O Joio e O Trigo

A reeleição de Bolsonaro pode significar o fim do arroz-com-feijão

Competição com soja e milho, prioridade à exportação, desmonte de políticas públicas e empobrecimento deixam o prato-símbolo do Brasil em situação perigosa

O prato-símbolo do Brasil está com os dias contados? Orgulhoso devorador de Miojo, Jair Bolsonaro afastou a população do arroz-com-feijão. Os quatro anos de seu governo foram marcados por uma forte inflação dos dois itens – o preço do arroz chegou a subir 76% em 2020, enquanto o do feijão preto avançou 45,3% –, somada ao empobrecimento e ao desmonte de uma série de políticas públicas voltadas à alimentação.

Outros quatro anos na mesma toada poderiam representar uma separação definitiva entre a população mais pobre e o arroz-com-feijão. Até agora, não há nada que indique que no segundo mandato Bolsonaro colocaria a produção de alimentos e o combate à fome como prioridades – pelo contrário, o presidente segue a negar a existência de insegurança alimentar e terceiriza a culpa pela inflação.

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) publicou no começo do mês a primeira projeção para a próxima safra de grãos. Como de costume, o Brasil baterá recorde. O que há anos não representa uma boa notícia: os grãos usados para a alimentação tradicional do brasileiro seguem perdendo espaço. Na contramão, a soja mantém um crescimento acelerado, e um crescimento que se dá sobre uma base já grande.

A safra brasileira será de 312 milhões de toneladas, uma expansão de 15,3% sobre a colheita passada. Mas, somando arroz e feijão, temos 13,76 milhões de toneladas, ou 4,4% do total da produção brasileira de grãos.

É preciso olhar para um outro levantamento da Conab para entender algo que está expresso no cotidiano das pessoas: comprar arroz e feijão se tornou muito mais difícil. Entre a primeira semana do governo Bolsonaro e o início de outubro, o preço do feijão no atacado aumentou 71%, de R$ 181 para R$ 310. No caso do arroz, a elevação é de 65%, de R$ 63,85 para R$ 105,97.

O que está acontecendo no mercado

Nas áreas rurais, o governo Bolsonaro representa ao menos duas grandes mudanças. A primeira mudança é de ritmo: a atual gestão mantém a prioridade dada desde os anos 90 à agricultura de exportação, que conta com

subsídios públicos

Porém, Bolsonaro cria um ambiente muito mais favorável a um avanço sem freios dos setores do agronegócio ligados a grilagem, desmatamento, violação de terras indígenas e crimes contra populações rurais.

Além disso, ele aperfeiçoa ou engendra mecanismos de atrelamento das terras brasileiras ao mercado financeiro. A Lei do Agro abre a possibilidade para investimentos em dólar e para uma concentração fundiária ainda maior – isso em um país famoso pela concentração fundiária. A lei dos fundos de investimento do agronegócio (Fiagro), aprovada a toque de caixa na Câmara e no Senado, cria condições para mais um boom de investimentos.

O que está acontecendo no campo

Todo esse boom tem um reflexo lá na ponta, na agricultura, na vida de quem está decidindo o que plantar. “A alta do preço foi referente aos combustíveis, principalmente o diesel, desde a embalagem e também os insumos agrícolas. Tudo isso subiu muito porque é atrelado ao dólar”, conta Caio Reiche André, um jovem agricultor da região de Campinas, no interior de São Paulo. Ele é da terceira geração que cultiva na propriedade familiar de 35 hectares, mas tem realizado uma mudança de rumos. “O aumento de custos fez com que o produtor produzisse cada vez menos. Então, quem produzia 50.000 pés de tomate começou a produzir 30 mil, 25 mil, que era o que dava com o mesmo orçamento.”

Às repórteres Mariana Costa e Amanda Flora, ele contou algo que ouvimos de vários outros agricultores: “O tomate, devido à falta de mão de obra, há dois anos, desde a pandemia, a gente migrou para a soja. Porque a mão de obra da soja é muito menor, é só um trator, e irrigação é menos do que o cultivo do tomate.”

