Experiências do passado serão usadas para remar tudo de novo. Mas a estrutura agrária e econômica do país mudou profundamente desde 2003. Movimentos e pesquisadores sugerem novas políticas
Assim que confirmou o retorno ao Palácio do Planalto, em 30 de outubro de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva fez uma promessa com cara de 2002: garantir três refeições diárias a cada pessoa neste país. Não é a promessa que foi requentada, mas o Brasil que deu muitos passos pra trás.
“Se somos o terceiro maior produtor mundial de alimentos e o primeiro de proteína animal, se temos tecnologia e uma imensidão de terras agricultáveis, se somos capazes de exportar para o mundo inteiro, temos o dever de garantir que todo brasileiro possa tomar café da manhã, almoçar e jantar todos os dias.”
O discurso é um indicativo de que Lula deve retomar políticas de seus governos anteriores que fizeram com que o Brasil deixasse o Mapa da Fome da ONU, em 2014. Mas, nesses vinte anos, o país passou por uma série de mudanças.
A estrutura fundiária se transformou: a soja ocupava 18 milhões de hectares em 2002, e agora está em 42,8 milhões. O arroz, o feijão e a mandioca têm sido pressionados pelo avanço do cultivo de grãos para exportação.
A estrutura econômica se transformou. Na virada do século, a indústria manufatureira respondia por quase 20% do PIB. No ano passado, bateu em 10,3%. Entre muitos problemas, isso significa remunerações menores para os trabalhadores, obrigados a migrar para a informalidade ou para a área de serviços. Não por acaso, o rendimento médio do trabalhador é o menor desde pelo menos 2012, quando se iniciou a atual série histórica do IBGE.
Reconstrução
O Brasil tem uma trajetória singular no combate à fome. Dos anos 90 até 2014, uma série de políticas públicas garantiram que o país deixasse o Mapa da Fome das Nações Unidas – isso significa que menos de 5% dos habitantes se encontravam em insegurança alimentar grave.
Daí por diante, uma agenda de desmonte de políticas públicas e direitos sociais fez o país andar na contramão. Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) referentes a 2022 apontam que a fome atinge 33 milhões de pessoas no país. Até Bolsonaro entregar a faixa presidencial é possível que essa realidade esteja ainda pior.
Com isso, movimentos sociais e pesquisadores que atuam na área esperam a retomada de algumas agendas que funcionaram entre 2003 e 2014:
- a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea): instalado no governo Itamar Franco e reaberto no início do primeiro governo Lula, o Consea fazia parte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), que tem o objetivo de assegurar o direito à alimentação adequada a toda a população residente no território nacional, conforme prevê o artigo 6º da Constituição. Espaço de articulação entre a sociedade civil e representantes do governo, o Consea foi o nascedouro de programas como o PAA e o Programa de Cisternas, que ajudaram a consolidar o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), criado em 2006 pela Lei nº 11.346. Foi extinto no primeiro dia do governo de Jair Bolsonaro.
- a retomada e o fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA): o PAA atua em duas pontas. De um lado, compra de agricultores familiares. De outro, distribui parte à população mais ameaçada pela insegurança alimentar e nutricional. A estratégia de atacar a insegurança alimentar em duas frentes é reconhecida como um dos fatores que contribuíram para que o Brasil deixasse o Mapa da Fome.
- fortalecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae): o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) deu importante contribuição ao PAA em 2009 ao determinar que 30% da merenda escolar deve ser comprada da produção familiar. Na prática, a medida transformou o Pnae no grande mercado da agricultura familiar no Brasil.
- retomada do Programa 1 Milhão de Cisternas para o Semiárido: o programa consiste na construção de cisternas para captação de água das chuvas para a população do semiárido brasileiro, o que permite que as famílias possam ter água potável durante os oito meses anuais de seca. A cisterna, com capacidade de armazenamento de 16 mil litros, permite que uma família de até 5 pessoas tenha água para necessidades básicas, como cozinhar e dar banho nas crianças.
“Nosso compromisso mais urgente é acabar outra vez com a fome”, enfatizou Lula, em seu primeiro discurso após a vitória, em São Paulo. Para alcançar esse objetivo, o futuro presidente precisará atualizar a agenda de segurança alimentar e nutricional.
Para onde avança o combate à fome em 2023?
Em uma mobilização nacional de ações contra a fome durante o período de pandemia, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), articulado a outros movimentos e organizações, realizou a doação e a distribuição de 7 mil toneladas de alimentos orgânicos e mais de 2 milhões de marmitas.
“Sair de uma região a 500 quilômetros da capital para levar comida é uma logística que acaba sendo cara. Fizemos pela disposição de muitas pessoas de contribuir num momento crítico do nosso país. Mas o Estado precisa assumir isso”, defende Débora Nunes, da coordenação nacional do MST.
