ficou responsável por receber e destinar doações para milhares de vizinhos.

As semelhanças geográficas e temporais nas histórias dessas duas mulheres não é uma mera coincidência, entretanto. O Grajaú, onde vivem, é um das regiões onde os indicadores de segurança alimentar e nutricional mais preocupam em São Paulo — também, é um dos distritos em que mais há reivindicação de movimentos de moradia na cidade, muitos que surgiram após a desaceleração da economia brasileira em 2012.

Com 2,5 estabelecimentos que vendem alimentos saudáveis (in natura/minimamente processados) para cada 100 mil habitantes, o Grajaú pode ser considerado um deserto alimentar. Para efeito de comparação, o distrito de Santo Amaro, também na zona sul da cidade, tem mais do que o dobro, com 5,7 locais do tipo para cada 100 mil habitantes.

Para outros alimentos, os números do Grajaú não são muito diferentes. O distrito tem 3,1 estabelecimentos de venda de ultraprocessados para cada 100 mil habitantes e 10 do tipo misto para cada 100 mil. Em todos os casos, o bairro se enquadra no menor quintil —ou menor parte, dentre cinco valores de uma mesma variável— da capital paulista.

Esses indicadores integram São Paulo: onde sobra e onde falta comida saudável, um projeto de O Joio e Trigo, que mapeou o ambiente alimentar na cidade. Após levantamento em bases de dados públicas, onde sobra e onde falta quantificou e classificou a distribuição de estabelecimentos que vendem, em sua maioria, ou alimentos 1. in natura e/ou minimamente processados; 2. ultraprocessados; ou 3. um misto dos dois tipos anteriores.

Um deserto alimentar pode ser considerado uma região com pouca disponibilidade e/ou com dificuldade de acesso físico ao comércio de comida saudável. No Brasil, a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) considera as áreas dentro de um território com menor densidade da distribuição para cada 100 mil habitantes.

A pequena quantidade de estabelecimentos de comida saudável no Grajaú pode ter relação com a profusão de empreendimentos informais, que não têm CNPJ —e, portanto, passaram despercebidas no levantamento de onde sobra e onde falta—, segundo a jornalista Valéria Ribeiro, a Val, que é coordenadora do Coletivo Expressão Cultura Periférica (ECP).


“A informalidade pode ter ajudado a traçar um cenário que não é real. Meu tio, por exemplo, tem uma venda de frutas. Vende de tudo. Como a loja dele, tem várias aqui no Grajaú”, ela afirma.

O distrito, entretanto, tem um dos piores no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) de São Paulo, com 0,64. O indicador varia entre 0 e 1, calculando a longevidade, a escolaridade e renda médias, e serve como uma espécie de régua para medir a qualidade de vida em determinada área — quanto mais alto o número, melhor. Para comparar, não longe dali, Santo Amaro tem IDH-M de 0,87.

Geralmente, indícios da existência de um deserto alimentar acompanham um desempenho ruim em outros indicativos socioeconômicos, de acordo com a pesquisadora e nutricionista Olivia Souza Honório, doutoranda no Programa de Pós-Graduação de Saúde e Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

“Alguns locais, além dos desertos alimentares, apresentam uma questão socioeconômica. O deserto tem a falta do acesso à comida saudável, mas também acompanha problemas de acesso à renda”, diz à reportagem Olivia, cujo mestrado tratou de diferentes metodologias para identificar desertos e pântanos alimentares em uma metrópole brasileira — a dissertação já foi submetida, mas ainda aguarda para ser publicada.

Outra característica comum no distrito é a falta de circuitos-curtos de comercialização. Comerciantes locais preferem adquirir produtos em regiões mais distantes de São Paulo, segundo os relatos de moradores. A preferência, em geral, é pela Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), na Vila Leopoldina, zona oeste da capital, a 37 km do Grajaú.

O distrito também está às margens da represa Billings, um dos maiores reservatórios de água de São Paulo. Mas a proximidade com fontes de água não necessariamente permite desenvolver a agricultura local. Na ocupação Anchieta, por exemplo, o uso de fossas sépticas contaminou o terreno e inviabilizou a existência de hortas comunitárias, segundo Kelly.

Crianças remam no parque Cantinho do Céu, às margens da represa Billings (Foto: André Bueno – 28.ago.2016/Virada Sustentável – Flickr)

A dificuldade em ter fontes próximas de comida ajuda a explicar a pequena oferta de produtos in natura e/ou minimamente processados, segundo Olivia Honório. “O alimento tem que estar disponível, mas as pessoas precisam ter acesso a esse alimento. Diminuir o deslocamento é importante e permitir o acesso a um preço que elas possam comprar”, afirma.

Uma estratégia para mitigar o pouco acesso à comida saudável seria fortalecer a presença de serviços públicos, de acordo com a pesquisadora. “As redes de apoio nesses locais muitas vezes servem para promover uma alimentação mais adequada”, ela diz.