Essa é a segunda grande mudança introduzida pelo bolsonarismo: o abandono das políticas e dos estímulos voltados a abastecer o mercado interno. Não se trata de um livre mercado no qual os agricultores estão decidindo o que plantar, e sim de um Estado voltado a unicamente defender os interesses de elites financeiras e rurais, empurrando os agricultores para uma via de mão única na qual são obrigados a aderir à lógica da soja, do milho ou do algodão.

O que está acontecendo na vida dos produtores rurais é simples:

Alimentos vs commodities

Dificuldade de financiamento para a produção de alimentos
vs
Facilidade de financiamento para a produção de soja e milho

Dólar valorizado aumenta os custos de produção
(fertilizantes, agrotóxicos, maquinário)
vs
Real desvalorizado torna produtos brasileiros mais competitivos no exterior

Mercado brasileiro enfraquecido pelo empobrecimento
vs
Mercado potencial de sete bilhões de pessoas

Nas palavras da própria Conab, segundo as projeções para a próxima safra:  

A redução da produção de arroz “é reflexo principalmente da estimativa de significativa redução de área em meio à reduzida rentabilidade projetada para o setor, com a menor atratividade financeira do setor orizícola em relação às culturas concorrentes por área, como a soja e o milho”.

O mesmo para o feijão: “Tal valor indica diminuição na destinação de área em relação ao exercício passado, principalmente pela ampla concorrência de cultivos mais rentáveis recentemente, como soja e milho.”

Entre o último ano de Temer e o último de Bolsonaro

arroz

Perda de

22%
em área

Redução de

10,8%
em produção

feijão

Perda de

8,5%
em área

Redução de

4,9%
em produção

Fonte: Conab

“Essas lavouras [arroz e feijão] não têm a mínima condição de entrar numa rota de crescimento de milho e soja.” Quem diz isso é José Garcia Gasques, da Assessoria de Gestão Estratégica do Ministério da Agricultura. Ele coordena o estudo “Projeções do Agronegócio”, atualizado periodicamente.

Na versão mais recente, de 2021, o ministério projeta uma redução de até 60% na área cultivada com arroz ao longo da década. Em 2030, sobrariam 600 mil hectares, o equivalente a 10% do Distrito Federal. No caso do feijão, a redução seria de um terço, para 1,8 milhão de hectares – em torno de 30% do Distrito Federal.

Arroz + feijão, 2022 =
Rio de Janeiro

Arroz + feijão, 2030 =
40% do Distrito Federal

Fonte: Projeções do Agronegócio, Ministério da Agricultura, com base no limite inferior de projeção

No cenário mais positivo para o agronegócio, e portanto o mais negativo para a sociedade, o Brasil passaria a ser um importador dos dois grãos. Se esse cenário te soa improvável, há duas informações importantes:

  • no geral, o Ministério da Agricultura tem errado as projeções para menos, ou seja, na vida real a soja e o milho têm avançado até mais rápido do que o esperado. Para citar um exemplo, o país só ultrapassaria 150 milhões de toneladas de soja em 2024, mas isso acontecerá na safra deste ano
  • o Brasil tem importado 10% do consumo anual de arroz

Para Gasques, do Ministério da Agricultura, não há mudança no horizonte. “Os colegas nossos da Embrapa que olham arroz e feijão falam que o arroz pode dar uma virada, uma mudança de patamar se o Brasil começar a exportar arroz. Porque a qualidade do arroz brasileiro é muito boa. Se for mais relevante na exportação, isso deve trazer várias mudanças na cultura em termos de tecnologia.”

Área brasileira de produção de grãos em 2022-23=
52,6 milhões de hectares – pouco menos que o estado da Bahia

Soja=
42,8 milhões de hectares - Mato Grosso do Sul + Rio de Janeiro + Sergipe + Distrito Federal

Arroz=
1,53 milhão de hectares - 70% de Sergipe

Feijão=
2,8 milhões de hectares - Alagoas

Até há pouco tempo, o cenário de avanço do agronegócio sobre o cultivo de alimentos para consumo interno não era tão claro. Agora, existe uma competição evidente, e essa competição é absolutamente desigual. Para que se tenha uma ideia, a atual safra de grãos avançará dois milhões de hectares – a soja ficará com 1,5 milhão. O Mato Grosso, sozinho, responderá por metade disso. O Joio mostrou como assentamentos e sítios estão sendo tomados pela soja, e os agricultores familiares que desejam resistir não conseguem ser ouvidos por Incra e Ibama.

