Pressão sobre vereadores incluiu carta com ataques ao Guia Alimentar e a classificação NOVA
Nos corredores do Palácio Pedro Ernesto, sede da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, mais uma batalha foi travada na guerra entre grandes empresas de alimentos e bebidas e a defesa da saúde de crianças e adolescentes, com uma larga vantagem da primeira sobre a segunda.
Entidades que representam as principais empresas do setor conseguiram protelar a aprovação de um projeto de lei que tenta proibir a venda e a oferta de alimentos e bebidas ultraprocessados em escolas públicas e privadas da cidade do Rio de Janeiro.
O chamado PL das cantinas foi aprovado pela maioria dos vereadores na primeira rodada de discussão, em agosto do ano passado. Nos meses seguintes, obteve o aval das comissões legislativas para que seguisse para aprovação ou veto do prefeito Eduardo Paes.
No último dia 31, voltou para a pauta, na segunda votação.
Além da proibição nas cantinas, o Projeto de lei nº 1662/2019 também sugere que bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados fiquem a uma altura superior a um metro nas prateleiras e gôndolas de estabelecimentos comerciais, longe dos olhos das crianças. Outra proposta é a implantação de Salas de Apoio à Amamentação em empresas sediadas no município do Rio.
Restringir o acesso a esses alimentos no ambiente escolar e nas gôndolas e prateleiras são medidas reconhecidas como fundamentais na prevenção à obesidade infantojuvenil, que atinge níveis alarmantes em escala global e também no Brasil.
Sem conseguir impedir a tramitação e diante da ameaça de aprovação pela maioria do plenário, o lobby sobre os parlamentares se intensificou e resultou na apresentação de uma emenda que desidrata o teor original e desconfigura o projeto de lei, além de protelar sua votação definitiva pelo Legislativo municipal.
De autoria do vereador Rafael Aloisio Freitas (Cidadania), primeiro secretário da Casa, em parceria com o presidente da Câmara, Carlo Caiado (DEM), e Dr. Rogério Amorim (PSL), a emenda propõe substituir a proibição expressa da venda e oferta desses alimentos pela “prioridade” a alimentos saudáveis.
Caso seja aprovada, a emenda dificultaria uma futura regulamentação das novas regras com base em um conceito evasivo, dando margem para a criação de mais uma lei sem viabilidade prática de aplicação.
Atuação em bloco
A articulação contra o projeto de lei partiu de Brasília, diante do risco de o Rio de Janeiro tornar-se uma vitrine para que outras cidades implementem projetos semelhantes. E, de fato, a chapa está esquentando para os fabricantes de ultraprocessados. No âmbito estadual, há um projeto de lei semelhante tramitando desde maio do ano passado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), já aprovado em sua primeira votação, mas que já recebeu 39 emendas e alterações significativas que já conseguiram derrubar a proibição expressa do texto original.
A reação em bloco foi liderada por entidades nacionais que representam empresas como Coca-Cola, Nestlé, Nissin, Arcor, entre outros fabricantes de alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas. E contou também com o apoio estratégico de entidades locais que exercem grande poder político e econômico no estado e na cidade do Rio de Janeiro, bastante dependente do setor de comércio e serviços.
Faltando uma semana para o retorno do projeto à pauta de votação, em 22 de março, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) disparou por e-mail aos vereadores uma carta repleta de argumentos contrários às diretrizes oficiais do Ministério da Saúde, notadamente ao Guia Alimentar para a População Brasileira e à classificação NOVA, contrariando as regras do jogo democrático e ignorando um robusto conjunto de evidências científicas.
Direcionado ao presidente da Câmara, o documento é assinado também pela Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab), pela Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas Não Alcoólicas (Abir) e pelas entidades regionais Associação de Supermercados do Estado do Rio de Janeiro (Asserj), pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ), pela Associação de Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Rio Indústria) e pelo Sindicato de Bares e Restaurantes do Município do Rio de Janeiro (SindRio).
