No Brasil, já foram aprovados 49 produtos entre alimentos de origem vegetal e animal, leveduras e aditivos de ração, mas manobra no processo de liberação e falta de transparência dificultam saber onde esses produtos são usados
Em setembro deste ano, mais uma variedade de soja tolerante à seca inicia os testes de campo, que devem ser realizados pelas próximas três safras. Se os resultados estiverem de acordo com o que esperam os pesquisadores, a partir de 2025 o produto chegará ao mercado. A definição sobre o seu uso como ração animal ou matéria-prima para indústria alimentícia será definida ao final desse processo.
Seria mais do mesmo para um agronegócio que, em lugar de lidar com as evidências de que os recursos naturais estão no limite, prefere apostar em adaptações a um cenário catastrófico. Mas a soja desenvolvida pela Embrapa tem um quê a mais: foi obtida através de uma técnica de edição genética.
Em meio a uma rotina marcada por precarização laboral, bombardeio de informações e instabilidade política, a grande maioria dos brasileiros não teve tempo de olhar para uma sala de reuniões em Brasília. É na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio, que foram aprovados, até junho de 2023, 49 produtos obtidos por edição genética.
Famoso por liberar transgênicos sem a devida precaução, o colegiado composto por governo e pesquisadores deu um passo além na discussão sobre edição genética. Os integrantes decidiram seguir o caminho dos Estados Unidos ao considerar que os produtos obtidos pelas Técnicas de Melhoramento de Precisão (Timp) não são transgênicos e, assim, estariam dispensados de todas as etapas de liberação previstas na Lei Nacional de Biossegurança.
A partir de então, é muito mais vantajoso a uma empresa lutar para que seu produto seja interpretado como um organismo não transgênico ou não geneticamente modificado – uma espécie de brecha legalizada na Resolução Normativa 16, que está sob investigação do Ministério Público Federal (MPF), mas segue em vigor.
Ser aceito nessa resolução garante uma enorme economia de tempo e de recursos, uma vez que os transgênicos precisam passar por uma série de testes sobre riscos aos seres humanos e ao meio ambiente. Além disso, por lei os produtos que levem mais de 1% de transgênicos em sua composição precisam exibir no rótulo o famoso triângulo amarelo com um T maiúsculo, ao passo que os produtos aceitos pela Resolução 16 estarão isentos dessa identificação.
Foi o que se deu com a soja da Embrapa, obtida a partir de uma das várias técnicas de edição genética disponíveis. No geral, essas técnicas consistem em cortar o DNA em um ponto específico. Nesse caso, o método utilizado chama-se CRISPR. Você pode ter ouvido falar sobre CRISPR cinco anos atrás, quando o cientista chinês Hu Jiankui causou repulsa na comunidade científica ao anunciar a criação de três bebês geneticamente modificados – fato que lhe rendeu uma sentença de três anos de prisão.
No caso da soja da Embrapa, ao cortar o DNA em um ponto específico, os pesquisadores conseguiram silenciar o gene, tornando essa variedade resiliente à seca.
O passo seguinte é inserir um guia que tem como objetivo realizar um acoplamento com uma parte do DNA com quem tenha similaridade. Após isso, a célula faz o reparo, o que, ao final, pode adicionar genes com uma determinada função – ou deletar outras funções.
As técnicas de edição genética são a promessa da vez. A exemplo do que se deu duas décadas atrás com os transgênicos, seriam uma revolução da ciência para beneficiar a produção agrícola. Mas não é tão simples assim.
Sarah Agapito, pesquisadora sênior do Norwegian Research Centre (Norce), autoridade nacional norueguesa em biossegurança, um instituto de pesquisa mantido por três universidades, afirma que essas técnicas de melhoramento de precisão podem gerar resultados “fora do alvo”.
“O que mais preocupa são as mudanças que vão ocorrer fora do alvo, pois qualquer mecanismo que se baseia em homologia de sequência de DNA é promíscuo. Se a sequência for um pouquinho parecida, mesmo não sendo 100% parecida, ele vai acoplar. A empresa teria de fornecer dados robustos que provem que não houve pareamento fora do sítio, os chamados out targets“, explica.