Arroz e feijão vêm perdendo área desde os anos 90. No geral, o aumento da produtividade tem conseguido compensar essa redução. Mas tudo indica que tenhamos chegado a um ponto de mudança: a produção total começa a cair, e está no limite de não dar conta do consumo total da população brasileira.

Quando se olha para os períodos dos mandatos presidenciais, o Brasil tem uma quase-estabilidade na produção de feijão, e uma ligeira redução na produção de arroz. O que em nenhum dos casos representa uma boa notícia, já que a população cresceu consideravelmente desde os anos 90 – de 160 milhões no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 1998) para 212 milhões em 2022.

O que está acontecendo na cidade

O bolsonarismo seria criador de problemas em qualquer período histórico. Mas tivemos o azar de um encontro entre o pior governo de todos os tempos e alguns acontecimentos dramáticos, internos e externos. A pandemia e a Guerra da Ucrânia, de fato, bagunçaram o cenário internacional, com uma série de reflexos negativos sobre o preço dos alimentos, dos combustíveis e dos insumos utilizados para a produção. Porém, isso é apenas parte da explicação.

Internamente, o bolsonarismo vem na esteira dos desmontes promovidos por Michel Temer. A reforma trabalhista transferiu dinheiro que chegava às mãos da população, por meio de direitos, para grandes empresas e empresários. Desde então, o Brasil virou um exército de MEIs e o rendimento do trabalhador medido pelo IBGE caiu quase 10% no intervalo de apenas um ano – entre o primeiro trimestre de 2021 e o mesmo período de 2022. Com isso, o rendimento é o menor desde 2012. 

O que deveria acontecer na cidade

Para piorar, o bolsonarismo chega no momento-chave em que deveria ser promovida a formulação de políticas públicas para frear o consumo de ultraprocessados. No mundo inteiro, governos têm quebrado a cabeça para criar medidas que consigam limitar o aumento dos índices de obesidade e de doenças crônicas.

O Brasil vinha apresentando um padrão alimentar resiliente no que diz respeito ao consumo de ultraprocessados. As faixas de menores salários e moradores do Norte e do Nordeste tinham índices de consumo consideravelmente mais baixos, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE. A boa notícia é que, embora o consumo continuasse em alta, o ritmo de avanço dos ultraprocessados havia diminuído na POF de 2017 e 18 em comparação com a anterior, de 2008 e 09.

Porém, tudo indica uma inflexão nessa curva. O empobrecimento massivo da população e o aumento dos níveis de insegurança alimentar podem ter ocasionado uma migração dos mais pobres em direção a Miojo, salsicha e companhia. Para piorar, justamente este ano a média de preços dos ultraprocessados se tornou mais barata que a média de preços dos alimentos in natura e minimamente processados, segundo o acompanhamento promovido por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de São Paulo (USP).

Caso Lula vença

O cenário não é fácil para o petista. Ele dificilmente terá condições e disposição política para comprar brigas grandes com o agronegócio. Criar impostos sobre a exportação de commodities seria um caminho importante para desestimular a produção de soja, algodão e milho. Além disso, seria necessário promover uma análise de como o atrelamento do agronegócio ao mercado financeiro está produzindo concentração fundiária, redução da produção de alimentos e êxodo rural.

Numa perspectiva mais modesta, porém, não é difícil recriar estímulos para que a agricultura familiar possa produzir alimentos. Um pequeno aumento na área destinada a arroz, feijão, mandioca, tomate e outros cultivos já teria a capacidade de melhorar consideravelmente a oferta. Sem preços baixos, será difícil os alimentos competirem com os ultraprocessados.

Por João Peres

Matérias relacionadas