Já mostramos no Joio como o Guia e a classificação NOVA se tornaram uma pedra no sapato para as grandes empresas do setor. Ambos são reconhecidos mundialmente como marcos nos estudos de nutrição ao definir os alimentos de acordo com o grau de processamento e criar o conceito de alimentos ultraprocessados.
O texto do documento segue uma velha cartilha da indústria ao responsabilizar o indivíduo e as famílias pelo aumento da incidência de obesidade e sobrepeso, atribuindo o problema à (falta de) educação alimentar e ao sedentarismo. Após cinco páginas de ataques ao conceito de ultraprocessados e argumentos que contrariam as evidências científicas, os autores propõem um projeto de lei alternativo e bem diferente do original, voltado para a promoção prática de atividade física.
“Não existe alimento bom ou ruim, assim como não existe ‘alimento maléfico’ ou ‘não saudável’. Existem dietas e hábitos de vida adequados ou não […] seria mais recomendável, para fins de diminuição das doenças relacionadas ao consumo excessivo de açúcar e de sal, o incremento e a valorização de atividades físicas”, informa a nota, que distorce dados e orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Embora importante para a saúde, a atividade física não é suficiente para lidar com um problema complexo e multifatorial como a obesidade, mas frequentemente é usada como um argumento pela indústria de bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados para desviar o foco do problema diante de uma evidência cada vez maior que associa o alto consumo desses produtos ao aumento a problemas de saúde.
“A obesidade, assim como todas as outras condições crônicas, é de difícil manejo clínico e exige urgente prevenção. Na faixa etária de 5 a 19 anos, o número de indivíduos com excesso de peso triplicou nos últimos 20 anos. Sendo assim, o presente projeto pretende resguardar e garantir o direito pleno dessa população a uma alimentação adequada e segura, em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA]”, explicou Cesar Maia (PSDB) ao site de notícias da Câmara. Autor do projeto, Maia conseguiu reunir vereadores de diferentes espectros ideológicos e partidários em defesa da proposta.
Reação rápida da indústria
A movimentação contrária ao PL das cantinas teve início tão logo o projeto começou a tramitar, um ano e meio após ser protocolado. Uma semana após a primeira votação, em 12 de agosto do ano passado, representantes da indústria se reuniram com o presidente da Câmara, Carlo Caiado, e demais vereadores envolvidos na discussão para expressar insatisfação. Participaram da reunião Sérgio Duarte, presidente da Rio Indústria e do Sindicato das Indústrias de Alimentos do Município do Rio de Janeiro.
Ele também é dono da empresa de alimentos Vitális/Chinezinho, uma fabricante carioca de molhos, condimentos, cereais, conservas, snacks, matinais, refrescos em pó, temperos e sopas prontas, entre outros produtos.
Seguindo a orientação do Guia Alimentar Para a População Brasileira, o projeto sugere substituições para tornar as cantinas mais saudáveis para as crianças. Bolos industrializados podem ser substituídos por bolos produzidos pelas próprias merendeiras, com quantidades reduzidas de açúcar e gorduras e sem conservantes, corantes e/ou emulsificantes; leite com achocolatados pode ser substituído por vitamina de frutas com cereais (aveia, etc.) ou iogurte natural batido com frutas; sanduíches podem ser feitos sem margarina e usando queijos de menor teor de gordura; doces e/ou doces industrializados em geral podem ser substituídos por frutas; biscoitos doces e salgados por biscoito de polvilho sem aditivos; refrescos trocados por sucos naturais; e temperos e caldos prontos podem dar lugar aos temperos naturais, como ervas, alho e cebola.
Oficialmente, o encontro em agosto do ano passado teve como temas a dispensa de licença prévia para atividades de baixo impacto, facilitar a abertura das pequenas e médias indústrias e a revitalização do distrito industrial de Santa Cruz, como divulgou em nota a Associação de Supermercados do Estado do Rio de Janeiro (Asserj).