Um exemplo é a merenda escolar. O diretor da escola municipal João da Silva, próxima à Anchieta e ao Jardim da União, Marcelo Costa Sena, estima que ao menos 40% dos 1,2 mil estudantes da unidade dependam das refeições servidas no local. “A gente vê claramente que as crianças dependem dessa alimentação, porque elas tomam café da manhã e almoçam na escola”, explica.

Ruas e casas no terreno da Ocupação Anchienta, no Jardim Belcito (Foto: “Ocupação Anchieta Avança!” – 23.fev.2018)

Mas a importância do poder público para a segurança alimentar não termina por aí. Para muitos estudantes, as refeições seguintes, como o lanche e jantar, são servidas nos centros de referência em assistência social do distrito, como os Centros para Crianças e Adolescentes (CCAs) da prefeitura. Os locais recebem estudantes até o ensino fundamental 2 após o final do horário escolar.

“Para as famílias que vivem de trabalho informal ou estão em situação mais vulnerável, as quatro refeições do dia costumam ser ou na escola no nos CCAs”, afirma Jaison Lara, o Jai, que é integrante da Casa Ecoativa, na Ilha do Bororé, no Grajaú, e é gestor do CCA Auri Verde.

“Mas, em um contexto de pandemia, piora tudo”, ele acrescenta.

Com mais de 233 mortes por Covid-19 confirmadas ou sob investigação até 9 de junho, o Grajaú sofre não só os efeitos sanitários da crise desencadeada pelo coronavírus. A situação também torna o distrito um dos territórios em São Paulo onde a fome, terrivelmente, preocupa.

Um deserto em pandemia

Sandra vê os efeitos socioeconômicos trazidos pelo coronavírus no Jardim da União. O número original de 500 famílias na ocupação cresce à medida que o tempo passa. O local se tornou um refúgio para gente que não mais consegue pagar as contas.

“Muitas pessoas pagando aluguel, perdendo emprego, durante essa pandemia estão procurado os parentes que moram aqui. E, em vista disso, aumentou bastante a demanda. Cada vez mais famílias estão surgindo. E vamos ter que fazer um novo mapeamento da ocupação, porque tem muita gente nova vindo para cá”, ela diz.

Cachorro deitado em rua entre as casas da Ocupação Jardim da União (Foto: André Zuccolo – 8.abr.2015/Revista Vaidapé)

“Todo dia chega uma família diferente que, por algum motivo, não consegue pagar aluguel. Alguém da ocupação traz parentes. E vem muitas famílias com crianças”, afirma Kelly, sobre o mesmo fenômeno que testemunha na Ocupação Anchieta.

As duas são unânimes em admitir que a fome é um dos assuntos que mais preocupa os colegas de ocupação. Muitos não têm uma fonte fixa de renda, e os donativos que chegam nem sempre atendem à demanda. “Quando eu consigo uma doação de cestas básicas, ela atende no máximo 300 famílias”, acrescenta Kelly.

Nas ocupações, há pessoas em serviços informais que estão impedidas de trabalhar, outras que tiveram benefícios cortados e, inclusive, gente cujo acesso ao programa de renda básica emergencial foi negado.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou, no início de junho, um corte de R$ 83,9 milhões em recursos destinados ao Bolsa Família. 433 mil famílias no país ainda aguardam na fila para se inscrever no programa, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo. Para o auxílio emergencial oferecido durante a pandemia, a contagem é de 41,59 milhões pessoas que tiveram o acesso negado.

Na vida dessas pessoas, as decisões do governo federal foram mais um dos apoios subtraídos. “Com o fechamento das escolas, muitas crianças também perderam o acesso às refeições”, lembra Marcelo.

Há uma previsão em São Paulo de reabrir as escolas em setembro. Mas, por enquanto, o assunto não entrou na lista de prioridades do prefeito Bruno Covas (PSDB), que permitiu, primeiramente, a abertura de shoppings centers e bares — além de outros comércios e restaurantes.

Como as escolas permanecem fechadas, a prefeitura e o governo do Estado ofereceram um cartão de vale merenda, que pode ser de RS 55,00 ou R$ 110,00 mensais, para os estudantes de escolas municipais e estaduais. Estima-se que mais de 4,5 milhões de alunos estejam recebendo este auxílio.

Marcelo, no entanto, diz que o benefício não atinge todos os alunos da escola onde é diretor. Além disso, apenas a entrega do cartão não garante o acesso a refeições com a mesma qualidade. “Existem alunos da rede pública que não estão com acesso aos alimentos da merenda”, acrescenta.

Homens carregam cestas básicas durante doação no distrito do Grajaú (Foto: Prefeitura Municipal de São Paulo)

Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo declarou, via assessoria de imprensa, que promove ações educativas sobre o isolamento social, distribui cestas básicas, com kits de higiene e alimentos, e reforçou as equipes de atendimentos no Grajaú e em outros bairros da periferia.

