Em entrevista, Andrew Toshio Hayama, defensor público do Vale do Ribeira, fala sobre o fenômeno que afeta povos que dependem de seus territórios
Empresas, indústrias e empreendimentos sempre avançaram sobre áreas verdes e o seguem fazendo, com discurso de desbravamento e mais recentemente de inovação e ambientalismo. Mas esquecem ou fingem esquecer que meio ambiente não é só fauna e flora, mas tudo aquilo que coexiste em um ecossistema – inclusive, pessoas.
O episódio quatro da quinta temporada do Prato Cheio discute sobre isso a partir da história da palmeira juçara, da qual é extraído um palmito que sempre integrou a alimentação de povos tradicionais e que foi transformado em produto por colonizadores.
Considerada uma das espécies-chave da Mata Atlântica por garantir a alimentação de dezenas de tipos de animais diferentes, foi mote para uma série de proibições legais, que, impostas, afetam modos de vida de comunidades rurais, caiçaras, quilombolas e indígenas. Em entrevista para O Joio e O Trigo, o defensor público Andrew Toshio Hayama, que atua no Vale do Ribeira, no interior de São Paulo, fala sobre o racismo ambiental.
O que é racismo ambiental?
Toshio: A gente tem que pensar primeiro o contexto de racismo estrutural. Acho que o primeiro panorama para pensar o racismo ambiental seria pensar no racismo estrutural e o racismo ambiental como um desdobramento, como uma manifestação do racismo estrutural. Ou seja, a ideia de que as estruturas funcionam de forma racista, colonialista. A ideia é que existe uma dinâmica objetiva, não é uma questão individual e nem um desvio ético.
Como Silvio Almeida vai dizer, o racismo estrutural não é uma doença. Ele é um funcionamento objetivo mesmo das nossas relações sociais, permeia todas as nossas relações sociais. Acho que a gente tem que pensar um pouco racismo ambiental como manifestação do racismo estrutural. Agora isso é aplicado às questões ambientais. A gente percebe a manifestação desse racismo quando a elaboração e a execução de políticas ambientais são feitas à revelia de povos e comunidades tradicionais que a gente bem sabe são responsáveis pela preservação do meio ambiente que resta.
A gente percebe o racismo ambiental quando há uma desumanização desses grupos e coletividades, quando há uma desvalorização do conhecimento delas, de todos os saberes, de toda ciência, de toda a tecnologia que foi elaborada nessas centenas de anos de convivência harmônica ou pelo menos funcional com os ecossistemas.
Quando a gente despreza isso, desvaloriza isso, me parece que evidencia uma forma de racismo e a gente chama de racismo ambiental porque são comunidades que estão associadas a ecossistemas e dependem desse meio ambiente e dessa natureza. Essa é uma forma de racismo, mas há diversas outras.
A gente tem um problema que é muito grave aqui no Vale do Ribeira, que é a expulsão de comunidades tradicionais de seus territórios, sob argumento, um falacioso argumento, aliás, de que essas comunidades seriam destruidoras do ambiente. Elas seriam potenciais ameaças ao meio ambiente. Isso também evidencia mais uma forma de racismo ambiental, como se essas comunidades não tivessem capacidade de condições de cuidar da sua própria casa. A elite acadêmica engabinetada branca teria mais condições de dizer como preservar o meio ambiente do que essas próprias comunidades.
Como isso se insere no contexto da palmeira juçara?
Toshio: A questão do palmito juçara é bastante antiga. De fato houve um abuso na extração, e isso ninguém nega, inclusive as próprias comunidades tradicionais. É claro que esse abuso que colocou essa espécie sob risco de extinção se dá não somente em função das próprias comunidades tradicionais, claro. Muito mais por pressão externa e por assédio e pressão e invasão de territórios do que as próprias as próprias comunidades que estavam nesses territórios.
E também acho que essa é uma questão. As ameaças dos terceiros que destroem as florestas. É a história de invasão dos territórios, de ameaça aos territórios e da fragilidade e impossibilidade das comunidades de defenderem seus territórios e de se defenderem também. A gente sabe que existe também o fenômeno de eventualmente membros de comunidades se envolverem nessa atividade por falta de opção econômica, porque essa falta de alternativa decorre do isolamento dessas comunidades e da ausência de políticas públicas e sociais.
E aí esse é um drama e uma tragédia mesmo. É uma violência imensa a proibição de atividades tradicionais. Então você tem a proibição de pesca, de fazer roça, de caça. Várias proibições de atividades tradicionais sustentáveis que inviabilizam a permanência nos territórios ou a permanência nos territórios da forma como as comunidades costumavam viver.
E eventualmente o palmito juçara aparece como uma alternativa de renda ilícita, mas aparece como uma alternativa de renda. Esse é um segundo aspecto. Um terceiro aspecto me parece é a questão do costume nas comunidades de fazerem o manejo da juçara. O manejo sustentável, que também foi proibido. Esse é um outro drama. A proibição absoluta do manejo faz com que as comunidades abandonem essas áreas, também. Essas áreas ficam mais desprotegidas inclusive facilitando o acesso de terceiros.
Gira tudo em torno de ponto em comum, que é a imposição de modelos de conservação que são pensados de forma unilateral, vertical e autoritária, sem participação das comunidades que estão nesses territórios e sem pensar nas consequências para essas comunidades e para os próprios territórios. Porque a gente sabe que as comunidades são uma barreira de proteção, são guardiãs da floresta. Acho que é a expressão mais bonita que a gente tem para poder definir essa relação que as comunidades têm com os territórios.
Em 2018, foi publicada a Resolução 189, que trata da exploração sustentável de espécies nativas do Brasil no estado de São Paulo e considera em seu texto pequenos produtores rurais e povos e comunidades tradicionais. Pode falar a respeito?