Nos bastidores, a reunião serviu para expressar o descontentamento de entidades ligadas ao setor de alimentos e bebidas e fazer circular, pela primeira vez, a carta com os interesses da indústria. Representantes de todas as entidades que assinam o documento participaram desse primeiro encontro.
Cerca de um mês depois, o presidente da Asserj, Fábio Queiroz, recebeu a medalha Pedro Ernesto, uma homenagem concedida pelo Legislativo municipal. Foi uma iniciativa do vereador Rafael Aloísio Freitas, que, a princípio, constava entre os autores do PL das cantinas, mas aparentemente mudou de lado na discussão.
Com o retorno do PL à pauta, partiu de Freitas a iniciativa de propor o adiamento da votação do PL por mais três sessões “para que possamos fazer uma reunião de alguns grupos que nos solicitaram, junto com o Vereador Cesar Maia, e junto com Vossa Excelência e com os outros vereadores que queiram participar”, justificou o parlamentar.
Naquele mesmo dia, o documento assinado pela indústria foi distribuído novamente, dessa vez a todos os vereadores, como forma de pressioná-los pela não aprovação na segunda rodada de votação do projeto. Enquanto isso, uma nova reunião aconteceu entre representantes da indústria e um grupo de vereadores.
Sem conseguir adiar a votação, coube a Freitas apresentar a emenda que desconfigura o teor original do projeto de lei e tenta derrubar a proibição da venda e oferta de ultraprocessados.
O PL agora voltou a tramitar entre as comissões legislativas e, por ora, não há data para que seja votado novamente.
Sem prevenção, Brasil pode ocupar 5ª posição mundial no ranking da obesidade infantil
A prevalência de obesidade infantojuvenil tem aumentado de maneira epidêmica nas últimas quatro décadas, devido à mudança no padrão alimentar e ao alto consumo de alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas.
Em todo o mundo, cerca de 40 milhões de crianças e jovens têm sobrepeso ou obesidade, segundo a OMS. Sem políticas públicas que atuem na prevenção, a OMS prevê que o Brasil ocupe a 5ª posição no ranking de países com o maior número de crianças e adolescentes com obesidade em 2030.
Além de aumentar a probabilidade de desenvolver outras doenças crônicas na vida adulta, o excesso de peso também impacta o desenvolvimento escolar e psicossocial de crianças e adolescentes.
No Brasil, atualmente são 6,4 milhões de crianças com até 10 anos com excesso de peso e 3,1 milhões de crianças nessa faixa etária com obesidade, segundo dados do Ministério da Saúde. Na faixa de até 5 anos, o índice é de 15,9%, enquanto na de 5 a 9 anos chega a 31,8%.
Um levantamento feito pelo Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani) mostrou que, em 2019, oito em cada dez crianças brasileiras de até 5 anos já consumiam alimentos ultraprocessados, como biscoitos, farinhas instantâneas, refrigerantes e bebidas açucaradas, dentre outros produtos nocivos à saúde.
Esses resultados não refletem a provável piora na alimentação durante a pandemia, com o aumento da insegurança alimentar e do consumo de alimentos ultraprocessados, que vêm gradualmente se tornando mais baratos em comparação à comida saudável e in natura no Brasil.
No município do Rio, em uma faixa etária mais ampla, 3 a cada dez crianças e jovens entre 0 meses a 19 anos estão com excesso de peso ou obesidade, segundo dados oficiais do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, o Sisvan, que monitora os pacientes atendidos pelo SUS. Os números são de 2020.
Silêncio
Procuramos por telefone e e-mail os vereadores Carlo Caiado, Rafael Aloísio Freitas e Dr. Rogério Amorim, mas eles não responderam ao pedido de nossa reportagem até o fechamento deste texto.
Também entramos em contato com as entidades que assinam o documento contrário ao projeto de lei, mas apenas tivemos retorno da Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas, Abicab, que informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não iriam se manifestar sobre o tema.
Procurado pelo Joio, Cesar Maia, autor do projeto, também não quis comentar a movimentação para derrubar o projeto de lei. “Tenho que aguardar. Há muito interesse nesse PL”, resumiu.