Além do poder público, coletivos de cultura, grupos comunitários e organizações não governamentais do Grajaú estão se organizando para a fazer a doação de cestas básicas. No distrito, tornou-se comum entidades da sociedade civil se tornarem entrepostos de atendimento social, com o objetivo de atenuar os efeitos da crise do coronavírus.

Um deles é o grupo Grajaú Faz Assim, que já encaminhou a doação de 1,5 mil cestas básicas. “[Queremos] fortalecer o coletivo e os serviços, para tentar fortalecer a rede de atendimento às pessoas do bairro”, diz a professora Soraia Domingues, integrante do coletivo e moradora do Grajaú.

Há 15 anos, a roda de samba Pagode da 27 se apresenta aos finais de semana no bairro, aproveitando-se da ocasião para arrecadar alimentos. Antes das apresentações musicais, eles pediam aos participantes a doação de 1kg de alimentos como arroz e feijão. Após o início da quarentena, já conseguiram arrecadar cestas para ajudar 160 famílias.

“Destinamos para famílias de trabalhadores autônomos, muitos na informalidade. E muitas pessoas mais velhas, chefes de família com mais de 40 e 50 anos. A grande maioria delas vive de bicos”, conta Flávio Sarmento, voluntário do Pagode da 27.

Como eles, Val, do ECP, transformou a gráfica da revista Grajaú, da qual é editora, em uma galpão para armazenar e distribuir alimentos e produtos de higiene. “A gente arrecada e divulga na comunidade. Usamos nossa rede de contato para as ações e aceitamos de cestas até a doações R$ 20,00, o que a pessoa puder contribuir.”

Iniciativas pelo bairro se multiplicam e se fortalecem. Jai, porém, afirma que elas não substituem o papel do poder público. “É como enxugar gelo. A gente está falando de um território que tem mais de 700 mil pessoas. As nossas ações são importantes, mas não dão conta da área. A gente precisa de políticas públicas para dar conta dessa demanda.”

Ilhas no deserto

Durante a conversa com esta reportagem, Soraia reiterou as dificuldades que os vizinhos enfrentam. “O Grajaú é um território de muita vulnerabilidade social, com muitas pessoas nessa situação. Mas também tem uma potência muito grande em termos de coletivos de cultura, artistas.”

Encontro de ciclistas no Grajaú, zonal sul de São Paulo – (Foto: André Bueno – 28.jun.2016/Virada Sustentável – Flickr)

“É sempre importante lembrar que a periferia não só sofre, ela também aponta tecnologias para uma cidade mais justa. É importante colocar a periferia como um cenário pensante em São Paulo”, acrescenta Jai.

A Casa Ecoativa, da qual ele é integrante, é um exemplo. Na Ilha do Bororé, cercada pela represa Billings, no Grajaú, o coletivo montou um ponto para discutir cultura e alimentação, ainda que seja, como mostramos, uma ilha perdida em um deserto alimentar.

Além dela, há outras iniciativas. Dentre os relatos que esta reportagem recolheu, a expectativa das pessoas que idealizam estes projetos no bairro é retomar o cenário cultural com a mesma força que tinha antes da pandemia de Covid-19. Para isso, no entanto, eles precisam de ajuda, sobretudo financeira, para garantir o mínimo de segurança alimentar.

Abaixo, o Joio abre um espaço para que leitores possam encontrar os canais para fazer doações.


Ocupação Anchieta

Contato: Kelly Cristina de Brito
Telefone: +55 11 94871-4396


Ocupação Jardim da União

Para fazer doações
Campanha Jd. da União Contra o Coronavírus


Coletivo Expressão Cultural Periférica

Contato: Valéria Ribeiro
Whatsapp (não atende ligações): +55 11 95854 6101
E-mail: [email protected]
End.: rua Boaventura Ferreira, 159 – Jd. Reimberg (Grajaú)


Coletivo Grajaú Faz Assim

Contato por e-mail – [email protected]
Pelas redes sociais – https://www.facebook.com/campanhagrajaufazassim

ou Marcelo Costa
Telefone: +55 11 97550-4271

ou Soraia Domingues
Telefone: +55 11 96557-5493


Coletivo Pagode da 27

Para fazer doações:
Campanha Pagode da 27 & Grajaú Faz Assim

ou contato pelas redes sociais: @pagodeda27

Confira todas as reportagens publicadas na série:

Os dados utilizados para o levantamento estão disponíveis aqui

*Texto atualizado às 11h45 de 27 de julho de 2020 para inclusão de posicionamento da Secretaria de Saúde de São Paulo e a correção de informação. Diferente do divulgado inicialmente, o mestrado de Olivia Honorio estudou o método de avaliação de desertos alimentares em uma metrópole (singular) e não em metrópoles (plural) do país.

Por Guilherme Zocchio

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