Toshio: Eu não lido tão diretamente com as políticas públicas ambientais de manejo e não lido diretamente com isso, então, não tenho o domínio das normativas. Eu tenho um domínio da legislação socioambiental mais propriamente. Eu tenho um domínio dessa legislação relacionada a povos e comunidades tradicionais.
Mas o que eu posso dizer de uma maneira geral é que eu posso citar alguns exemplos. A gente tem a possibilidade prevista no Código Florestal, na Lei da Mata Atlântica, de uso de fogo na roça e de retirada de madeira mesmo em áreas de Unidades de Conservação de Proteção Integral. E por muito tempo, por exemplo, a roça com o uso de fogo, a roça tradicional, foi criminalizada. Aqui no estado de São Paulo somente há pouco tempo foi regulamentada.
Então existe um arranjo com a Fundação Florestal para tentar digamos contornar a situação. Mas não havia uma regulamentação normativa, apesar de previsão legal. O mesmo com relação ao uso da madeira. Então a extração da madeira para uso doméstico, para moradia ou como lenha ou artesanato. Já havia essa previsão legal, mas não havia regulamentação.
Então às vezes a gente tem a garantia legal mas não tem as normas estaduais ou infra legais para poder executar essa garantia legal. E às vezes a gente tem a garantia legal e as normativas que regulamentam essa garantia legal, mas a gente tem uma burocracia nos órgãos. Então às vezes há um desconhecimento por parte dos órgãos.
Essa legislação e essas normas muitas vezes não se conversam. Então a gente tem visões diferentes entre secretarias. Então, a Secretaria de Justiça e Cidadania pensa de um jeito e o Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo), por exemplo, que presta assessoria aos quilombolas, tem uma visão a respeito de uma questão e a Secretaria de Meio Ambiente tem uma outra perspectiva diferente.
Na Constituição Federal há uma defesa explícita de povos indígenas e quilombolas em relação ao território. Como garantir o direito de outros grupos e coletividades tradicionais, como as comunidades caiçaras, por exemplo?
Toshio: De fato existe uma previsão expressa de direito territorial coletivo para indígenas e quilombolas com regime diferente e só isso acaba estabelecendo uma diferença que eu entendo que não é insuperável porque a Constituição Federal tem que ser lida na sua integralidade.
A própria Constituição Federal protege territórios indígenas e quilombolas sem proteger diretamente os demais territórios de comunidades tradicionais, mas ao mesmo tempo garante proteção à cultura de todos os grupos etnicamente diferenciados no Brasil. E essa proteção à cultura ela exige a proteção do território, já que não faz sentido proteger a cultura de um povo se você não garante a base material para esse povo se perpetuar. A fonte da cultura tem uma base material e essa base material muitas vezes é o território.
Não necessariamente, mas grande parte das vezes é território. Então, se a gente fala, por exemplo, dos ciganos, às vezes não é o território. São outras atividades e outras dinâmicas que precisam ser protegidas para a proteção da cultura dos povos ciganos. Mas a gente está falando de caiçaras, o território é fundamental. Os caiçaras têm um modo de vida baseado num território e no mar também. Eles precisam do mar e precisam da terra. É isso que caracteriza o modo de vida caiçara.
A gente tem não só a Constituição, mas as normas internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essa norma internacional determina de forma expressa, sem qualquer margem para dúvida, a proteção de todos os territórios coletivos de comunidades tradicionais. Uma discussão que a gente tem aqui no Brasil e que vem se consolidando de forma favorável, no meu ponto de vista, é de que todas as comunidades tradicionais do Brasil se enquadram no conceito de povos tribais para fins de proteção.
A Comissão 169 da OIT trabalha com duas categorias: povos indígenas e povos tribais. Povos indígenas não há nenhuma dúvida e a discussão ocorria com relação aos povos tribais e o que seriam povos tribais. E vem se consolidando o entendimento por parte de Ministério Público Federal, defensorias públicas, enfim, sociedade civil, órgãos, inclusive, do Poder Executivo, o próprio Poder Legislativo, de que no conceito de povos tribais se encaixam as comunidades tradicionais todas.
Mas, voltando à pergunta, de fato essa diferença acaba gerando consequências na proteção na garantia de direitos de comunidades tradicionais. Então os povos indígenas e quilombolas acabam tendo uma segurança jurídica maior de proteção. E as caiçaras estão entre as outras essas outras comunidades tradicionais que não têm uma previsão expressa de proteção territorial na Constituição Federal.
Isso do ponto de vista legal. Agora, pensando nas dinâmicas sociais de povos e comunidades, ao longo da história, a gente vai perceber que esse movimento de autoafirmação política de comunidades tradicionais é mais recente. Essas comunidades tradicionais sempre existiram, sobreviveram e se desenvolveram. Mas a autoafirmação política, a inserção política dessas comunidades é um fenômeno mais recente e é motivado pelas garantias constitucionais e pela politização e mobilização de lideranças comunitárias que passam a dialogar com a sociedade hegemônica, com o poder público, que saem de seus territórios.
A gente também tem uma dinâmica social diferente pensando na história desses povos e comunidades tradicionais. As comunidades caiçaras, por exemplo, têm uma especificidade. Elas vêm sofrendo processo de assédio, de especulação imobiliária, de urbanização, mais intenso. Se a gente comparar com outros outros povos e comunidades tradicionais que acabam ficando em áreas mais isoladas e conseguem se proteger melhor.
Os caiçaras ocupam a faixa litorânea, que tem uma densidade populacional maior, que sofre um processo de expansão urbana maior e por consequência esses territórios são mais afetados por conta dessa questão geográfica.