Iniciante em todo o mundo, a produção de carne em laboratório e em biorreatores esbarra em poucos protocolos de produção definidos e segredo industrial
Em um mundo em colapso climático e sem espaço para aumento de rebanhos, a ideia de obter carne animal sem abate é poderosa. A carne cultivada, ou carne de laboratório, tem sido propagandeada pelas startups do setor como a solução para ampliar a oferta de carnes bovina, suína, de aves e peixes e alimentar uma população global de 10 bilhões de pessoas ao final da década de 2050.
Enquanto a explicação geral sobre a produção parece conter etapas bem definidas, ao olhar o processo de perto, encontram-se mais gargalos e falta de respostas do que certezas. As startups enxergam o copo cheio, e têm ditado o debate público com um otimismo exacerbado sobre a viabilidade e a necessidade de investir em carne cultivada.
A cultura das startups, negócios cujos mercados ainda não estão estabelecidos, e sua viabilização pelo investimento financeiro de capital de risco criam uma ilusão ótica: testes iniciais são lidos como promessas de sucesso a curto prazo. Nada ilegal ou errôneo em apostar financeiramente em uma ideia de produto que pode, sim, transformar um setor inteiro. Mas é preciso um olhar crítico ao copo pela metade, e uma dose de realismo para abastecer a discussão pública e evitar que os parâmetros de regulamentação venham apenas do lobby de indústrias nascentes.
“Nunca vi presencialmente uma produção de carne cultivada em biorreator superior a 10 litros”, contou Carlos Soccol, professor de Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia Industrial da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e que estuda escalonamento de produção de células de microrganismos, fungos, vegetais e animais há mais de 30 anos.
Quando comecei minha pesquisa em carne cultivada, no final de janeiro, foi para entender se essa tecnologia poderia contribuir para a segurança alimentar e nutricional no Brasil, um dos argumentos disseminados pelo marketing das startups. Não encontrei nada além de estimativas e previsões sem dados concretos. O exercício imaginativo de futuro vendido por esta linha de raciocínio é que em médio prazo teremos as condições ideais para produzir algo bom para todo o planeta e para os seres vivos. Sem perdas, impacto ou conflitos.
Em paralelo, notei que o recente fomento à pesquisa em instituições públicas poderia beneficiar muito mais a demanda de startups e gigantes do setor, como JBS e BRF, com uma formação de mão de obra altamente capacitada para trabalhar em produto de nicho de mercado. Me deparei com um fenômeno que não é novo, mas sintomático: o “doutor empreendedor”.
Sem perspectiva ou desejo de continuarem na academia, muitos doutores nas áreas de biológicas e exatas criam uma startup para viabilizar a continuidade de suas pesquisas a partir de investimentos de capital de risco – a promessa é que a injeção de grandes somas de dinheiro acelere a transformação do protótipo em um produto, serviço ou tecnologia que abocanhe um mercado. Nessa linha, a segurança alimentar e nutricional está ainda mais longe de ter um horizonte palpável.
Optei, então, por verificar a finalidade e o status das pesquisas públicas para compreender se a carne cultivada está no mesmo patamar de desenvolvimento que as startups alegam. Foram dois meses de apuração, entre entrevistas – muitas não estão citadas diretamente nesta reportagem –, leitura de artigos científicos, reportagens e cotejamento de dados e pareceres técnicos.
O detalhamento dado pelos pesquisadores de instituições públicas mostra que a nova tecnologia ainda está em processo inicial demais para garantir sucesso ou fracasso. “Na ciência não se pode simplesmente dizer algo, precisa-se provar. Os dados ainda não são bem otimizados. Acredito na tecnologia e que todas as proteínas animais poderão ser produzidas [de forma cultivada]. O grande desafio científico e tecnológico são gargalos para ganhar escala e ter preços competitivos. Pelo alto custo de implantação de uma planta industrial, pesquisas e volume produzido, não será a base da pirâmide que terá acesso a esses produtos”, avalia.
Em maio, a editora Springer Nature lança o título Cultivated Meat: Technologies, Commercialization and Challenges, que reúne 20 capítulos sobre o assunto, editados por Soccol e por seus colegas professores da UFPR Carla Molento, Germano Reis e Susan Karp.
