Ferrovia privada do agronegócio vai passar entre duas Terras Indígenas, em Rondonópolis (MT). Foto: Tatiana Merlino

Direção do Ibama atropela área técnica em prol de ferrovia privada do agro

Os seis pareceres ignorados fazem parte de arranjos entre governos federal e de Mato Grosso para garantir concessão “perpétua” à maior operadora ferroviária do Brasil 

A direção do Ibama atropelou ao menos seis vezes a área técnica do instituto para transferir ao governo de Mato Grosso o licenciamento de uma ferrovia privada do agronegócio. Ao longo de 2020 e 2021, sucessivos pareceres foram ignorados pelo diretor de Licenciamento, Jônatas Souza da Trindade. Ele deu aval à Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) para conduzir o processo relativo a uma linha ferroviária que irá de Rondonópolis, no sudeste do estado, até Lucas do Rio Verde, no centro da produção de soja do Brasil. 

Documentos mostram uma forte convergência entre os governos federal e estadual e a Rumo, uma das maiores corporações da área de logística no Brasil. A transferência do processo de licenciamento faz parte de um conjunto de medidas que favorecem a empresa. 

Um slide da própria Rumo lista os benefícios do reconhecimento como uma ferrovia estadual:

  • assinatura imediata do contrato de concessão. Se fosse uma obra federal, essa etapa poderia levar em torno de quatro anos
  • 45 anos de concessão, contra um limite de 30 anos do governo federal
  • nenhum limite na taxa de retorno. No caso de obras federais, retornos acima de 11,04% ao ano resultam no pagamento de uma taxa à União
  • nenhum limite para tarifas e reajustes, nem para os materiais que serão transportados pela via

Contrato perpétuo

“Praticamente, é um contrato perpétuo porque a gente pode continuar renovando o contrato a cada 45 anos”, disse Ricardo Lewin, vice-presidente Financeiro e Diretor de Relações com Investidores da Rumo, durante uma entrevista a jornalistas. Se fosse uma obra federal, ao final do período de concessão todos os bens seriam patrimônio da União. Mas o contrato acertado com o Mato Grosso é bastante mais generoso: como os bens não passam a ser públicos, existe uma tendência inerente a que a concessão seja renovada eternamente – ou perpetuamente, nas palavras de Lewin. “Então, o conceito aqui é quase que o conceito de um ativo privado.”

Imagem: Reprodução.


O problema é que a obra tem impactos públicos. O Ministério Público Federal do Mato Grosso contesta a maneira como todo o caso vem sendo conduzido e entrou com uma ação de tutela de antecedente, pedindo a suspensão do licenciamento em curso. Os procuradores Ricardo Pael e Rodrigo Pires de Almeida também cobraram que a Funai seja ouvida, já que a linha férrea passa próximo a duas terras indígenas dos povos Bororo. 

Mas o diretor de Licenciamento do Ibama decidiu ignorar, também, esse pedido. Servidor de carreira do Ministério da Economia, Jônatas Souza da Trindade chegou a ocupar a presidência do Ibama, de modo interino, em julho de 2021, quando o titular Eduardo Bim foi afastado por determinação do Supremo Tribunal Federal. 

Em uma ação movida na Justiça Federal em Mato Grosso, os procuradores pedem que seja anulada a transferência do licenciamento ambiental ao governo estadual. “Acreditamos que, no processo, houve uma movimentação para levar o caso para a Sema de uma forma um tanto forçada e no mínimo estranha”, analisa Rodrigo Pires de Almeida, do MPF em Rondonópolis. Ele ressalta o fato de que houve vários pareceres do setor técnico do Ibama recomendando que o processo de licenciamento fosse feito no próprio Ibama e não recomendando a delegação. “A delegação foi requerida pelo empreendedor, algo que eu já julgo estranho”, explica. 

Essa transferência de responsabilidade de licenciamento de um órgão para o outro pode ser realizada, mas desde que cumprindo alguns requisitos. “A área técnica do Ibama a todo momento apontou que não havia condições. E o diretor de Licenciamento, que tinha o poder decisório, de  forma quase monossilábica dizia ‘entendo não assistir razão para isso, mantenho o processo de delegação’. E foi levando. São inúmeras irregularidades verificadas e que no entendimento do MPF mereciam ao menos serem melhor apuradas”, afirma Pires de Almeida. A Justiça Federal, porém, rejeitou a abertura de uma investigação sobre o caso. 

