Presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos exibe fora de contexto uma informação sobre os danos associados aos ultraprocessados e diz que classificação NOVA não tem fundamento científico
Em 1º de março, o presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), João Dornellas, foi à Câmara dos Deputados para uma audiência pública sobre reforma tributária. O encontro foi convocado pela Frente Parlamentar do Empreendedorismo, que gostaria de abordar os pontos que “doem” nos pagadores de impostos.
A dor de ouvidos de quem estava presente, aparentemente, não foi um ponto de preocupação. No ponto que nos toca, alimentação, o representante de Nestlé, Danone, Ambev e companhia distorceu uma entrevista publicada no podcast Prato Cheio em agosto de 2023.
É verdade. Vamos pensar em quem explora a falta de conhecimento das pessoas. A Abia e suas associadas não economizaram numa campanha para evitar que os rótulos de alimentos processados e produtos ultraprocessados recebessem alertas sobre o excesso de calorias, sal, açúcares, gorduras e gorduras saturadas. Ao final, o padrão escolhido pela Anvisa foi bastante enfraquecido graças à campanha promovida por corporações – uma campanha, vamos combinar, de terrorismo informacional, que passou pelo cálculo de que os alertas fariam com que as pessoas deixassem de comer.
Durante a audiência pública, Dornellas exibiu ao longo de dois minutos um slide com um episódio do Prato Cheio. “UItraprocessados, uma relação tóxica” foi o episódio que abriu a série “A máquina de criar problemas”, levada ao ar no segundo semestre do ano passado.
O presidente da Abia se apegou a uma fala de Carlos Monteiro, professor emérito da Faculdade de Saúde Pública da USP e criador da NOVA, uma classificação que separa os alimentos de acordo com o grau e o propósito de processamento – ele é figura frequente em nossa pauta e, se quiser saber mais a respeito, esta reportagem de 2018 pode ser um bom começo.
Dá o que pensar entender os motivos que levaram Dornellas a escolher o Joio como contraponto numa audiência pública. O que podemos dizer é que somos o veículo jornalístico com o maior acúmulo de cobertura sobre ultraprocessados. Foram centenas de reportagens em sete anos.
O episódio em questão tem 40 minutos. E a entrevista de Carlos Monteiro, como de praxe no trabalho do Joio, foi uma conversa longa, de duas horas de duração. Mas Dornellas optou por pinçar um trecho. Ele tentou tocar o episódio durante a audiência pública. Mas falhou.
Então, nós decidimos ajudá-lo. Na verdade, nós decidimos fazer melhor: colocamos aqui um trecho maior do que o pinçado por Dornellas. O nome disso é contexto, e faz toda a diferença na hora de entender uma informação.
O sentido da fala de Carlos Monteiro e o momento em que aparece no episódio são cristalinos: estamos falando que não é preciso esperar mais para começar a agir na regulação dos ultraprocessados.
Dornellas, porém, optou por tirar de contexto a fala, simulando que Monteiro está a admitir que é frágil o nível de evidências científicas sobre ultraprocessados. “Essa classificação encontra respaldo científico? Não. A gente vai ver mais pra frente que no mundo inteiro vários estudiosos e cientistas falam que isso aí não para de pé. Não para de pé, exatamente por ter uma base muito ampla e uma classificação que tudo cabe ali dentro”, insiste o executivo.
Na véspera da audiência pública, o BMJ (antigo British Medical Journal), uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo, havia publicado um novo estudo sobre ultraprocessados. Foi a revisão mais ampla quanto às evidências disponíveis de que esses produtos são um vetor de doenças – a soma dos estudos abarcou dados de dez milhões de pessoas. Em resumo, os autores encontraram uma associação com 32 enfermidades diferentes.
Para Dornellas, é insuficiente. “Os estudos são fracos. Eles não estabelecem causalidade. É estudo observacional. O que é um estudo observacional? Eu ligo pra casa do Rubens e falo ‘Rubens, você comeu ontem o produto tal, tal, tal?’. ‘Você está obeso?’ Beleza, Ele está obeso. Se ele está obeso e comeu o produto eu vou falar assim ‘Olha, existe uma probabilidade, esse produto tem perigo’”.
Na realidade, boa parte dos artigos publicados sobre ultraprocessados e doenças usam como base estudos de coorte. Essas pesquisas se concentram no acompanhamento de grandes amostras populacionais ao longo de anos ou décadas. A partir disso é possível investigar se uma maior exposição a uma determinada situação ou substância representa um risco ou não. Quando existe uma grande quantidade de estudos apontando para um mesmo caminho, essa evidência científica ganha força.
Espera. Pensando bem, tem um outro trecho da entrevista de Carlos Monteiro que João Dornellas poderia ter exibido na Câmara.
“Quando tudo é muito plausível, quando se tem uma teoria que parece muito boa, ela parece explicar muito bem isso, isso dá para o dado empírico muita força. Então, quando a gente fala da totalidade da evidência, que é um conceito muito caro para a epidemiologia, é isso. Você fala o seguinte ‘Olha, não é que tem um estudo que mostrou uma associação entre ultraprocessados e aumento do risco de câncer. É um monte de estudos’.”
Dornellas se queixa da falta de estudos com pacientes. Há apenas um ensaio clínico publicado até hoje sobre ultraprocessados. E esse ensaio não trouxe boas notícias para os fabricantes desses produtos: durante as duas semanas em que foram alimentados exclusivamente à base de ultraprocessados, os voluntários ganharam peso e apresentaram uma piora nos indicadores de saúde. Duas míseras semanas.