Revisor de periódicos científicos, como a Nature, Soccol diz que há pouca coisa concreta detalhada nos artigos, porque muitos dos textos são teóricos, feitos a partir de informações em patentes e publicações científicas – a metodologia e as informações cruciais para repetir os experimentos e validar os resultados são mantidas em sigilo pelas startups, e cada pesquisador tem de adaptar as metodologias da produção de tecidos da indústria farmacêutica. Isso dificulta o avanço científico enquanto construção de conhecimento em conjunto e que a metodologia da pesquisa seja testada por outras equipes.
Quando um experimento científico é feito, ele terá um resultado. Isso não significa que todas as vezes que ele for repetido, o resultado será igual. Daí a importância de publicar o mais detalhado possível o passo a passo seguido, com informações sobre condições, materiais, tecnologia, tempo, entre outros dados, para que outros pesquisadores possam testar o mesmo experimento e verificar se ele é replicável, ou seja, se ele é válido. Com um protocolo bem definido, é possível que outros pesquisadores testem novas variáveis e condições e assim, cheguem a novos resultados, que por sua vez devem ser replicados e validados por outros pesquisadores.
A falta de transparência das startups sobre origem do material genético, composição dos meios de cultivo, velocidade de reprodução das células, volume produzido e repetibilidade do método e resultados são questões não respondidas propositalmente: o setor está se desenvolvendo dentro da iniciativa privada, em que cada pequeno avanço é guardado como segredo industrial.
Quem conquista esses avanços, no entanto, são doutores que muitas vezes se formaram dentro de universidades públicas. Resultados de pesquisas com recursos, estrutura e conhecimento público são – ou deveriam ser – públicos. Mas quando se constata que uma tecnologia que começou a ser desenvolvida por um pesquisador durante seu doutorado tem poucos detalhes em documentos públicos e muitos resultados apresentados em reuniões com investidores, é porque alguma coisa está fora do lugar.
Com parte dos protocolos de multiplicação celular vindos da pesquisa farmacêutica, elementos como microcarreadores, essenciais para a etapa de fixação celular, meio de cultivo para alimentação das células, e scaffold, suportes para estruturar as células como algo similar a um corte de carne, estão sendo pesquisados atualmente.
Você sabe o que é
meio de cultivo?
Durante todo o processo de produção da carne de laboratório ou carne cultivada, as células estão imersas em um líquido rico em aminoácidos (provenientes de soja, milho e trigo), vitaminas, minerais e, a depender da etapa, hormônios e fatores de crescimento.
A maior parte dos meios de cultivo tem 10% de soro fetal bovino em sua composição, e há algumas startups e pesquisadores que afirmam ter conseguido proliferar as células com meios de cultivo totalmente vegetais – a velocidade de reprodução, no entanto, diminui, o que faz com que as células demorem mais tempo para se multiplicarem em um meio de cultivo sem soro fetal bovino.
A água usada deve ser de alta qualidade, esterilizada, e a densidade do líquido varia conforme a etapa e o volume de células que o meio de cultivo está alimentando. O biorreator ou estufa em que estão as células precisam estar constantemente monitorados para verificar, entre outros parâmetros, o consumo do meio de cultivo e abastecer as células continuamente com uma composição equilibrada.
“A tecnologia existente é de engenharia de tecidos na área farmacêutica, que são produzidos em escala menor, para manter um banco de patógenos, teste de medicamento”, exemplifica Ana Paula Bastos, pesquisadora de imunologia da Embrapa Suínos e Aves, em Concórdia, que integrou uma pesquisa de carne cultivada financiada pelo The Good Food Institute (GFI).
O GFI é uma ONG estadunidense que atua direcionando dinheiro de filantropia para pesquisas em proteínas alternativas. Dos 102 projetos científicos financiados pelo GFI em 17 países entre 2019 e 2023, 53 eram em carne cultivada; 39 em proteínas vegetais e 10 em fermentação. Foram US$ 16,8 milhões, segundo dados apresentados por Cristiana Ambiel, gerente de Ciência e Tecnologia do GFI durante o workshop “Estudos em Proteínas Alternativas”, transmitido no canal de YouTube do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação em janeiro.
Só no Brasil, esse montante foi de US$ 2,5 milhões em 31 projetos, em 14 instituições de pesquisa e 2 startups. Desse total, quatro são em carne cultivada, 25 em proteína vegetal e dois em fermentação. No total, o Brasil tem 17 grupos de pesquisa para desenvolvimento de carne cultivada, e cinco delas receberam apoio do GFI.