Para ela, esses produtos devem ser regulamentados por, dentre outras razões, “não possuírem histórico de uso seguro e por haver evidências de risco biológico, ou seja, imprecisão e imprevisibilidade”.
Entramos em contato com a pesquisadora Liliane Henning, da Embrapa Soja, em Londrina (PR). Sobre o risco de haver mudanças no processo de edição genética da soja fora do alvo, ela falou que “a Embrapa realizou todo mapeamento genético da soja, por isso, desenha um RNA Guia capaz de evitar efeitos off targets [fora do alvo]”. Ainda segundo ela, “desde o surgimento da técnica CRISPR, foram desenvolvidos softwares capazes de identificar efeitos fora do alvo”.
Perguntamos ainda se esses efeitos fora do alvo são informados à CTNBio na carta-consulta, uma vez que, nos pareceres públicos, muitas informações são apresentadas como sigilosas. De acordo com a pesquisadora, “é apresentado um dossiê à CTNBio, que descreve a ausência de efeitos fora do alvo”.
Também buscamos saber sobre a importância de estender critérios éticos do uso da CRISPR em seres humanos para variedades vegetais e animais, pensando em evitar possíveis efeitos adversos dessas variedades em interação com os diversos seres vivos no meio ambiente.
Neste sentido, ela afirmou que “descartar uma planta que não tenha alcançado todas as características almejadas é diferente de descartar um embrião”. E reforçou que “uma vez a soja tendo sido considerada convencional, não trará risco adicional ao meio ambiente”.
A técnica está sob moratória
Técnicas de Melhoramento de Precisão (Timp) são uma tradução adotada pela CTNBio para o termo em inglês Precision Breeding Innovation (PBI), cunhado na Europa. Além da CRISPR, há várias outras escondidas sob siglas igualmente incompreensíveis ao público: ZFN, ODM, Gene Drives e TALEs.
Em 2020, as cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna, criadoras da CRISPR, receberam o Prêmio Nobel de Química devido ao impacto da tecnologia nas ciências da vida. O argumento para a premiação é de que o método “está contribuindo para novas terapias contra o câncer e pode ajudar na cura de doenças herdadas”.
Até o prêmio Nobel de Química, houve uma caminhada de oito anos de pesquisa, fruto de uma parceria entre Charpentier e Doudna. Um ano antes, em 2019, a “capacidade da CRISPR Cas” foi descoberta por Charpentier durante estudos da bactéria Streptococcus pyogenes. Mas ainda é cedo para cravar o papel da CRISPR como técnica revolucionária no tratamento de doenças raras.
Levando-se em conta a falta de estudos consistentes sobre a precisão da técnica e o avanço do limite ético adotado no experimento chinês com bebês, a CRISPR possui, desde 2015, uma moratória. A medida, sem efeito legal, foi firmada em comum acordo por um grupo de cientistas da área.
De acordo com o biólogo e professor do Departamento de Botânica da universidade Federal do Rio Grande Sul, Paulo Brack, o risco do uso da CRISPR em seres humanos na fase embrionária é que “ela pode dar vazão à eugenia”, ou seja, à busca por criar seres humanos “ideais” por meio de seleção genética – por exemplo, indivíduos brancos e com desempenho físico de alto padrão.
O pesquisador acredita que a preocupação ética adotada com os humanos deve se estender a outras espécies. “Já tem o cuidado ético com os seres humanos, mas esse mesmo cuidado deve ser adotado com as plantas e os animais para evitar a contaminação das espécies nativas”, reforça.
Em outras palavras, Paulo Brack defende uma avaliação rigorosa, além do controle dessas variedades vegetais e animais de edição genética. Com isso, explica ele, seria possível evitar que, uma vez essas variedades colocadas em campo, possam contaminar espécies nativas e provocar efeitos colaterais em interação com diversos biomas. Sem análise de risco, nenhuma dessas possíveis consequências será identificada e muito menos revertidas.