Ela aponta que o combate à fome para o novo período deve incorporar políticas de curto prazo, como as ações de distribuição de alimentos para a população mais necessitada, mas que precisam estar integradas com medidas de médio e longo prazo, ligadas a outras políticas sociais, com foco na agricultura familiar.
“Pensar a política agrária, mas pensar também uma política agrícola que vá desde o crédito até a distribuição, passando pelo beneficiamento, a agregação de valor, fortalecendo as agroindústrias que possam também gerar emprego para a juventude no campo”, defende.
Nunes é assentada do MST em Alagoas, o estado mais atingido pela fome, com 36,7% de sua população em situação de insegurança alimentar grave, segundo dados da Rede Penssan.
O próprio MST transformou sua atuação nas últimas décadas. Durante os governos Lula e Dilma, o foco estava na realização da reforma agrária. No período, foram distribuídos 50,7 milhões de hectares. Mais recentemente, o MST passou a enfatizar também a qualidade da produção, com foco na agroecologia. Hoje, o movimento é um grande produtor de arroz orgânico.
Débora aponta a necessidade de o governo Lula incorporar o projeto de reforma agrária popular com a distribuição de terras no entorno dos grandes centros, com o incentivo e a estrutura necessários para a produção de alimentos saudáveis.
“Não pode ser a terra sem dar condições para que as pessoas vivam e permaneçam lá. Imagine o que é você produzir no entorno de Maceió, tendo infraestrutura disponível, estrada, energia, água. Produzir hortifrutigranjeiros, que tem uma sociedade demandando esses produtos, que não precisam viajar quilômetros para poder chegar ao mercado consumidor”, aponta.
A perspectiva de fortalecimento da agricultura no entorno dos grandes centros urbanos também é defendida pela ex-presidente do Consea Maria Emília Pacheco, assessora e pesquisadora da FASE e integrante do núcleo executivo do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional.
“Há estudos que mostram que a produção de alimentos no entorno das grandes metrópoles pelo mundo tem uma importância substancial. Isto significa que nós estamos defendendo um programa nacional de agricultura urbana associado ao direito à cidade”, aponta Pacheco.
Ela destaca como aprendizado do combate à fome no período da pandemia a importância da agricultura urbana, a necessidade de olhar para espaços onde o alimento possa ser produzido em menor escala, também nos bairros, assim como nos espaços de distribuição e manipulação desses alimentos, para torná-los mais próximos do público consumidor. Restaurantes populares, cozinhas comunitárias e feiras agroecológicas são espaços que devem ser integrados às políticas de segurança alimentar no país.
“É um lugar de troca, um lugar de aproximação do consumidor de quem produz, para que seja entendida a origem do alimento e sua qualidade. Isso tem uma importância enorme. É preciso incluir as feiras como equipamento urbano, também de segurança alimentar e nutricional.”
Para que se tenha uma ideia, em 1988, São Paulo tinha 803 feiras para nove milhões de habitantes. Em 2020, eram 883 para doze milhões, apontam os jornalistas Victor Matioli e João Peres no livro Donos do mercado: como os grandes supermercados exploram trabalhadores, fornecedores e a sociedade (Elefante, 2020). Essa diminuição é resultado do avanço das redes de supermercados na venda de frutas e legumes desde os anos 1990, quando as grandes redes, como Carrefour e Grupo Pão de Açúcar, passaram a criar centrais de distribuição próprias.
“As Ceasas perderam espaço propositadamente. As centrais de distribuição dos próprios supermercados entraram fazendo esse elo do atacado. Tem aí um campo que não foi usado. Durante os governos petistas não foi feito nada em relação a Ceasas. Temos que fazer”, disse ao Joio Walter Belik, professor titular aposentado de Economia Agrícola do Instituto de Economia da Unicamp e fundador do Instituto Fome Zero, onde segue atuante.
Ele aponta a política de abastecimento como prioridade para o avanço do combate à fome em um próximo governo Lula e os Ceasas devem integrar essa política junto com Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
“O Brasil tem uma infraestrutura fantástica. Nós temos quase 60 Ceasas no Brasil. As Ceasas são praticamente todas públicas, isso tem que avançar, tendo uma política geral de abastecimento. Ainda mais agora, numa situação de alta de preços.”
Belik destaca que as Ceasas têm um papel fundamental de normatização e informação ao consumidor e aos outros elos da cadeia de distribuição, como o varejo, os supermercados e as feiras livres, que integram a política de abastecimento a nível municipal. “Nessas grandes municípios, nas capitais, você tem que ter uma política de feira livre”, aponta.