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Desde 2018, startups prometem escalonar a produção de carne cultivada a ponto de abastecer um mercado local em cerca de três anos, mas esse dia nunca chegou. Houve um salto de investimentos em proteínas alternativas em 2021 por recursos públicos, segundo dados do GFI, e o total de investimentos em proteínas alternativas chegou a US$ 242,7 milhões em 2023, alocados em pesquisas em carne cultivada, fermentação de precisão e produção de proteínas de origem vegetal e de fungos – as duas últimas plataformas são as que já se estabeleceram no mercado e que mais captam recursos no mundo todo. Futuro Burger e Incrível, da Seara, são exemplos de marcas de proteína vegetal que estão disponíveis de forma massiva.
O setor teve um pico de investimentos de capital de risco em 2021, com US$ 989 milhões, passando para US$ 807 milhões no ano seguinte, dos quais US$ 400 milhões foram para a Upside Foods. Entre 2022 e 2023, esses aportes diminuíram 78% em todo o mundo, segundo o site AgFunderNews, chegando a US$ 177 milhões. Fontes ouvidas pelo AGFunderNews apontam que a saturação de propostas similares pelas startups e a constatação de que a escalabilidade e paridade de preços é realmente difícil de atingir a curto prazo fizeram com que muitos investidores migrassem seu dinheiro para outras áreas, como inteligência artificial.
Em entrevista ao podcast Green Queen in Conversation: Cultivated Meat Pioneers em outubro de 2023, Uma Valeti, CEO da Upside Foods, reconhece que o capital de risco não vai sustentar a indústria de carne cultivada, e que o investimento de governos na pesquisa e no incentivo para a atividade (bolsas de pesquisa, juros menores para empréstimos, incentivos fiscais, etc) é fundamental para estabelecer o setor.
O investimento público no Brasil tem se dado pelas verbas repassadas por agências de fomento à pesquisa, um valor naturalmente abaixo do que a iniciativa privada consegue alocar – e, nesse caso, verba tem uma relação direta com a velocidade de experimentação e execução.
No caso da universidade pública é uma faca de dois gumes: de um lado, investir em linhas de pesquisa como a de carne cultivada significa avanço na fronteira científica, essencial para trazer notoriedade para a pesquisa brasileira e produzir conhecimento público; por outro lado, doutores deixam a academia por falta de oportunidade e mudam para a iniciativa privada – ou vão pesquisar em outro país.
A JBS anunciou em setembro de 2023 investimento de R$ 103 milhões em pesquisas e desenvolvimento de carne cultivada – R$ 62 milhões são para a construção de um centro de inovação em biotecnologia no Sapiens Parque, em Florianópolis, e R$ 41 milhões em ações da espanhola BioTech Foods, virando acionista majoritária. A equipe prevista para essa instalação era de 25 pesquisadores especializados.
No mesmo período, o investimento público de maior expressividade no Brasil foi o aporte de R$ 5,7 milhões da Fundação Araucária, do governo do estado do Paraná, no Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação – Proteínas Alternativas (NAPI-PA) que reúne seis grupos de pesquisa atuantes na UFPR, Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e Universidade Estadual de Maringá (UEM). Carla Molento, professora do curso de Medicina Veterinária da UFPR e coordenadora do NAPI-PA, é a pioneira no Brasil em ministrar uma disciplina sobre agricultura celular, ofertada pela primeira vez em 2020, com o apoio de material e pesquisas fornecido pelo GFI.
A verba da Fundação Araucária abarca pesquisas em proteínas alternativas (carne cultivada, fermentação de precisão com fungos e bactérias, e proteína vegetal). Um ano após a aprovação do projeto, os núcleos ainda aguardavam a chegada de equipamentos e liberação para construção e reforma de laboratórios para instalá-los.
Só um biorreator de 2 litros importado da Alemanha custou R$ 700 mil, para testes de multiplicação de células no laboratório de Zootecnia Celular (Zoocel), coordenado por Molento e ainda em construção. Ainda assim, a maior parte da verba é destinada ao pagamento de recursos humanos, tais como bolsas de mestrandos e doutorandos, futura mão de obra de empresas do setor.
“Enquanto não temos a estrutura para fazer nossos testes, estamos publicando material teórico. Sobre ser muito ou pouco o valor repassado… o importante é que essa verba possibilita que montemos os laboratórios de uma nova linha de pesquisa, e agora depende da nossa energia para ir atrás de captar novos recursos e dar continuidade às pesquisas”, avalia.