Outros produtos já aprovados
Com a Resolução 16, de 2018, a CTNBio criou uma espécie de atalho para a liberação de novas variedades de produtos. Como repórter, a primeira missão ingrata é entender o que já foi liberado. Mais difícil ainda é entender o que já pode estar na casa das pessoas.
Isso porque muitos desses produtos são insumos de uma cadeia produtiva de outro produto. Com isso, no parecer técnico ele tem um nome, mas, ao ser incorporado a um produto final, ganha outro nome comercial e passa a ser produzido por outra empresa. Seguir essa trilha não é uma missão simples. Além disso, nem sempre as empresas privadas atendem aos pedidos de informação da imprensa.
Fazendo um passeio pelos pareceres técnicos emitidos pela CTNBio, encontramos uma gama de produtos resultados de Timps. O milho ceroso, por exemplo, desenvolvido pela empresa Corteva Agriscience, é uma variedade que concentra mais amilopectina, um carboidrato de diluição lenta. Essa maior concentração é resultado de edição genética.
Esse insumo pode ir parar em suplementos nutritivos procurados por atletas de alto desempenho, que buscam um carboidrato capaz de fornecer energia por muito tempo, sem provocar pico glicêmico. Também pode ser base para alguns produtos alimentícios, inclusive para crianças, como é o caso de balas e doces.
Mas o milho ceroso já está em uso? Sob anonimato, alguns membros de unidades da Corteva afirmaram que esse produto é parte do híbrido de milho Optimus AQUAMax – mais uma variedade que promete resistência à seca.
A nossa reportagem consultou a assessoria de imprensa da empresa, que negou que o híbrido tenha passado, em parte, por edição genética. Quando afirmamos que obtivemos essa informação de fontes da própria Corteva, a assessoria nos enviou um comunicado, que afirmava que o AQUAmax havia sido obtido por meio de um processo de melhoramento genético convencional chamado breeding.
No texto, a empresa reconhece que apresentou carta-consulta para o milho ceroso editado geneticamente por CRISPR, mas que decidiu por não lançar o produto comercialmente no Brasil.
A desregulamentação do milho ceroso foi questionada em um parecer técnico da pesquisadora Sarah Agapito, lançado em novembro de 2019, quando esta ainda integrava o Centro de Pesquisa em Biossegurança GenØk – até então, uma unidade de pesquisa independente, que em dezembro de 2021 se uniu ao grupo de pesquisa Norce.
O documento afirma que a técnica de “bombardeamento de partículas com plasmídeos, ou biolística/biobalística, como também é chamada”, usada na obtenção do milho ceroso, “é uma técnica de engenharia genética muito utilizada”. O parecer, inclusive, traz exemplos de outros produtos autorizados pela CTNBio que usaram a técnica em questão.
São eles: os milhos geneticamente modificados, resistentes ao herbicida glifosato e a insetos, e a cana-de-açúcar geneticamente modificada. Ou seja, uma mesma técnica empregada em outros produtos foi considerada OGM, mas no caso do milho ceroso o tratamento foi diferente.
No documento, a pesquisadora explica que o milho ceroso foi obtido através de duas técnicas: o bombardeamento de partículas e a CRISPR. “O fato é que a primeira técnica bastante conhecida é considerada um OGM.”
Outro exemplo de produto fruto de edição genética que foi liberado pela CTNBio é o BiomElix. Trata-se de um aditivo seco que vai na ração ou na água e é destinado a reduzir a contaminação com a bactéria Salmonella Enterica, produzido pela empresa Folium.
Ao longo da apuração, identificamos também um produto desenvolvido pela Evolutta, cuja edição genética lhe garantiu a capacidade de combater a Lagarta do Cartucho e a mariposa Helicoperva. Essas espécies consomem culturas como milho, soja e algodão, respectivamente. A tecnologia deve estar disponível no mercado até o fim de 2024, segundo informações do diretor Comercial da empresa.