“Não nos convencemos”, diz procurador


O que mais chamou a atenção do MPF, explica o procurador, é que o ato formal de delegação do licenciamento do empreendimento do Ibama para a Sema ocorreu em julho de 2021, quando oficialmente a Sema estaria autorizada a proceder com o licenciamento. 

“Porém, em dezembro de 2020, ou seja, sete meses antes, a Sema já tinha expedido o termo de referência para o início do licenciamento da Rumo A Sema, sem ao menos ter o poder de licenciador naquele momento, já estava licenciando. Como assim? Isso, no mínimo, merece uma explicação. Respeitamos a decisão do Poder Judiciário. Respeitamos as explicações as tentativas de explicações pelos órgãos envolvidos, mas até agora não nos convencemos”, aponta o procurador.

A situação é atípica também porque, naquele momento, não havia sequer previsão legal, na Constituição de Mato Grosso, de que o estado pudesse ter um sistema ferroviário próprio – o que também foi resolvido com a aprovação, pela Assembleia Legislativa, de uma emenda constitucional, seguida por uma lei complementar e um decreto.
O procurador afirma que o MPF não é “contra a construção da ferrovia”. “Mas não achamos que isso tenha que ser feito a todo custo. É um empreendimento de interferência tão grave ao meio ambiente e às populações vulneráveis e por isso precisa ser feito com a maior cautela possível e por um órgão licenciador com expertise no assunto”, finaliza.

Coincidências?

A ferrovia nasceu por iniciativa da própria Rumo, que registrou ainda em 2016, na Agência Nacional de Transportes Terrestres, a intenção de prolongar a linha que vai do porto de Santos, no litoral de São Paulo, até Rondonópolis. A corporação demonstra interesse em avançar em direção ao coração do agronegócio, no norte de Mato Grosso, formado pelas cidades de Lucas do Rio Verde, Sorriso e Sinop. 

Nas projeções da empresa, com isso seria possível transportar por suas vias até 60% das exportações de grãos do estado em 2030, quando se prevê que os 700 quilômetros da obra estejam completos. A expectativa é iniciar a construção já em 2022, e ter um primeiro trecho, até Cuiabá, inaugurado em 2025. 

Nas estimativas apresentadas à Rumo por uma consultoria privada, as exportações brasileiras de grãos ainda crescerão 159% até 2058, quando comparadas aos patamares de 2015-16. Soja, com 136 milhões de toneladas, e milho, com 92 milhões, seguirão a ser o vagão-chefe do agronegócio. 

A exemplo de todas as outras frentes privadas que envolvem questões ambientais, fica claro que a ferrovia da Rumo ganhou velocidade com o governo de Jair Bolsonaro. Os governos estadual e federal criaram todo um conjunto de medidas legais para dar sustentação ao projeto. 

Atropelos

Em um dos pareceres, técnicos da Coordenação de Licenciamento Ambiental dizem que a Secretaria Estadual de Meio Ambiente não tem expertise sobre o licenciamento desse tipo de obra. 

“A maior proximidade da tipologia em questão foi o terminal de Rondonópolis, que se trata de um terminal de carga, não da implantação de uma ferrovia.” Além disso, eles apontam que o Ibama foi o licenciador de vários outros ramais ferroviários sob operação da Rumo, o que lhe permitiu acumular conhecimento sobre os problemas que surgem e os caminhos para resolvê-los. 

Esse não é um ponto menor. Como a própria Rumo registra no pedido de 2016, trata-se de uma extensão do ramal de Rondonópolis, ponto que é confirmado em documentos posteriores e pelo próprio Ibama. Na visão do MPF, isso obriga a que também o instituto federal seja o responsável pelo licenciamento. E torna ainda mais estranha a transferência ao governo estadual:  “Existe o risco de uso de diferentes critérios ambientais, além da provável maior demora para realização do processo, haja vista a necessidade de realização de maiores pesquisas para execução dos atos.”

O outro ponto levantado pela área técnica é que a própria instrução normativa do Ibama determina que a transferência de licenciamento só pode ser feita para órgãos que estejam em dia com suas funções. Não era o caso da Sema, que acumulava pendências no licenciamento de obras federais, incluindo rodovias. 

Mas, rapidamente, o diretor de Licenciamento decide ignorar os pareceres contrários. Em um despacho de apenas uma página, em 19 de maio de 2020, ele opta por transferir o licenciamento à Sema. O único argumento mencionado por Jônatas é o fato de a obra se localizar em Mato Grosso. De maneira breve, o diretor usa o sucateamento do órgão federal, “considerando o pequeno efetivo de servidores”, como pretexto para o deslocamento do processo.