Os pesquisadores do NAPI-PA estão trabalhando em um Plano Estadual de Proteínas Alternativas, a partir do documento federal, que teve uma pré-publicação em 2022, e do “Executive Order on Biotechnology”, do governo dos Estados Unidos.
“Os Estados Unidos são líderes mundiais em proteínas alternativas, e eles têm uma meta mês a mês com aportes para desenvolver o setor no país”, observa Carla. A produção de um Plano Estadual foi demanda da Fundação Araucária para dar continuidade no desenvolvimento das pesquisas após a finalização do projeto, em três anos.
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento via Lei de Acesso à Informação negou o acesso da reportagem do Joio ao Plano Nacional. Apesar de havermos apresentado um recurso, a pasta seguiu alegando que o documento figura em estágio preparatório e que em 2022 foi feita uma audiência com parte da cadeia produtiva para coletar insights e reelaborar o material. Não há previsão de lançamento do novo Plano Nacional, mas a Controladoria Geral da União está avaliando o recurso em terceira instância.
Na Embrapa Suínos e Aves, em Concórdia, Santa Catarina, a estrutura de pesquisa é pública, mas a verba de US$ 177 mil, para pagamento de bolsas de doutorado, pós-doc e parte dos equipamentos, veio de filantropia, captada pelo GFI. Os resultados do trabalho, iniciado em 2022 e que se encontrava no estágio final em fevereiro, quando o Joio esteve na unidade, constataram a complexidade de montar a metodologia do zero para obter os agrupamentos de célula se multiplicando em monocamada (em garrafas, formas ou placas), e em esferas, em placas tipo “poço” – a segunda forma é a maneira que há menos risco para a massa de células se romper.
Os resultados foram bem-sucedidos para uma escala de bancada, com células de gordura, tecido conjuntivo e ósseas se agrupando tanto em monocamada quanto em esfera. Para músculos, a forma de agrupamento desejada é em miotubo, em que as células se agrupam formando filamentos longos e tubulares, como a fibra muscular que encontramos nas carnes. Acredita-se que esta forma de agrupamento celular seja mais resistente fisicamente do que as células em monocamada, o que deixará a carne cultivada com o aspecto e textura mais próximos à carne convencional.
“Os protocolos estão sendo definidos por cada pesquisador, e muitas etapas e informações são deixadas em segredo. Então cada grupo de pesquisa define o que vai testar e, conforme avançamos no projeto, novos caminhos se abrem e temos que escolher um caminho num mundo de possibilidades”, comenta Karine Silveira, pós-doutoranda que havia entrado na Embrapa há cerca de um mês.
Quando desenha uma metodologia, o cientista traça várias etapas a serem realizadas, e nem sempre o experimento é feito de ações contínuas. Em muitos casos, quando um teste não produz resultados satisfatórios e há tempo hábil e a possibilidade de refazê-lo mudando variáveis, a equipe recomeça o experimento e compara os resultados. No caso da carne cultivada, muitas variáveis residem na composição dos meios de cultivo, como o percentual de fator de crescimento, de hormônio, de glicose, com ou sem soro fetal bovino. Cada uma dessas combinações de elementos influenciará na velocidade de reprodução das célula animais e na sua nutrição, podendo dar resultados mais satisfatórios para um tipo específico de célula.
O projeto da Embrapa financiado pelo GFI previa a produção de carne cultivada de frango em uma estrutura similar ao músculo, ou seja, uma composição de células em um formato definido a partir de um suporte. Para isso, começaram os testes a partir dos resultados da pesquisa de Carla Oliveira, da Universidade Federal de Santa Catarina, com nanocelulose bacteriana, uma película como o scoby de kombucha. Com a produção desse material, elas desenvolveram um scaffold com dimensões parecidas às de um sassami (7,5 cm x 5 cm x 1 cm), sem sabor pronunciado.
“A produção do scaffold foi feita em frascos e levavam de duas a três semanas para ficarem prontas. Em algum momento, mesmo sem alteração de condições no laboratório nem na nutrição, a bactéria parou de produzir. Assim, sem explicação. Essas coisas acontecem quando se está fazendo experimentos com organismos vivos”, relata Vivian Feddern, coordenadora do projeto.