O espaço onde é realizado a feira, os dias e horários da semana que façam mais sentido para o consumidor e as condições de higiene para feirantes e a população devem ser garantidos a nível municipal. Belik também ressalta a necessidade de organizar centros de distribuição da produção da agricultura familiar nos municípios.
“Não só faz toda a coisa logística, como também organiza uma feira de orgânicos, por exemplo. Porque você tem ali toda uma periferia da cidade produzindo e uma população urbana que possa se abastecer. Então é uma coisa simples de unir as duas pontas.”
Nesse mesmo sentido, Débora Nunes, do MST, defende a criação de sacolões subsidiados da agricultura familiar, onde as pessoas possam ter acesso a alimentos saudáveis, de qualidade a preços acessíveis, com subsídio do Estado.
“As pessoas sabem que existem sacolões que são da agricultura familiar, que têm o subsídio e que têm alimento saudável. Não tenho dúvida que as pessoas têm de ir para esse espaço do que ir para os supermercados convencionais. Então, acho que isso poderia se transformar numa política pública”, ressalta.
Em Araraquara (SP), as feiras livres, feiras dos produtores da agricultura familiar e restaurantes populares integram uma ação intersetorial de combate à fome, que envolve diferentes secretarias e programas municipais, batizada de “Araraquara Sem Fome”. O impacto dessas ações de combate à fome, potencializadas no período da pandemia, foi reconhecido no 8ª Fórum Global de Pacto de Milão para a Política Alimentar Urbana, realizado no Rio de Janeiro em outubro.
Uma política que marca a gestão de Edinho Silva (PT) no município é a Padaria Solidária, que articula a venda da produção de produtos da agricultura familiar de forma direta ao consumidor nas padarias da cidade, com data e horário estabelecidos pela prefeitura.
“A população criou esse hábito. A hora que vai comprar o pão, já aproveita e compra o hortifruti direto do agricultor. Como os agricultores tiveram dificuldade de escoar seus produtos para as políticas públicas, esse foi o meio também oferecido para que eles pudessem garantir minimamente a sua comercialização”, aponta Marcelo Mazeta, coordenador de Proteção Social da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de Araraquara.
Com a paralisação dos programas federais durante o governo de Jair Bolsonaro, o município criou programas locais para atender os produtores, como o Programa Municipal de Agricultura de Interesse Social (Pmais), criado em 2019 e reforçado no período da pandemia para garantir a doação de 500 cestas semanais de produtos orgânicos, distribuídos para as famílias em situação de insegurança alimentar.
Em 2021, o município garantiu a compra de 98 toneladas de alimentos pelo período de dez meses de dois grupos formais da agricultura familiar, ligados a assentamentos locais. Os hortifrútis adquiridos são entregues ao Banco de Alimentos e a distribuição é feita nos dez Centros de Referência da Assistência Social (Cras).
No período de pandemia, essa estrutura de armazenamento e distribuição foi utilizada também para as doações à Rede de Solidariedade, campanha que envolveu diferentes secretarias municipais, organizações da sociedade civil que atuam no combate à fome, empresas e pessoas físicas que doaram alimentos durante a crise do coronavírus.
“Essas experiências são fruto de um programa de ação social, de uma diretriz, de um momento histórico. Eu penso que isso ajuda também a levar uma reflexão para essas novas elaborações que virão a surgir em um novo governo federal”, aponta Mazeta, que também é coordenador do Setorial Estadual de Segurança Alimentar do PT paulista e participou da elaboração do programa de segurança alimentar que integra o plano de governo apresentado por Lula na campanha eleitoral.
Estoques reguladores
Outra política que deve ser observada em um próximo governo Lula é a situação dos estoques estratégicos, que praticamente deixaram de existir no governo Bolsonaro, um processo de desmonte iniciado ainda durante o governo Michel Temer, como já mostrou o Joio.
“Parte da culpa da alta do preço dos alimentos no Brasil veio dessa mentalidade neoliberal que não precisa de estoque regulador, que perpassou os governos do PT inclusive, essa ideia de que isso se resolve no mercado”, aponta Belik.
Os governos petistas utilizaram os estoques de alimentos para operacionalização do PAA, com as compras públicas feitas pela Conab, destinadas a populações em situação de insegurança alimentar. Mas Belilk defende que é preciso pensar em uma política de estoques de forma estratégica para regular os preços dos alimentos.
“Estoque regulador não é ter um armazém, isso é uma visão antiga. Com a política de estoques reguladores, você faz via opção de compra no mercado financeiro. O governo tem poder de compra sobre produtos que ele financiou, consegue regular o mercado de forma que não haja esta volatilidade que nós experimentamos agora em 2021, 2022.”