A suposta carência de estudos desse tipo não é uma lacuna científica: é uma questão ética. Quando existe um produto que pode fazer mal à saúde, cientistas não estão autorizados a transformar humanos em cobaias. É por isso, por exemplo, que não se pode obrigar as pessoas a fumarem cinco maços de cigarros por dia para ver no que vai dar. Entende?
Pensando por essa linha, na verdade existe um experimento sendo feito em relação aos ultraprocessados. É um experimento que envolve… oito bilhões de pessoas, e contando. Nas últimas décadas, Nestlé, Coca-Cola, Heinz, Danone e companhia não mediram esforços (nem recursos) para estimular o aumento no consumo desses produtos. O que temos visto é uma explosão nos índices de doenças crônicas em todo o mundo. Então, será que já podemos encerrar esse experimento?
O curioso do áudio que Dornellas tentou exibir na Câmara é que, na estrutura do episódio do Prato Cheio, logo antes mostramos trechos de uma outra audiência pública da qual o presidente da Abia havia participado, e também distorcendo argumentos sobre ultraprocessados com base nas mesmas questões. A vida anda em looping.
Nos últimos meses, a Abia tem dobrado a aposta. “Ele [Monteiro] definiu os ultraprocessados com uma definição que cabe tudo ali dentro. São formulações industriais com mais de cinco ingredientes”, contou Dornellas. “Qualquer pessoa que fizer uma broa de fubá em casa aqui sabe o que vai até oito, nove ou dez ingredientes. É até engraçado você pensar que está fazendo a broa de fubá na sua casa, quando chegar a cinco ingredientes, você para e fala ‘opa, e agora?’ Coloco uma erva doce ou não? Se eu colocar erva doce talvez vire ultraprocessado. Não tem sentido e passa longe da ciência dos alimentos.”
Sério mesmo? É evidente que não se faz ultraprocessado no âmbito doméstico – aliás, recomendamos ao presidente da Abia e a seus assessores escutar também o terceiro episódio da série, “Cimento, açúcar e aditivos”, para não cometerem mais esse tipo de erro.
A definição de ultraprocessados dada pela classificação NOVA não deixa nenhuma margem a que se confunda erva doce com glutamato monossódico:
“Alimentos ultraprocessados — que podem ser comidas e bebidas — não são propriamente alimentos, mas, sim, formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos do primeiro grupo. Essas substâncias incluem açúcar, óleos e gorduras de uso doméstico, mas também isolados ou concentrados protéicos, óleos interesterificados, gordura hidrogenada, amidos modificados e várias substâncias de uso exclusivamente industrial.”
Broa de fubá é formulação? Obtida por fracionamento?
A irmã da Ursal
Dornellas falou tanto que nos esquecemos da razão da audiência pública: reforma tributária. O Congresso Nacional está avaliando a regulamentação dos dispositivos constitucionais aprovados no ano passado. Uma das questões em disputa é a incidência de impostos seletivos sobre produtos que possam ser nocivos à saúde.
Organizações da sociedade cobram que os ultraprocessados entrem na lista. Então, tentar enfraquecer a NOVA é estratégico para derrubar o pilar da mudança que poderia resultar no pagamento de tributos por nuggets, lasanha congelada, iogurtes, pães de forma, cereais açucarados, salgadinhos, biscoitos e tantos outros itens dos supermercados.
Há muito em jogo. Cada vez mais países adotam alertas para informar sobre o excesso de sal, açúcares e gorduras. Aventa-se a possibilidade de definir rótulos especiais para ultraprocessados, igualando à experiência dos cigarros. Recentemente, o governo Lula publicou um decreto sobre a composição da cesta básica, que agora obrigatoriamente exclui ultraprocessados. Por fim, a adoção de impostos no Brasil poderia ter uma grande influência sobre outras nações.
Diante disso, a indústria de ultraprocessados lançou mão de uma série de estratégias que a literatura científica está careca de conhecer – e de catalogar. Uma delas é tentar criar confusão em torno do conhecimento que se tem sobre o assunto. A outra é buscar menosprezar os críticos e isolá-los como desequilibrados ou extremistas.
Uma terceira é simular a criação de coalizões. Na audiência pública, Dornellas começou pelo preâmbulo clássico de apontar que a indústria cria uma enorme quantidade de empregos e garante a alimentação de milhões de pessoas. Em meio a isso, trouxe a público a criação da União da Cadeia Produtiva (Uncab). Segundo ele, um “movimento” constituído por quatro organizações empresariais: além da Abia, a Abicab (de chocolates e balas), a Abir (de refrigerantes e outras bebidas não alcoólicas) e a Abimapi (de massas).
A Uncab não tem página na internet – e nem menções na internet, para ser sincero. Talvez seja uma irmã da Ursal. Ninguém nunca ouviu falar, mas muita gente jura que existe.
A estratégia de criação da Uncab emula o que foi feito quando da discussão da rotulagem na Anvisa. Na ocasião, associações empresariais criaram a Rede Rotulagem, uma coalizão que buscou mostrar que as mudanças propostas pela agência afetariam muito mais setores da economia do que seria possível imaginar inicialmente. Uma estratégia a la Ursinhos Carinhosos: juntam-se os coraçõezinhos (ou as contas bancárias, no caso) para criar um efeito intimidatório. Resta pedir aos fabricantes de ultraprocessados que desçam da Nuvem Rosa e encarem o mundo real.