A estrutura bacteriana forma uma cavidade oca que permitiu que as pesquisadoras injetassem um misto de células de gordura, tecido conjuntivo e ósseo para ver como se fixariam no scaffold. Em fevereiro, quando estive na Embrapa, as pesquisadoras ainda não haviam realizado o experimento incluindo as células musculares.
O protocolo a ser testado coletaria células-tronco de ovos embrionados com 15 dias de incubação, provenientes da granja da Embrapa, que fica na mesma unidade. Por serem testes com começo, meio e fim, não havia nenhum experimento de carne cultivada e de scaffold sendo conduzido nos dois dias em que a reportagem esteve em Concórdia.
O processo testado pela Embrapa tem uma etapa a mais do que os protótipos feitos por startups: ao usar a célula pluripotente para diferenciá-las entre muscular, gordura, tecido conjuntivo e ósseo, é preciso de 15 a 20 dias até as células chegarem à forma e às funções características, para serem multiplicadas separadamente, e então reunidas dentro do scaffold para observar como se comportam. Incluir essa etapa seria a maneira de diminuir a extração de células diretamente de um animal adulto.
“O tempo de proliferação de uma célula primária, ou seja, retirada do animal, é menor em comparação ao das células-tronco. As células primárias morrem mais rápido. Então toda hora precisam coletar células primárias novamente no animal”, compara Bastos. O processo, no entanto, é mais caro pela necessidade de hormônios e fatores de crescimento, ingredientes que compõem o meio de cultivo para células no estágio de diferenciação. Sem discutir a origem das células que se multiplicarão em um biorreator, no entanto, o argumento de bem-estar animal da maior parte das startups cai por terra.
Em 2024, Bastos integra um projeto com financiamento de R$ 2,5 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) em co-desenvolvimento com a Núcleo Vitro, empresa de Bibiana Matte, sócia da Cellva. Neste modelo de pesquisa da Embrapa, a empresa parceira entra com uma contrapartida de conhecimento e também de recurso financeiro – o valor aportado pelo Núcleo Vitro não foi divulgado.
A proposta é de produzir uma linguiça a partir de um blend de carnes de aves, suínos e bovinos, em que o conhecimento da Cellva, segundo Bastos, é primordial, pois a empresa foi a pioneira em produzir um hambúrguer a partir de células cultivadas no Brasil. À época, a empresa ainda se chamava Ambi Real Food, e o protótipo foi apresentado poucos meses depois da conclusão de uma pesquisa feita pelo Núcleo Vitro junto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da UniSinos a partir da verba de R$ 200 mil do programa TechFuturo, em 2020, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs). Apesar de a pesquisa ter sido conduzida com recursos públicos, não foram encontrados artigos ou relatórios públicos que descrevem os estudos realizados pelo edital.
“Sem política pública e investimento público o setor de carne cultivada não vai se desenvolver em prol da sociedade, e sim do mercado. Os avanços são inexoráveis e a questão é se queremos enquanto país estar par a par com as pesquisas em inovações disruptivas ou se vamos ser apenas fornecedor de matéria-prima e mão de obra”, diz Molento.
Falácia argumentativa
Ainda com produção em escala de bancada, as startups e empresas precisam que o dinheiro venha de outra fonte que não o comércio de seus produtos – com um pitch alinhado para audiências que desconhecem os meandros e gargalos da produção biológica em escala, as estimativas de avanços são comparadas às da área tecnológica mecânica e digital.
São comuns os argumentos que computadores, máquinas fotográficas, celulares, usinas fotovoltaicas e carros elétricos também já haviam sido uma utopia. “Os defensores dessas tecnologias dizem que a cada dois anos vai cair o custo de produção, aplicando a Lei de Moore, que é para dispositivos mecânicos, para um dispositivo biológico. Quando falamos de seres vivos, a conversa é diferente. A expectativa de barateamento da tecnologia precisa ser colocada em questão”, critica Ricardo Abramovay, professor da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP.
As leis que regem o comportamento de dispositivos como um touchscreen e realidade aumentada não são as mesmas que fazem uma célula se multiplicar mais rápido. “É um gap muito grande sair da escala de laboratório para industrial. O comportamento da célula muda, o microcarreador muda, a porosidade do microcarreador em relação à biomassa celular. Os processos da célula, a densidade do meio de cultivo, tudo isso ainda está em aberto. Quem consegue fazer esse escalonamento não detalha nada, não divulga nenhuma informação técnica. O que se projeta é muito maior do que se está de fato escalonando no momento”, observa Bastos, da Embrapa.