Imagem: Reprodução Ibama.


Na mesma data do despacho, a Rumo faz movimentos estranhos. A decisão de Jônatas foi protocolada às 10h36. Menos de seis horas depois, a empresa protocola a desistência de transferir o processo para o órgão estadual. Mas, logo em seguida, às 19h30, volta atrás e pede que o caso seja encaminhado à Sema.  

“O inédito pedido de delegação pelo empreendedor, seguido da desistência e, depois, da desistência da desistência levanta, no mínimo, suspeitas sobre os motivos que conduziram todo o processo”, registra o MPF. 

Já na manhã seguinte o Ibama despacha sobre a desistência da desistência, e encaminha a decisão do diretor de Licenciamento à Sema. Na visão dos procuradores, chama atenção o “empenho e esforço pessoal excessivo” de Jônatas em conseguir a autorização para a obra. 

E mais atropelos 

Nesse período, a área técnica do Ibama cobrou que a Sema respondesse aos questionamentos, para que comprovasse que tem expertise nesse tipo de licenciamento e que sanou suas pendências em processos anteriores. Em vão. Entre outubro de 2020 e março de 2021, a Sema ficou em silêncio. Quando os técnicos pediram a rescisão do termo de cooperação, o que significaria retornar o licenciamento ao Ibama, o diretor de Licenciamento interveio. 

Em junho, a Sema finalmente disse ter sanado as pendências em licenciamentos antigos, mas não apresentou qualquer comprovação. Ainda assim, foi o suficiente para Jônatas. De imediato foi assinado um novo termo de cooperação para a realização do licenciamento. 

Em paralelo, o diretor ignorou o pedido do MPF de que os termos para o estudo de impacto ambiental fossem reelaborados para incluir uma análise sobre os efeitos para os povos indígenas Bororo das terras Teresa Cristina e Tadarimana, que estão a poucos quilômetros do traçado previsto para a região de Rondonópolis. 

Mais uma vez, havia um parecer técnico do Ibama pedindo a mudança para que os povos indígenas fossem ouvidos, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Porém, avalia o MPF, Jônatas atuou “em completa desídia em relação à regularidade da condução do processo de licenciamento que deve respeitar também os direitos das populações indígenas envolvidas”. 

O diretor de Licenciamento teve de pisar em ovos para responder aos questionamentos do MPF. Jônatas Souza da Trindade foi evasivo quando perguntado sobre por que o Ibama não estaria apto a fazer o licenciamento, e admitiu que, pela lei, o processo caberia à União. Ele reconheceu, ainda, que a obra em questão é uma extensão da que foi licenciada anteriormente, mas externou a opinião de que isso não torna obrigatório que o licenciamento seja feito pelo Ibama. 

No final de novembro de 2021, a Advocacia Geral da União entrou na história para se opor aos procuradores. Em uma manifestação protocolada no final de novembro, a AGU diz que o Ibama é livre para delegar a outros órgãos a responsabilidade por estudos de impacto. Entre os argumentos em prol do deslocamento à Sema está a “difícil realidade” do Ibama, que sofre com falta de servidores e de recursos. 

Mas o que chama a atenção no documento da AGU não é o teor da argumentação, e sim o fato de que apenas oito dias mais tarde o governo de Mato Grosso também protocolou a resposta à ação do MPF. E a resposta é idêntica à da AGU. 

Por meio de sua assessoria, o Ibama, disse que “os pareceres técnicos não foram ignorados. A decisão institucional pela delegação considerou a localização do empreendimento exclusivamente no Estado do Mato Grosso, bem como a capacidade operacional do Instituto para avaliar mais um projeto ferroviário. Assim, a delegação é ato discricionário, dentro dos critérios de conveniência e oportunidade, e atende aos requisitos legais.”

O Ibama disse, ainda que “de acordo com a Instrução Normativa Ibama n° 8/2019, o órgão que requer a delegação deve informar se atende aos requisitos de capacidade técnica e se detém o Conselho de Meio Ambiente ativo, conforme disposto no artigo 5º da Lei Complementar nº 140/2011. Neste sentido, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA-MT) declarou, por meio do Protocolo complementação do Ofício nº 288/SERAD (8489065), que atende aos requisitos legais expostos. Assim, o pedido de delegação passou por avaliação jurídica – cujo entendimento foi juridicamente possível, uma vez que atendeu os pressupostos legais, conforme Despacho n. 00718/2020/GABIN/PFE (8608376).”

Por Tatiana Merlino

Matérias relacionadas