Um caso no mínimo curioso foi o produto TRP Prosin. Calma, o nome é estranho, mas trata-se de um aditivo, produzido pela C J do Brasil, que tem 75% de proteína, além de aminoácidos, e é usado na produção de ração para suínos e bovinos. O nome e o parecer técnico deste produto constavam na lista de Timp. No entanto, constava no parecer técnico que ele foi analisado como um derivado de organismo geneticamente modificado.
Seguindo com a investigação, descobrimos que o Prosin está no mercado desde novembro de 2022 e é base dos produtos da Nuctramix, especializada em alimentação animal, e é usado em suínos e bovinos que são matéria-prima dos produtos Aurora. Até aí, tudo bem. Tudo levava a crer que a edição genética não só estava em nossas vidas, como no nosso prato, no nosso churrasco. O que não fazia sentido é: se ele é um derivado de organismo geneticamente modificado, por qual razão estava entre os produtos de edição genética?
Após um longo percurso marcado por leituras, muitas ligações e trocas de e-mail, veio a resposta. Em entrevista ao Joio, o coordenador da Secretaria Executiva da CTNBio, Rubens Nascimento, afirmou que o colegiado cometeu um erro, porque o Prosin não é fruto de edição genética, mas um derivado de OGM. “Está errado! A pessoa que fez essa lista se equivocou e colocou esse produto na lista da RN 16, mas ele é derivado de OGM, mesmo”, afirmou Rubens.
O fato é que, diante de tantos atalhos e decisões tomadas sem participação pública, trocar as listas de um produto não é apenas um erro burocrático. Causa ainda mais confusão e insegurança às pessoas que não fazem ideia do que é consumir um alimento que passou por edição genética.
Tecnologia nova, promessa antiga
A edição genética chega ao mercado para reoxigenar uma promessa antiga do agronegócio: garantir a segurança alimentar mundial. Em tese, rapidez, eficiência e baixo custo seriam benéficas a todos, em especial ao um bilhão de pessoas que diariamente sofrem com insegurança alimentar grave.
Quem carregava essa atribuição eram os transgênicos, logo quando surgiram, há 25 anos. Mas, como demonstra o caso brasileiro, ser o “celeiro do mundo” não nos isenta de ter 33 milhões de pessoas passando fome.
Essas características estão entre as que foram citadas pela Embrapa Genéticos e Biotecnologia e pelo Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB) no texto “A tecnologia CRISPR e suas aplicações no Brasil e no mundo”, publicado no dia 11 de novembro de 2016.
Gabriel Fernandes, hoje coordenador do Centro de Tecnologia Alternativa da Zona da Mata, acompanhou por um longo tempo as reuniões da CTNBio e redigiu um boletim singular no acompanhamento dos primeiros anos de vida do colegiado. Na visão dele, os produtos de edição genética não diferem das promessas dos transgênicos em termos de segurança alimentar e nutricional. “As grandes corporações vão continuar controlando essas tecnologias e o agronegócio brasileiro é dependente dessas grandes empresas. Sem contar que boa parte do que é produzido aqui é exportado e serve como ração animal”, explica.
O documento Patentes de Edição de Genoma no Canadá, da Rede Canadense de Ação em Biotecnologia, ilustra como se dava, em 2022, o ranking de posse de patentes por corporações. O informativo mostra que a Corteva, sozinha, detém o maior número de patentes da tecnologia CRISPR no mundo.
A Bayer também possui destaque. Do total de patentes de edição genômica destinadas ao universo agrícola, 69% são originárias da China. Todas essas sementes estão disponíveis gratuitamente para pesquisa, mas o uso comercial só é liberado mediante o pagamento de royalties, conclui o informativo.
Trocando em miúdos, não há nada de novo no front. “Eu diria que as técnicas mudam, mas a lógica de uma concentração dessas sementes nas mãos de poucas empresas não mudam”, reforça Gabriel Fernandes. Essa concentração, inclusive, em um cenário de extinção das sementes nativas, parte do patrimônio da biodiversidade brasileira, representa um risco à soberania alimentar brasileira.