As informações vindas da indústria são conflitantes: diz-se que a carne cultivada poderá ser produzida em escala industrial e ajudar no combate à fome, ao mesmo tempo em que CEOs de startups e seus pesquisadores contratados dizem que o produto será uma adição à oferta atual e não vai substituir a carne proveniente da pecuária convencional. Diz-se que o aumento de produção de carne cultivada diminuirá o impacto sobre o meio ambiente, mas não se apresentam cases reais, porque não há indústrias em funcionamento para que essa análise de ciclo de vida seja feita.
Nesse sentido, a ideia de que a produção de carne cultivada terá um impacto ambiental consideravelmente menor que a agropecuária é também teórica. Todos os estudos que afirmam que a produção em biorreatores usaria menos água e emitiria menos gases de efeito estufa consideram uma planta industrial com reuso de água, tratamento de efluentes, energia proveniente de fonte limpa, eficiência energética, reciclagem dos resíduos, entre outros.
Não se fala do volume de água de alta qualidade necessário para produzir a carne cultivada em biorreatores industriais e em que regiões essas plantas terão de ser instaladas para ter acesso à outorga de água, por exemplo. Tampouco se fala do alto uso de energia para manter uma unidade industrial em funcionamento, com um galpão em que todo o ar deve ser filtrado e a manipulação e circulação de pessoas, altamente controlada.
Em média, a proporção de cultivo é de 50 gramas de células para um litro de meio de cultivo, solução viscosa em que estão os nutrientes para o desenvolvimento celular. A grosso modo, conforme as células se multiplicam e se avolumam nas formas ou biorreatores, o meio de cultivo é consumido e tem de ser reposto até chegar o momento em que o espaço é pequeno demais para manter a proporção de célula e meio de cultivo.
A composição do meio de cultivo, aliás, depende integralmente da produção de commodities como soja, milho e trigo, assim como na produção de ração animal da pecuária convencional. A característica da carne cultivada pode diferir da convencional pela ocupação de espaço com biorreatores e não em animais no pasto, mas a origem da alimentação dessas células não altera nem diminui o uso de terras para agricultura de commodity.
Atualmente, não há informação pública nem imagens e vídeos demonstrando a produção de carne cultivada em biorreatores em plantas industriais, apesar de três países terem liberado a venda. O mais recente foi em janeiro. A Aleph Foods, de Israel, teve sua produção aprovada de carne cultivada com mix de proteína de plantas e aguarda inspeção de sua fábrica para poder embalar e vender seus produtos. Em 2021, a brasileira BRF investiu US$ 2,5 milhões de dólares em uma rodada de investimentos da Aleph Farms para poder usar sua tecnologia. No total, a empresa captou US$ 118 milhões em duas rodadas de investimentos.
A estadunidense Upside Foods, que alega produzir carne cultivada de frango em biorreatores de 500 litros, foi alvo de denúncia de ex-funcionários em setembro de 2023 por reportagem da revista Wired. A produção em escala era seu diferencial diante da concorrência, pela complexidade e volume do processo. Fontes afirmaram à Wired que a produção se dava em garrafas plásticas de 2 litros, resultando em 3 gramas por unidade. Os funcionários reuniriam essas pequenas porções montando um filé de frango de 30 gramas para servir no Bar Crenn, estabelecimento com uma estrela Michelin da chef Dominique Crenn.
“A tecnologia funciona em escala de bancada, mas é inviável financeiramente, pela quantidade de material usado, pelo tempo que leva para obter poucos gramas de carne. Por isso precisamos pesquisar para saber como escalonar a produção para biorreatores de milhares de litros, para baratear o custo de produção”, diz Soccol.
A Upside Foods negou que os filés fossem montados artesanalmente. Cinco meses depois, a produção de carne de frango cultivada foi suspensa tanto pela Upside Foods quanto pela Good Meat/Eat Just, que fornecia para Singapura. Em notas oficiais, ambas as empresas disseram que pretendem voltar a fornecer seus produtos ainda em 2024. Nenhuma das duas startups informa o volume produzido, apenas descreve a capacidade produtiva das plantas industriais.
Em Singapura e nos Estados Unidos, países em que a venda de carne cultivada foi liberada, os órgãos de inspeção e vigilância sanitária teriam acesso a esses dados e poderiam criar mecanismos para auditar e verificar cada etapa do processo. No entanto, a tecnologia de proliferação de células animais em escala industrial é tão recente no setor alimentício que muita coisa pode mudar enquanto não há um platô de desenvolvimento de pesquisas e protocolos definidos.
Vivian Feddern há anos tenta entrar em contato com a startup Aleph Farms para obter mais detalhes sobre a produção, como forma de ampliar o debate entre academia e setor privado. “Eles nunca respondem”, lamenta. Ela também tentou aumentar a troca com pesquisadores em iniciativas públicas ou privadas em outros países, em vão. Já Soccol teve um pedido de estágio para um doutorando em Engenharia de Bioprocessos negado pela JBS.
Corrida pela patente
Além das pesquisas em origem da célula, tipo de coleta, conservação e como multiplicá-las em biorreatores, as startups estão correndo atrás de desenvolver microcarreadores com ou sem composição nutritiva complementar; composição de meios de cultivo sem soro fetal bovino; e scaffolds à base de produção bacteriana, fúngica ou a partir de resíduos agroindustriais, como fibras de cereais.
O último levantamento do GFI, de 2023, aponta que são 156 startups com carne cultivada como produto final em todo o mundo – todas correndo atrás de como escalonar a produção. A linhagem celular é primordial para a produção de carne em laboratório, mas os microcarreadores e o meio de cultivo são peças importantes para aumentar a velocidade de produção neste quebra-cabeça ainda incompleto. Centenas de pesquisadores correm atrás de composições inovadoras. É esse o caminho comum de patentes trilhado pelas startups: patentear metodologia e substâncias criadas para o processo, uma vez que material genético não é passível de ser patenteado.
A Sartorius, multinacional biofarmacêutica, é uma das fornecedoras de biorreatores, meios de cultivo e outros materiais para a agricultura celular em laboratório; a startup da Estônia, Gelatex, é fornecedora de microcarreadores e scaffolds tanto para a indústria alimentícia quanto farmacêutica. É praxe que essas empresas colaborem com pesquisadores públicos enviando amostras de seus produtos para serem testados às cegas, pois a composição não é detalhada.
Há também startups de produção de carne celular desenvolvendo seus próprios microcarreadores para não dependerem da compra desse produto. Uma delas é a Cellva, empresa brasileira que promete produzir gordura suína cultivada para fornecer à indústria – em entrevista à revista Exame em janeiro, a Cellva produzia 20 gramas de gordura suína em 21 dias, mesmo dado publicado pelo jornal O Globo em julho de 2023. Em fevereiro de 2024, a Cellva estava em meio a uma rodada de investimentos, e havia captado R$ 6,5 milhões para seguir suas pesquisas.
Bibiana Matte, sócia da Cellva junto de Sérgio Pinto, ex-executivo da BRF, depositou um pedido de patente para microcarreadores em novembro de 2022 junto ao INPI. Quatro anos antes, Matte, Leonardo Diel e Marcelo Lamers entraram com um pedido de patente para “Dispositivo, método e sistema de cultivo celular”. Durante os dois meses de apuração desta reportagem, foram enviados três pedidos de entrevista à assessoria de imprensa da Cellva, que afirmou não haver agenda para atender o Joio nem por telefone, nem presencialmente.
Em março, estive em Porto Alegre e fui duas vezes ao Jardim São Pedro, bairro residencial onde fica o laboratório da Núcleo Vitro e Cellva, empresas de Bibiana Matte. Os endereços são os mesmos para ambos os negócios, mas a Cellva tem também um escritório em São Paulo. A casa de dois pavimentos não possui fachada comercial, e o interfone não estava funcionando. Ninguém atendeu aos chamados no portão.
Nota da Redação: Essa reportagem foi modificada no dia 15 de maio de 2024 às 16h50 para corrigir dois erros no seguinte trecho: “Molento há anos tenta entrar em contato com startups como Upside Foods e Just Eat para obter mais detalhes sobre a produção, como forma de ampliar o debate entre pesquisa pública e setor privado. ‘Eles nunca respondem’, lamenta.” Não foi a entrevistada Carla Molento quem relatou isso, mas Vivian Feddern. E Feddern se referia somente à uma startup — a Aleph Farms — e não a startups no geral, como o trecho dava a entender.